O homem que lutou em todas as guerras
Defendeu Portugal em muitas batalhas. Viveu numerosas vitórias e derrotas ao longo de uma existência de mais de um século. Casou quatro vezes, mas morreu sozinho.
Viver 111 anos é, ainda hoje, algo raro. Resistir até tão provecta idade depois de ter casado quatro vezes e combatido em igual número de guerras, ainda por cima numa época recuada face aos grandes avanços da medicina é, a todos os títulos, algo de excecional. Essa é a história de João Ferreira de Vasconcelos, a quem não se conhecem atos heroicos especiais ou grandes feitos, para além do seu grande talento para, simplesmente, sobreviver.
Nascido em 1777, na remota freguesia de Préstimo, concelho de Águeda, em plena serra do Caramulo, certamente com poucas alternativas de vida para além da agricultura, João Ferreira de Vasconcelos inicia a carreira militar com apenas 16 anos, na Campanha do Roussilhão, de tão má memória para as relações entre Portugal, Espanha e França.
Tal como os outros que não pereceram nas longinquas paragens desta contenda, regressou ao nosso País em 1895, mas já como 2º Sargento.
Estava encontrada a “vocação” deste jovem, que via assim afastadas durante muito tempo as belas paisagens das calmas margens do rio Alfusqueiro, onde tinha crescido.
É que, em 1807, quando Junot entrou em Portugal, já o nosso João era 1º Sargento e, no ano seguinte, fez parte das tropas de portugueses e ingleses que, na batalha do Vimieiro e sob o comando de Arthur Wellesley, puseram fim à 1ª invasão francesa.
Como não há duas sem três, quando, por sua vez, em 1810, também às ordens de Napoleão Bonaparte, Massena invadiu o nosso País, João Ferreira de Vasconcelos tinha ascendido a alferes e voltou a bater-se por Portugal, tanto no Buçaco, como nas Linhas de Torres. Aí sofreu o primeiro revés da sua vida militar, porque foi ferido por duas vezes, uma das quais com gravidade.
Desconhece-se quanto tempo demorou a recuperar dos ferimentos, porque pouco se sabe do que fez ou por onde andou nos dez anos seguintes.
Mas, a 24 de agosto de 1820, João estava novamente de arma na mão. Era já tenente e fazia parte dos militares que, no Porto, liderados pelos coroneis Sepúlveda e Cabreira, tentaram tomar as rédeas dum país farto de esperar por um rei que teimava em não regressar do Brasil e cansado de ser mandado pelos aliados ingleses, cada vez mais poderosos e senhores desta terra que não lhes pertencia. Era preciso convocar cortes e recolocar a autoridade nas mãos de portugueses, avançando com uma constituição moderna e liberal.
Essas eram as intenções da revolução, mas, como se sabe, a história nunca é linear, ou fácil. Muitas vezes é até estranha e surpreendente.
Assim, doze anos depois de se ter batido pelos novos ventos de mudança, João abraça a causa absolutista de D. Miguel.
Não se percebe quais terão sido as suas motivações para esta reviravolta de escolhas, mas sabemos que, já como capitão, o nosso homem esteve no Cerco do Porto e na batalha de Souto Redondo, esta ganha pelos absolutistas. Era ainda entre as hostes miguelistas que figurava aquando da convenção de Évora Monte, que definiu os termos da capitulação de D. Miguel e das suas forças, em 1834.
Parece que esta derrota, aliada talvez os 57 anos que já contava, ditou o fim da carreira militar de João Ferreira de Vasconcelos, que a partir daí se terá dedicado em exclusivo à agricultura. Regressou à sua terra Natal e a sua vida continuou, tomando novas feições.
Teve diversos filhos, netos e bisnetos, casando pela última vez já com 75 anos. Só a filha nascida deste quarto e último enlace lhe sobreviveu, atenuando pouco a solidão e relativa pobreza em que viveu os seus últimos anos, sempre lúcido e autónomo, qual ermitão, entregue aos seus pensamentos, à escrita das suas memórias e ao trabalho na terra, na pequena aldeia de Ventoso, onde morreu, em março de 1888.
Teve uma vida longa e cheia, que até já inspirou a criação de uma personagem fictícia: João do Préstimo*, protagonista de muitas aventuras e desventuras.
Mas, será que a ficção supera a realidade?
À margem
A Campanha do Roussilhão, também conhecida como Guerra dos Pirenéus, ocorreu no âmbito da Guerra da Primeira Coligação, que opunha Espanha e Inglaterra (coligadas) contra a França, então liderada por forças hostis resultantes da Revolução Francesa. Não querendo abandonar o seu estatuto de neutralidade, nem pretendendo ficar de fora das grandes negociações europeias, Portugal forma um contingente de cerca de cinco mil homens - o Exército Auxiliar à Coroa Espanhola - que, em novembro de 1793, chegou à Catalunha para reforçar os militares espanhóis e ingleses que já ali se encontravam. Após mais de um ano de intensos combates, os nuestros hermanos assinam com a França o tratado de paz de Basileia, sem que a posição portuguesa fosse sequer tida em conta. De repente, os militares lusos ficam isolados, longe de casa, numa guerra que não era sua, mas com cujas consequências tinham que arcar. Só em dezembro de 1795, começaram a chegar ao nosso país os “bravos” do Rossilhão. A alegria de os reaver foi tanta que o futuro D. João VI, então príncipe regente, decidiu instituir as primeiras insígnias de distinção do exército português. Não eram medalhas, mas representações de armas – a granada e a peça, consoante fossem militares de infantaria ou artilharia – bordadas no braço direito da farda, para identificar os homens que haviam participado em tal contenda longe de portas.
Mas isso é outra história…
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Nota: os dados sobre a vida de João Ferreira de Vasconcelos são exclusivamente baseados no que publicou a imprensa aquando da sua morte, citando apontamentos do próprio. Foi possível confirmar o seu nascimento, mas não foi possível descobrir o registo da sua morte.
*João do Préstimo é uma personagem criada pelo escritor e ex-diretor da Polícia Judiciária José Marques Vidal, pai dos conhecidos magistrados João e Joana Marques Vidal.
Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
Jornal O Alcacerense
PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/01/01/01/005
Nº9 – 25 mar. 1888
Biblioteca Nacional Digital
Diário Illustrado
17º ano, Nº5:359 – 11 mar. 1888
http://www.arqnet.pt/exercito/rossilhao.html
http://cliomarte.blogspot.pt/2013/02/breve-historia-da-medalha-de-campanhas.html
Por The National Gallery, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=24486949
https://www.infopedia.pt/$revolucao-de-1820
http://www.portugalweb.net/historia/viriatus/Vimeiro_02.asp.htm