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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Quando o Estado faminto quis ganhar dinheiro com fósforos

 

 

O monopólio deu lucro a poucos, prejudicando os muitos que antes viviam da indústria. Para o Estado, nunca foi tão proveitoso como se pretendia, mas serviu para proporcionar melhores condições de trabalho num sector insalubre e repugnante

 

fosforos biblioteca arte fundacao caloute gulbenki

O fósforo. Objeto prosaico, quase insignificante à luz dos nossos dias. No final do século XIX, no entanto, a indústria fosforeira nacional empregava 400 pessoas em 34 unidades e gerava significativa faturação anual. Nada tão sonante como o milionário negócio do tabaco, mas suficientemente apelativo para o sempre depauperado e faminto Estado querer tirar proveito...pelo caminho prejudicando uns quantos e beneficiando outros. Soa-lhe familiar? Esta é a história do monopólio do fósforo, que o governo regenerador de Hintze Ribeiro impôs, em 1895.

 

Corria o ano de 1864 quando foi criada em Lisboa primeira fábrica de palitos de lume a partir de fósforo. A indústria rapidamente proliferou em unidades de pequena dimensão, maioritariamente familiares e no norte do País.

 

Em comum, tinham as péssimas condições de trabalho - com consequências nefastas e irreversíveis para os mais expostos aos produtos químicos - e a fraca qualidade do produto final. O panorama era de tal forma insipiente que até o Estado custou a perceber o seu potencial fiscal.

fosforos centro documentacao industria do porto.JP

 

Numa primeira fase, esse despertar partiu dos municípios. Estes reivindicavam arrecadar os impostos provenientes o sector fosforeiro para pagar o ensino primário, que lhes havia sido imputado sem correspondente transferência de verbas.

 

Foram várias as tentativas falhadas de obter o rendimento pretendido – um mínimo de 260 contos de reis. Taxou-se a matéria prima e a produção, fizeram-se contas às caixas e ao peso, tabelou-se a importação, que se limitou extraordinariamente; proibiu-se a criação de novas fábricas ou a ampliação das existentes.

O cerco apertava-se, mas a evasão prevalecia e as receitas fiscais tardavam.

O Estado hesitava entre estabelecer o monopólio, deixar as empresas agregarem-se e ganharem escala, suprimindo as mais pequenas e de difícil controlo. De uma penada, eliminava a concorrência e conseguia um bom rendimento.

No parlamento, os mais esclarecidos argumentavam que, já que se tratava de reformular e disciplinar o sector, seria interessante, para além da rentabilidade, exigir condições de segurança, higiene e salubridade, regulamentando o contexto de trabalho, à semelhança do que já acontecia em outros países desenvolvidos.

fabrica lordelo do ouro centro documentacao indust

 

Depois de avanços e recuos, em 1895 avançava finalmente o monopólio.

 

O adjudicatário foi Francisco António Borges, ligado ao sector financeiro do Porto, que promoveu uma sociedade anónima de responsabilidade limitada, reunindo um punhado de importantes capitalistas, que deram origem à Companhia Portuguesa de Fósforos.

 

As determinações do Estado apontaram para concentração da produção num mínimo de duas grandes fábricas. A opção recaiu sobre a unidade da rua do Açúcar, no Beato (Lisboa) e a de Lordelo do Ouro (Porto) - na imagem. Os pequenos fabricantes e os trabalhadores das indústrias excluídas deveriam ser indemnizados ou integrados, num processo de negociação que foi tudo menos pacífico.

 

Até à constituição das grandes sociedades, a indústria fosforeira tinha uma organização rudimentar, instalando-se em espaços exíguos, bastando um “investimento de dois contos de reis para apetrechar uma fábrica com capacidade para produzir um milhão de fósforos por ano".

operarios biblioteca de arte fundacao calouste gul

 

Karl Marx descrevia o sector como insalubre e repugnante, com horários de trabalho que variavam entre as 12 e as 15 horas, também noturnas, refeições irregulares tomadas no próprio local, “envenenado pelo fósforo”, onde não faltavam crianças, que correspondiam a metade duma mão-de-obra que usufruía salários muito baixos, mesmo para a realidade da época.

O risco das emanações tóxicas, que podiam provocar necrose ou gangrena, e os acidentes frequentes que as deficientes condições de segurança obviamente não conseguiam evitar, completavam o quadro e uma indústria mal-afamada, sobretudo em meio urbano.

