A urgência era tal, que a primeira decisão de D. João V, assim que subiu ao trono, foi decretar o degredo para Angola de qualquer serralheiro preso, na metrópole ou em qualquer dos territórios ultramarinos portugueses.
Colonizar tão vastos territórios como os que Portugal chegou a possuir envolveu um esforço extraordinário para um país pequeno como o nosso. Esse domínio foi marcado por grande heroísmo, inegável audácia, brutalidade também, mas igualmente por uma boa dose de improviso. Na correspondência trocada entre os governadores das colónias e a metrópole – o conselho ultramarino ou o próprio rei, nos séculos XVII a XIX – são notórias as lacunas sentidas, ao nível das instalações e dos equipamentos, mas sobretudo no que concerne aos recursos humanos - médicos, engenheiros, barbeiros e militares, tal como, muito frequentemente, ocupações manuais de grande utilidade: carpinteiros, pedreiros e, muito especialmente, serralheiros. Tal era a urgência, que, em 1707, revolveu-se todo o império em busca de um profissional deste ofício que pudesse e, sobretudo, quisesse prestar serviço em Angola.
A necessidade já era reportada pelo menos nos 13 anos anteriores, mas a grande demanda aqui relatada começou com uma apresentação dos oficiais da Câmara de Angola. Davam conta da grande falta que ali fazia um serralheiro “para o conserto das armas”, que se achavam nos armazéns e que se encontravam sem serventia por não haver quem as soubesse reparar.
O problema não era de somenos, porque sem armas não havia proteção e as ameaças externas e internas eram muitas.
Pois bem, para grandes males, grandes remédios: se não há serralheiros voluntários, era preciso encontrar os que pudessem ser obrigados a tal missão.
Assim sendo, D. João V viu-se na contingência de ordenar a expedição para Angola de quaisquer réus com essa especialização. Essa foi, aliás, a sua primeiríssima decisão enquanto monarca, mas o mesmo havia sido tentado pelo seu antecessor, anos antes.
Dada a ordem, partiu-se para a ação, nomeadamente pedindo ao então governador do Brasil, Luiz Cesar de Menezes, que averiguasse se haveria nas cadeias daquele Estado alguns detidos oficiais de serralharia cujos crimes merecessem pena de degredo, para que fossem enviados a Angola. Em vão: não só não existiam presos nessas circunstâncias, como os serralheiros livres contactados, mesmo anunciando-se-lhes vantagens futuras, escusaram-se a fazer tal viagem, argumentando com o facto de serem casados e pais de família.
Voltaram-se então as atenções para a metrópole, com ordem para procurar nas várias cadeias, especificando-se, por exemplo, as debaixo da alçada do chanceler da Relação do Porto.
Não se sabe quanto tempo demorou até se encontrar tal profissional, mas está registado, em 1732, um requerimento de António Oliveira “mestre serralheiro da cidade de Luanda”, que diz ter chegado em 1718 para desempenhar tais funções e pede melhor pagamento pelos seus serviços de reparação de armas e outras “obras pertencentes à Fazenda Real”. Exige soldo igual ao seu antecessor, Francisco Vaz, porque, diz, é “pobre”, tem “mulher e cinco filhos”, sendo os seus ganhos muito limitados para tal prole.
Desconhecemos se António Oliveira se cansou de tal condição e abandonou Angola – como aliás parece ter acontecido com o anterior armeiro, que pediu licença para ir a Portugal buscar a família e não há notícia de ter regressado. Sabemos sim que a falta de serralheiros volta a ser uma realidade daqui em diante e pelo menos nos 30 anos seguintes, com sucessivos apelos dos governadores e outros responsáveis locais para que fosse suprida tal falta, que punha em causa a defesa do território.
Certo, certo e até irónico é que, ainda hoje, seja frequente encontrar anúncios nos jornais e outras plataformas a pedir – entre várias outras profissões especializadas – serralheiros portugueses para trabalhar naquele país africano. É de esperar que, tantos anos passados, lhes sejam proporcionadas bem melhores condições e pagamentos que os fornecidos ao queixoso António Oliveira.
À margem
Em Mais um dia de vida – Angola 1975 – edição da Tinta da China em 2013 - o jornalista Ryszard Kapuscinski relata os três meses que viveu em Luanda, no Hotel Tivoli, numa época extremamente conturbada e com desfecho imprevisível. As personagens são os hóspedes com quem partilhava os seus dias e preocupações. Entre estes estava o senhor Silva, velho negociante de diamantes meio enlouquecido com o atropelo dos acontecimentos daquele final de época imperial portuguesa. A agravar a sua situação estava o facto de esconder uma quantidade desconhecida de pedras preciosas cosidas na roupa. Queria reforçar as fechaduras dos seus aposentos e assim melhor se proteger, “mas todos os serralheiros tinham partido e já não havia ninguém em Angola que soubesse fazer esse serviço”, conta o repórter.
Mas isso é outra história…
Fontes
http://memoria.bn.br/pdf/094536/per094536_1952_00095.pdf
Mapa Chronologico das leis e mais disposições de Direito Portuguez, publicadas desde 1608 até 1817, por Manoel Borges Carneiro, Secretário da Junta do Código Criminal Militar; lisboa 4 set. 1816
https://books.google.pt/books?id=16FFAAAAcAAJ&pg=PA335&lpg=PA335&dq=serralheiros+%22D.+Jo%C3%A3o+V%22+1707&source=bl&ots=3KdRq44VjT&sig=M1NrC4zcldQ3XpYEoko8j9Lh8VE&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwj_waWozaXYAhVIo6QKHRZ4BO4Q6AEILjAA#v=onepage&q=serralheiro&f=false
Arquivo Histórico Ultramarino em linha: http://www2.iict.pt/?idc=100
Ministério da Educação e Saúde – Documentos históricos – Consultas do Conselho Ultramarino – Rio de Janeiro 1757-1803; Rio de Janeiro-Bahia 1707-1711
Catálogo parcial do fundo do conselho ultramarino da série angola – Setembro 2014
Biblioteca Nacional de Portugal
Mappa mondo overo carta generale de la Terra divisa in dve emisferj secondo la proiezzione piu comvne nella qvale tvtti li punti principali ... de l'isla / Giuseppe Pietrasanta sculp. . - Escala [ca 1:60000000 na Zona Equatorial]. - Napoli : Paolo Petrini, 1722. - 1 mapa : gravura, p&b, aguarelado ; 43,00x68,70 cm, em folha de 47,00x71,00 cm
Cota do exemplar digitalizado: cc-1173-a
http://www.buala.orghttp://purl.pt/4110/3/cc-1173-a_JPG/cc-1173-a_JPG_24-C-R0150/cc-1173-a_0001_1_p24-C-R0150.jpg/pt/mukanda/mais-um-dia-de-vida-angola-1975