Alcacerenses ricos iam em vilegiatura marítima a Setúbal
A outra cidade do Sado era o local de eleição para as famílias abastadas de Alcácer passarem o Verão. Por lá ficavam os que a isso eram obrigados por falta de dinheiro ou pelo árduo trabalho estival que os ocupava.
O verão em Alcácer do Sal pode ser extraordinariamente quente, para além dos mosquitos que hoje em dia apenas incomodam, mas que, num passado não tão longínquo, eram sinal de doenças como o paludismo, que afetava grande parte da população. Não admira que as famílias mais ilustres da terra se deslocassem em vilegiatura - termo caído em desuso, mas que, em finais do século XIX e início do seguinte, significava longas férias nas termas ou junto ao mar, para acalmar os nervos e aplacar outras maleitas. Para os alcacerenses, Setúbal era o local de eleição, pela proximidade e pelas condições extraordinárias para a vilegiatura marítima.
Os jornais de ambas as terras junto ao Sado dão conta do vaivém de notáveis e dos divertimentos que tinham à sua disposição, a começar pelos banhos propriamente ditos, então praticados por recomendação médica, envoltos num verdadeiro ritual de vestimentas e apetrechos especiais.
Em 30 de agosto de 1908, o semanário “Pedro Nunes”, através do seu correspondente em Setúbal, dava conta de já estarem naquela cidade “grande número de banhistas”, lembrando que ali existiam, à época, três estabelecimentos de banhos, “um nas Fontainhas, um na praia do Lago e outro na praia de Albarquel”, sendo que para este último existiam “carreiras diárias da cidade ao preço de 100 reis ida e volta, incluindo o respetivo banho”. O edifício da praia do Lago (zona da atual praça José Afonso) foi, aliás, o “primeiro estabelecimento importante do país“. Desenhado pelo conhecido arquiteto Ventura Terra, abriu ao público em 1903.
Era um tempo em que a avenida Luísa Todi não passava de um imenso areal a que chamavam rua da Praia, onde os pescadores estendiam as redes e os turistas portugueses e espanhóis tropeçavam elegantemente.
Precisamente nesta artéria, tinha casa António Caetano Figueiredo, o visconde de Alcácer, que ali acabaria por morrer. A sua mulher, Maria Paula Leite, fazia habitualmente uma temporada nas Caldas da Rainha, passando depois por Lisboa e Setúbal e só regressando a Alcácer, lá por outubro. E estes ilustres não eram os únicos a assim proceder.
A fazer fé nas atas da Câmara Municipal de Alcácer do Sal, Domingos Silvestre Branco, presidente em meados do século XIX, anunciava que o seu estado de saúde o obrigava a ir tomar banhos de mar durante todo mês de setembro, a exemplo do seu antecessor na presidência, António Mendes de Almeida, do vereador João da Costa Passos e do médico na altura em serviço público por aquelas bandas, Honorato Silveira do Coito, que se deslocava a Setúbal com esse fim.
Já o vereador Manuel Coelho dos Santos Leite, ia às Caldas durante 22 dias; Joaquim Correia Baptista, proprietário do jornal O Alcacerense, e a família, eram igualmente “clientes” das praias do Sado; tal como Henrique de Paiva, escrivão do tribunal de Alcácer e provedor da Santa Casa da Misericórdia local. O mesmo para José Félix Athaide Carvalhosa, administrador do concelho. Já Francisco Matos Galamba, o conhecido padre, presidente de câmara e fundador da Pazoa (Sociedade Filarmónica), tinha por costume ir ao Bussaco para se restabelecer.
Entre as famílias mais distintas do Torrão, era a mesma debandada: os Brandariz, os Silveira e os Carvalho e Silva iam em vilegiatura a Setúbal para se curarem os achaques, mas Manuel Carneiro Longarito, ia para as Caldas da Rainha em busca do mesmo alívio.
Na terra ficava quem não tinha outro remédio, porque a falta de meios, os negócios ou o trabalho árduo a isso obrigavam. É que o verão em Alcácer é tempo de recolher o sal que já brilha nas salinas; de tirar a cortiça por esses montados fora e de mondar o arroz para que amadureça sob o escaldante estio alentejano.
À margem
António Caetano de Figueiredo, primeiro e único Visconde de Alcácer, era um entusiasta da vilegiatura em Setúbal, não se sabendo se também era adepto dos banhos de mar. Certo é que possuía casa na então rua da Praia, atual avenida Luísa Todi, e foi precisamente aí, no número 262, que se finou, no dia 6 de setembro de 1883. Contava 73 anos e tinha ido em busca de alívio para os seus padecimentos de saúde.
Agraciado em 1871, pelo rei D. Luís, com o título de Visconde, António Caetano de Figueiredo parece ter sido uma pessoa relativamente consensual, amiúde referido como defensor das gentes e do progresso da sua terra.
Bem, isso é se excluirmos a questão política, claro, porque, ontem como hoje, a política consegue dividir familiares e amigos.
É amplamente conhecida localmente a divergência de opiniões entre António Caetano de Figueiredo e António Campos Valdez, respetivamente representantes do Partido Regenerador e do Partido Progressista. É, aliás, do fim dessa amizade que resulta a existência de duas sociedades filarmónicas, rivais até hoje.
Mas isso é outra história…
Já contei como as conservas "mataram" a vilegiatura marítima em Setúbal, aqui.
Nota:
As imagens 1 e 2 são de alcacerenses - não identificados - a banhos, presumivelmente nos anos 40-50 do século XX. Pertencem ao fundo de Baltasar Flávio da Silva, no Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal.
As imagens 3 e 4 são meramente exemplificativas do que era a praia no século XIX.
Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/02/01/001
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/066
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/270
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/277
Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal
Jornal Pedro Nunes
1908 - 1911
Vilegiatura Marítima em Setúbal do século XIX ao início do século XX, de Inês Gato de Pinho, edição LASA – Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, dez 2010
https://pt.slideshare.net/anagualberto/ambientes-no-sculo-xix
https://www.sabado.pt/vida/detalhe/os-primeiros-dias-na-praia