O cenário mudou radicalmente com o monopólio, mas o uso de algumas substâncias mais perniciosas – como o fósforo branco - a cabal industrialização e consequente melhoria da qualidade do produto – que ora não acendia em resultado da humidade, ora se autoinflamava -  só se conseguiria obter já após o fim da concessão, em 1925.

Uma longa história pautada pela inglória luta contra a falsificação, a fraude, o contrabando e a produção clandestina. E, por outro lado, marcada pela brutal fiscalização privada, que punha na cadeia mesmo o mais pobre que fosse apanhado com fósforos “ilegais”, ao mesmo tempo que a própria indústria também “fazia batota”, encobrindo lucros.

Tudo para enganar o Estado e o comum cidadão, que dependia deste produto de primeira necessidade.

Nada de novo, portanto.

 

 

À margem 

benfeita.JPG

Três fábricas de palitos de lume se destacavam de entre as 34 que existiam em Portugal no ano em que foi decretado o monopólio do sector. Santa Clara, Tanque e União (ou do Fundo) eram as unidades fabris predominantemente familiares da pequena aldeia da Benfeita, no concelho de Arganil e que, em conjunto, produziam cerca de quatro milhões de caixas de fósforos de enxofre por ano.

Pode não parecer muito, mas são números espetaculares para tão remota e exígua origem.

 

É que, tal volume correspondia ao fruto do trabalho de somente 45 pessoas e era apenas batido por outras três indústrias – uma em Lisboa e duas no Porto.

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Com o fim destas pequenas indústrias, entre os operários da aldeia, houve quem preferisse receber a indemnização por inteiro e mudar de vida; quem assumisse o seu lugar nas grandes unidades de Lisboa e Porto; quem passasse a receber uma pensão e até os que venderam o seu posto a quem deu mais por ele.

A sua história é contada por Mário Mathias.

Natural da Benfeita e grande defensor do seu torrão natal, foi jornalista, jurista, alto quadro público, político e escritor.

À sua iniciativa se deve a primeira linha telefónica da Benfeita para o exterior e o “sino da paz”, que tocou pela primeira vez a 8 de maio de 1945, anunciando o fim da guerra na Europa.

Todos os anos, vibra novamente com 1.620 badaladas, uma por cada dia que durou a I Grande Guerra, na qual os portugueses participaram com tão funestos resultados*.

 

Mas isso é outra história...

 

 

 

 

*Já escrevi sobre a participação dos portugueses na I Grande Guerra aqui.

 

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Fontes

Fernando Sottomayor, A indústria dos fósforos: das origens ao monopólio (1862-1926). O caso do Porto; Universidade do Porto – Faculdade de Letras – Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais – Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, orientação de Gaspar Martins Pereira, 2011, disponível em https://comum.rcaap.pt/handle/10400.26/5016

 

Mário Mathias, Benfeita, artigos, crónicas, estudos e notas do caracter histórico-monográfico 1963-1965; Edição fora do mercado organizada por «O Facho» - Boletim Paroquial das freguesias da Benfeita e da Cerdeira.

 

http://www.benfeita.net/mario.htm

 

Imagens:

Interior da 1º Fábrica da Fosforeira Portuguesa

Centro de Documentação do Museu da Indústria do Porto

Óperários no Interior da fábrica Companhia Portugueza de Phósphoros da em Lordelo do Ouro, no Porto

Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian

Processo de fabrico dos fósforos realizado na sua maioria por mulheres na fábrica da Companhia Portugueza de Phósphoros da em Lordelo do Ouro, no Porto

Centro de Documentação do Museu da Indústria do Porto

Exterior da fábrica Companhia Portugueza de Phósphoros da em Lordelo do Ouro, no Porto

Centro de Documentação do Museu da Indústria do Porto

Tudo em:

Cláudia Raquel Ferreira de Castro, Phósphoros – rótulos com história, ESAD – Mestrado em Design e Comunicação, orientação de Andrey Howard, 2012, disponível em https://comum.rcaap.pt/handle/10400.26/5016

 

http://gisaweb.cm-porto.pt/

Rótulo de caixa de 50 a 55 fósforos amorfos, com o preço de 10 réis.
Imagem de águia com a pata esquerda sobre o globo terrestre.

 

Benfeita e Mário Mathias - gentilmente cedidas pela família