As animadas e picantes soirées em casa de D. Cláudia
Nunca voltou a haver em Lisboa um espaço como aquele, onde se podia, em simultâneo, “tocar, jogar, valsar, amar” até ao raiar da madrugada.
A casa de D. Cláudia era o grande pesadelo das mães de família e a maior alegria dos mancebos de Lisboa, em meados do século XIX. Ali se perdiam fortunas na batota, mas sempre com um contentamento próprio de quem está mais interessado na conversa das raparigas do que no jogo; mais empenhado no que se passa por debaixo da mesa do que nas jogadas que deslizam no feltro verde. Por ali passaram muitos anónimos, mas também futuras caras conhecidas do poder e das letras. E fizeram-se muitas juras de amor que não acabaram na igreja, como era hábito na época.
Numa Lisboa cinzenta e entediante onde, à exceção do S. Carlos, pouco havia para divertimento dos notívagos mais resistentes, as soirées de D. Cláudia, eram como um raio de luz que só se extinguia ao romper da aurora.
Em duas anteriores localizações e, depois, num segundo andar do prédio que faz a esquina do Rossio com o arco do Bandeira, ao domingo, quartas e sextas-feiras, havia jogatana, música à vontade de quem se quisesse atrever no piano, danças e moças - se não devassas, pelo menos mais soltas que as comuns donzelas casadoiras -, chá e “pífias torradinhas com manteiga”.
Nestas reuniões, onde cheirava a fumo adocicado e almíscar, havia uma “concorrência mesclada”, que tinha em comum apenas o gosto pela pândega e era recebida com grandes salamaleques pela dona da casa e o seu marido, o Brito.
Ela, uma quarentona muito fresca e senhora do seu nariz. Ele, um grande bisbilhoteiro, um pacóvio que se dava ares de liderar, mas era, afinal, “um pau mandado da senhora sua mulher”.
Nunca se percebeu muito bem o que o casal ganhava com aqueles serões, porque não há notícia de alguma vez terem pedido qualquer retribuição para si.
Ambos tinham pretensões de patrocinar encontros sérios, com formalidades próprias dessa condição e fingindo não ver os batoteiros profissionais, que ali pululavam, ou a libertinagem com laivos de orgia que preenchia as várias salas da habitação.
Ali “circulava o perfume tabernal dos bailaricos alfamistas”, jogava-se ao Monte ou à Banca Francesa e entoavam-se cantigas folgazãs e brejeiras, mais próprias dos bordéis. Tudo apresentado com uma moldura sofisticada, que nem sempre foi entrave a grandes barafundas.
O ingresso era restrito, mas não se podia dizer que a forma de selecionar a freguesia fosse a mais fiável. Se, por exemplo, vinham em grupo. Um dos elementos subia a escada e dizia que tinha sido recomendado por outro frequentador “idóneo”. Depois regressava repetidamente à rua e trazia, de cada vez, mais dois amigos.
Mesmo com tantas recomendações, as coisas por vezes azedavam.
Como naquela noite em que um menino mau de boas famílias, filho de um procurador, levou para os salões de D. Cláudia tamanha sucia, que praticou “toda a casta de inconveniências, pondo em debandada as outras visitas” e provocando tal burburinho que chegou aos jornais. Escusado será dizer que, dessa vez, o Brito não deixou créditos por mãos alheias e deu uma tareia de bengala ao atrevido, quando depois o encontrou na rua dos Retroseiros.
Divertida mas igualmente atribulada foi a outra vez, em que Domingos Ardisson, janota e músico de segunda categoria, habitué da casa, ali chegou, sem aviso prévio e, de uma assentada, com 37 oficiais da esquadra inglesa fundeada no Tejo, que também não sabiam muito bem ao que iam. Imagine-se o tumulto!
O senhor Avrillon e a sua espécie de circo com aberrações, acrobacias e cavalos amestrados começou, a dada altura, a competir com as alegres soirées do Rossio e concorreu para o seu declínio.
O casal continuou a viver na mesma casa, mas o Brito andava cabisbaixo, uma sombra do que antes havia sido. D. Cláudia nunca mais foi vista, nem à janela. Diz-se que calou no peito, dignamente, a decadência do seu modo de vida. Na memória dos que tiveram o privilégio de frequentar a sua casa, ficou a saudade por esse espaço singular onde se podia, em simultâneo “tocar, jogar, valsar, amar”, o que não é coisa de pouca monta e que, só pelas alegrias que provocou, merece ser lembrado.
Eça de Queiroz faz isso mesmo. Em Singularidades de Uma Rapariga Loira, a casa de D. Cláudia é dada como referência para as Vilaça, mãe e filha, mulheres de rara beleza que encantaram Macário. Com tal referência, não é difícil de imaginar que a jovem e angelical Luísa se revelasse um poço de surpresas nem sempre agradáveis para o seu apaixonado.
À margem
O senhor Avrillon, que a dada altura começou a “roubar” clientela às denominadas “partidas da D. Cláudia”, tinha uma espécie de circo em que as vedetas eram cavalos capazes de inúmeras habilidades. Este espetáculo, que terá chegado a Lisboa por volta de 1835, correu o País com grande sucesso. Na Capital, montou o Circo Olímpico do Poço Novo, com atrações diversas: homem combustível, homem elástico, bailes de andas, hércules, pantominas napoleónicas, equilibristas, danças de corda… No Porto terá sediado uma grande companhia dos cavalinhos amestrados com igual êxito junto do público. Há notícias de mais apresentações, nomeadamente, em Guimarães e Braga, incluindo artistas portugueses, como o equilibrista Manuel Martins e António de Almeida. Famosos também, a égua Colibri e os bailes da senhorita Dolores.
Mas isso é outra história…
Nota: as imagens são meramente ilustrativas.
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
A ilustração portuguesa – semanário – Revista Literária e Artística
3º ano; nº 21 – 6 dezembro 1886
Brasil-Portugal
Nº57 – 1 junho 1901
Pinto de Carvalho (Tinop) – Lisboa d’outros tempos
https://archive.org/stream/lisboadoutrostem02carv/lisboadoutrostem02carv_djvu.txt
José Maria Eça de Queiroz – Contos - Singularidades de Uma Rapariga Loura – 3ª edição, Porto, Livraria Chardron de Lelo & Irmão, Editores, 1913, em The Project Gutenberg EBook of Contos, by José Maria Eça de Queirós.
http://www.gutenberg.org/files/31347/31347-h/31347-h.htm
http://araduca.blogspot.pt/2013/08/efemeride-do-dia-cavalinhos.html
Arquivo Fotográfico Digital de Lisboa
http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/sala/online/ui/SearchBasic.aspx
Paulo Guedes
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/PAG/000341
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000392 |
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/002274
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000072