Quando a fina flor da sociedade alcacerense se mobilizou para dar boleia ao rei
Os automóveis eram uma novidade, mas os melhores exemplares então existentes na terra foram colocados à disposição de D. Carlos, apeado no Alentejo devido a uma avaria no seu veículo.
D. Carlos visitava amiúde Alcácer do Sal, quer para ver “amigos”, que por estas terras mantinha, quer para caçar nos pinhais das redondezas, quer ainda, de barco, quando se dedicava a outra das suas paixões, o estudo das espécies marinhas e fluviais. Muitas vezes terá vindo por escolha própria, mas o acaso fê-lo certo dia aqui demorar-se sem que tal fosse por vontade. O transporte de sua majestade resolveu avariar e os poderosos da terra praticamente acotovelaram-se para ver qual chegava primeiro e oferecia boleia à real figura.
Estávamos em abril de 1905. Aproveitando uma Primavera amena, o monarca “rolava” à invejável velocidade de 30 quilómetros por hora. Acompanhado pelo coronel Malaquias de Lemos e pelo pintor Casanova, havia passado por Alcácer um pouco depois das sete da manhã, detendo-se apenas o suficiente para acautelar se a ponte de madeira, que então unia as duas margens do Sado e se encontrava em reconstrução, tinha estabilidade suficiente para suportar o automóvel.
Foi de tarde, já no regresso à Capital e depois de visitas a Grândola, Santiago do Cacém, Ferreira do Alentejo, Odivelas e Torrão, que os problemas se manifestaram.
No sitio do Vale da Grã, pouca distância após Alcácer, na estrada de ligação ao Poceirão, a viatura parou abruptamente “por se ter desarranjado qualquer coisa do motor”, provavelmente pouco habituado a passeios longos como aquele, que já contava com 229 quilómetros, relata o jornal local Pedro Nunes.
Logo, o chauffeur regressou a pé à então vila, em busca de ajuda na pessoa de José Serra Lynce, abastado proprietário da terra com quem sua majestade mantinha uma relação próxima. Em simultâneo, enviou diversos telegramas “a vários personagens de alta categoria”, informando do imprevisto, que impediria a presença do monarca em compromissos antes firmados.
Ora, coincidência das coincidências, na estação telegrapho postal de Alcácer estava uma das pessoas mais bem informadas da terra, nem mais nem menos que o secretário de redação do jornal Pedro Nunes, Adriano Augusto de Matos – por sinal republicano - que participou ao motorista a ausência da pessoa que procurava e, num ápice, espalhou a notícia dos trabalhos em que El-rei se achava, assim, parado no meio de nada com um carro avariado.
Em pouco tempo, conta o mesmo órgão de informação, as ilustres famílias de Alcácer com automóvel puseram-se à disposição para ajudar. Não terão sido muitas, já que, recorde-se, os veículos com motor de explosão haviam chegado ao nosso país havia apenas uma década e eram um luxo a que poucos se podiam dar.
O jornal dá conta que, rapidamente, se puseram em marcha em direção ao lugar onde o grupo tinha ficado apeado, um veículo de Dâmaso Paula Leite, conduzido pelo cocheiro da casa e transportando o chauffer do rei e a equipa do jornal, outro da família de João Alves de Sá Branco, que chegaria em primeiro lugar, embora tenha sido preterido.Carlos acabaria por pernoitar no Palácio de Palma, onde ainda recebeu as visitas do amigo José Serra Lynce, Francisco Victor Marques, à época administrador do concelho, e José Costa Passos, então vice-presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal, que não quiseram deixar passar a oportunidade de prestar cumprimentos a sua alteza.
Na manhã seguinte, já estava em Pegões a carruagem de luxo onde habitualmente viajava a família real, que foi atrelada ao comboio de passageiros e levou a distinta comitiva em direção a Bombel, interface da linha do Alentejo com ligação ao Barreiro, onde, presume-se, atravessaram o Tejo a bordo de algum “vapor”.
O carro seguiu para o Poceirão puxado a duas juntas de bois e, quanto ao soberano, “além do incómodo da demora e transtorno do programa que traçara, nada mais sofreu, sendo sempre magnifico o estado da sua importante saúde”, remata o jornal Pedro Nunes.
À margem
D. Carlos era um exímio marinheiro e era frequente deslocar-se pela costa Portuguesa ou fazer incursões pelo Tejo ou pelo Sado, ao leme das diversas embarcações ao serviço da família real.
É conhecido o empenho do rei no estudo da oceanografia, mas muitas destas viagens destinavam-se apenas a passeio e contacto com as populações, mormente com os ilustres das terras por onde passava. Na imagem, D. Carlos a bordo do Iate Sado, no rio com o mesmo nome, em frente a Alcácer do Sal, no já longínquo ano de 1904.
Aparentemente, a rainha D. Amélia partilhava o prazer do monarca, porque muitas vezes o acompanhava nestas viagens. Em sua homenagem, aliás, D. Carlos batizou quatro dos seus yachts. Foi no último destes que a família real, já então liderada por D. Manuel II, embarcou para o exílio após a implantação da República. Ironicamente, os novos governantes mudaram o nome ao navio, mas voltaram ainda a usá-lo muitas vezes em campanhas hidrográficas, tal como o rei teria gostado.
Mas isso é outra história…
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portugueza
1º ano: nº 30 - 30 maio 1904
Jornal Pedro Nunes - 9 abril 1905 in Notícias e fotografias de Alcácer do Sal
Séculos XIX e XX; Alcácer do Sal - dezembro 2016
http://pt.calameo.com/books/0050650798ed08615b95a
http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2015/06/yachts-reais-amelia.html