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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A anedótica história do monumento a Bocage

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 Falências, desencontros, polémicas várias, uma tempestade de dimensões bíblicas e até um pedaço da estátua partido antes da inauguração. Houve de tudo no processo que culminou com a implantação, em Setúbal, de um monumento de homenagem a Elmano Sadino, bem mais modesto que o originalmente previsto.

 

De Bocage já muito se disse. Do seu génio literário ímpar, contrastante com uma vida de devassidão, desalinho e libertinagem cuja fama de alguma maneira se sobrepôs às extraordinárias qualidades técnicas e líricas que lhe são reconhecidas. Pois, o processo que culminou com a implantação de um monumento de homenagem na terra que viu nascer o poeta, fez jus à sua vivência tumultuosa e tem episódios dignos das anedotas a si atribuídas; como aquele em que partiram um pedaço da estátua, que teve de ser betumado à última da hora, ou o outro, em que o dinheiro angariado desapareceu na falência do banco onde estava depositado a juros…soa-lhe familiar?

A polémica começa com a autoria da própria ideia. Para a história, como impulsionador do tributo a Bocage, ficou António Feliciano de Castilho e o seu irmão, José que, morando no Brasil, aí criou uma comissão e abriu a subscrição para angariar fundos. Algumas fontes, no entanto, asseguram que quem lançou tal desafio ao visconde de Castilho foi o também poeta setubalense Manuel Maria Portela, a quem se deve, em 1864, a colocação da lápide que identifica a casa onde nasceu Elmano Sadino.

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Depois, há a questão do dinheiro. Os montantes alcançados no Brasil foram depositados a juros na instituição bancária Fortinho & Moniz, pelo próprio sócio-gerente, que era tesoureiro da comissão brasileira. O problema é que aquela instituição faliu e perdeu-se quase toda a avultada soma que ali se encontrava. Esta realidade obrigou a um redimensionamento da obra a erigir: de grandiosa, passou a modesta, com um orçamento global de 1.200$00, cerca de um sexto do anteriormente conseguido. Os restantes e insignificantes 200$00, recolhidos em Setúbal, destinaram-se aos festejos que aquela Câmara Municipal deveria levar a cabo.  Acrescentam-se 700$00, do transporte e da grade de ferro.

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 Ora, com tão parcos recursos, não se podia esperar uma grande obra num material caro, como a pedra de Lioz. Isso justifica que, na ótica do mestre canteiro Germano José de Salles, em cuja oficina Pedro Carlos dos Reis fez o trabalho, a coluna tem um diâmetro inferior ao desejado e proporcionalmente à sua base. Apesar de tudo, terá escrito, o monumento resultou “de forma elegante e vistoso, posto que singelo”, com um total de pouco menos de 12 metros de altura, dois dos quais com a figura de Bocage, com ar pensativo, vestido à sua época, com folhas de papel numa mão e uma pena de ave, para escrever, na outra.

A composição ficou montada nove dias antes da inauguração, programada para 21 de dezembro de 1871. Era preciso tapá-la para ser mostrada na hora certa. O processo não correu bem: ao cobrirem Bocage com as bandeiras de Portugal e do Brasil, quebrou-se parte do instrumento de escrita que tinha na mão, que, à pressa, teve de ser reposto com betume. As imagens atuais dão a entender que o fragmento voltou a cair, porque essa mão afigura-se incompleta.

0005_M.jpgDe qualquer forma, tudo parecia estar a postos para o grande dia. A praça profusamente decorada; os dois vapores e o comboio, com 31 carruagens, que devia levar os importantes convidados de Lisboa, cerca de 570 pessoas, políticos – entre os quais o ministro António Rodrigues Sampaio - e vários deputados – intelectuais, imprensa, enfim, “um certo número de pessoas mais ou menos conhecidas”, “encaixotadas” de propósito para figurar na ocasião, como as descreveu Pinheiro Chagas, na reportagem sobre o acontecimento.

Este jornalista e político narra também de forma bem-humorada a tempestade de dimensões bíblicas que se abateu sobre Setúbal nessa tarde. Diz que pouco mais conseguiu ver que um “abismo de guarda-chuvas”; pouco mais conseguiu ouvir que um poema de Castilho. Tanta era a chuva, o vento e a lama, que todos se recolheram no edifício da Câmara “transidos de frio”, qual “turba de náufragos”. Pouco valeu, portanto, todo o aparato preparado, os palanques, as bandas de música reunidas; os discursos ensaiados, os documentos de honra para assinar, os pretensiosos pórticos; as centenas de bandeiras, galhardetes e estandartes; flores; iluminação e foguetório. O que os convidados apreciaram verdadeiramente foi o lunch servido já sob a proteção do edifício dos Paços do Concelho de Setúbal: “verdadeiro restaurador” das forças dos presentes.

À margem

Os festejos de inauguração do monumento a Bocage começaram um mês antes da data final prevista. A 22 de novembro, houve discursos e cortejo, com os representantes da Câmara de Setúbal acompanhados por música filarmónica. No local, dentro de um cofre de chumbo, por sua vez introduzido noutro de folha da Flandres, foi colocado um pergaminho com o auto da ocasião - ali mesmo lavrado - moedas recentes de diversas cunhagens e um exemplar do jornal Gazeta Setubalense.   O conjunto foi inserido num buraco entre os degraus da base da estátua, coberto depois pelo mestre canteiro Joaquim Quintino. Por outro lado, como a inauguração ficou manchada e limitada pelo mau tempo, três dias depois desta, voltou-se à festa. Na sala de sessões da edilidade descerrou-se um retrato do poeta, ouviram-se poemas, foguetes e acordes musicais. Ah, claro, como não poderia deixar de ser, houve novamente comida à descrição e muito falatório.

Mas isso é outra história…

 

 

Fontes

Arquivo Distrital de Setúbal

Arquivo Pessoal de Almeida Carvalho

PT-ADSTB-PSS-APAC-C-0046

http://digitarq.adstb.arquivos.pt/details?id=1333782

 

 

http://purl.pt/1276!1/brasileiro.html

 

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

José Artur Leitão Bárcia

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/001179

 

Alberto Carlos Lima

 

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000778

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000776

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000779

 

Casa Fotográfica Garcia Nunes

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/NUN/00014

 

arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/

 

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