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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O franciscano especialista em canela e pimenta da Índia

 

 

As caneleiras não se davam com as formigas brasileiras, que só os jesuítas conseguiam exterminar.

 

A cancanela-origens planta.jpgela era, provavelmente, a mais apetecível e rentável das especiarias. Quando os holandeses se apoderaram das possessões portuguesas que haviam garantido o monopólio destes produtos, foi preciso explorar alternativas. Como sabiamente alvitra o ditado: quem não tem cão, caça com gato… Então, se o Ceilão, pátria da canela, já não era nosso, porque não cultivar aquela planta em territórios que ainda se mantinham lusos?

Esta foi o pensamento de D. Pedro II - ou de alguém por ele - lá por volta de 1678. Logo se tratou de remeter para o Brasil caneleiras que deveriam ser tratadas com todo o cuidado para ver se cresciam e frutificavam do outro lado do oceano.

A experiência, aliás, não era inédita. Já se havia conseguido razoáveis sucessos no plantio da caneleira em São Tomé, por exemplo, e mesmo no início da colonização do Brasil os jesuítas haviam cultivado árvores de canela, depois destruídas para não concorrerem com a proveniente de outras paragens, então dominadas por portugueses.

 

Os resultados, no global, não seriam extraordinários, porque, anos depois, contratou-se um especialista para levar o projeto brasileiro a bom porto.

Tratava-se de um frade franciscano residente na Índia, onde se dedicara ao estudo das plantas das especiarias – em particular canela e pimenta. Uma vez no Brasil, o plano era simples: sendo aquele território tão vasto, em alguma parte do mesmo deveria encontrar boas condições para o real desígnio. Somava-se que os holandeses tinham sido expulsos de terras de Vera Cruz cerca de meio século antes, pelo que não ameaçavam estes propósitos.

Frei João D’Assunção aportou à Bahia no ano de 1707 - já no reinado de D. João V - e a confusão que rodeou essa chegada poderia ter sido prenúncio que as coisas não iam correr bem. De facto, embora trouxesse as credenciais necessárias e viesse em nau fretada pelo rei, ninguém estava informado da sua chegada, nem tinham sido tomadas medidas para que ali tivesse meios para sobreviver, quanto mais para desenvolver o trabalho de que havia sido incumbido.

Felizmente, imperou o conhecido bem-receber português, porque o governador e capitão geral do Brasil, Luiz César de Menezes, achando frei João d’Assunção “tão desamparado”, tomou a iniciativa e, mesmo “sem ordem” régia, tratou de “dar com parecer dos ministros da Junta da Fazenda, 160 réis cada dia, para sua sustentação”, valor imediatamente aumentado para um cruzado, a pedido do próprio frade, alegando ser a vida no Brasil “caríssima”.

Mas, as coisas continuaram a não ser favoráveis. Dois anos depois, o frade pouco havia adiantado a sua missão. Tinha adoecido, o que o impedia de se deslocar em busca dos melhores terrenos para o plantio e os ensaios relatados não eram animadores: a grande quantidade de formigas inviabilizava o desenvolvimento das caneleiras, que não se davam com tal inseto.

Na cultura da pimenta, os resultados também não eram brilhantes. As sementes não haviam germinado e uma outra, semeada pelos jesuítas, não tinha dado frutos. Apesar deste insucesso, são elogiados os dotes agrícolas da Companhia de Jesus, que havia conseguido exterminar as formigas nas terras sob seu poder e tinha, com êxito, feito tentativas com outras plantas, drogas que já comercializava e poderiam resultar em “lautos interesses” para a Coroa. Restava a esperança de tentar produzir canela, com plantas trazidas de São Tomé, novamente na zona de Pernambuco e “especialmente no Maranhão”, visto como tendo “muitas semelhanças” com a Índia.

De facto, João d’Assunção terá escrito um tratado sobre a plantação de caneleiras, os cuidados a ter para o seu crescimento e na extração da canela, mas aparentemente a especiaria produzida no Brasil, tanto por os solos e o clima serem díspares dos de origem, como pelo pouco cuidado e até incúria no seu tratamento, parece nunca ter sido tão forte e economicamente relevante para o império português como havia sido o monopólio marítimo deste e de outros produtos nos tempos áureos deste comércio.

 

À margem

Bernardino_António_Gomes_médico_da_Real_Câmara.

 “Quase todos os países do mundo têm produções que, segundo a ordem primitiva da natureza, deviam ser-lhes sempre privativas. O homem, porém, ávido sem limites e insofrido de não encontrar em cada parte da terra todos os bens que a natureza sabiamente tinha repartido (…), não só os tem procurado através de mil perigos, por meio de comércio, mas ainda tem querido forçar a mesma natureza a oferecer-lhos em toda a parte”. Sábias e críticas palavras, as de Bernardino António Gomes. Poderiam ter sido ditas hoje em dia, numa qualquer conferência internacional sobre ambiente e produção agrícola sustentável, mas foram escritas em 8 de maio de 1798 por este ilustre médico, cientista, químico e botânico português. Tratava-se da introdução à obra Observações sobre a canela do Rio de Janeiro (…), trabalho desenvolvido a pedido do senado da câmara daquela cidade.

Mas isso é outra história...

 

 

Fontes

http://memoria.bn.br/pdf/094536/per094536_1952_00095.pdf

https://martaiansen.blogspot.pt/2016/02/

http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/quimica/origem-composicao-canela.htm

 

Observações sobre a Canela do Rio de Janeiro escritas a rogo do senado da Câmara da mesma Cidade em 8 de Maio de 1798 e ulteriormente retificadas, adicionadas e oferecidas ao mesmo Senado…de Bernardino António Gomes, 1798 - URI:http://bibdigital.bot.uc.pt/obras/UCFCTBt-Cofre-Man-

05/globalItems.html; URI:http://hdl.handle.net/10316.2/10877

 

A história natural de Portugal no Século VIII, Biblioteca Breve nº112, Série Pensamento e Ciência, Rómulo de Carvalho, 1ª edição 1987, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação

 

Ministério da Educação e Saúde – Documentos históricos – Consultas do Conselho Ultramarino – Rio de Janeiro 1757-1803; Rio de Janeiro-Bahia 1707-1711

 

Tese de doutoramento em História e Cultura do Brasil intitulada «Sociedade, elites e poder em Pernambuco no século XVII - Parte III - Pernambuco no período pós-Restauração: Da unidade ao conflito - http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/6497/15/ulsd062897_td_vol_1_indice.pdf

 

A conquista e a ocupação da Amazónia brasileira no período colonial: a definição das fronteiras, de Tadeu Vladir Freitas de Rezende – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Económica - São Paulo 2006

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bernardino_António_Gomes