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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

As joias da rainha falida foram a leilão

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Durante décadas, D. Maria Pia empenhou o tesouro familiar para satisfazer necessidades financeiras cada vez mais prementes. Com a morte do “amigo” banqueiro, descobriu-se a verdade de uma monarquia havia muito arruinada que, já em tempos de Republica, viu a sua antiga riqueza ser leiloada.

 

Pérolas raras; gemas ímpares; ouro e prata finíssimos, artisticamente trabalhados em objetos que a multidão aprecia com olhos ávidos de cobiça e um certo sorrido escarninho, enquanto os especialistas analisam, como piratas de outros tempos avaliando o produto de um saque e regateando o seu quinhão. Eram 367, as requintadas peças que antes adornaram a real figura de Maria Pia e naquele início de verão de 1912 foram à praça para que se recuperassem os valores emprestadas à rainha, que vivia acima das suas posses e dependia da boa vontade do amigo banqueiro para continuar a manter as aparências.

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Ninguém sabe ao certo quando começou tal expediente, quando é que o banco se transformou em penhorista e a rainha começou esse ciclo vicioso de empenhar as joias pessoais, mas também as baixelas de prata e outras preciosidades, enfim, tudo o que pudesse ter valor para superar despesas imprevistas que a sua condição não lhe permitia conseguir de outra forma. Com a instauração da República, ficou a nu a verdadeira condição da soberana, mas com a morte do amigo Henry Burnay, em 1909, e de D. Maria Pia, em 1911, calaram-se para sempre as explicações sobre tal entendimento.

A sede do Banco de Portugal foi o palco escolhido para mostrar e vender a quem desse mais o riquíssimo espólio. A missão durou vários dias e atraiu numerosa assistência, em especial “senhoras da primeira sociedade” lisboeta, que foi como a imprensa classificou as muitas beldades – outras nem tanto – que se acotovelaram para conseguir os melhores lugares.

Aliciado para o evento foi, claro está, o exclusivo grupo que constituía a nata dos joalheiros europeus, colecionadores e comerciantes de joias.

E mirones, centenas deles, que se espalharam pelos corredores, tal como os muitos polícias presentes.

maria pia3.JPGDurante o leilão, houve de tudo: lotes “disputados com ardor pelos entendidos”, outros, contrariamente, “licitados com muita dificuldade”, outros, ainda, retirados porque não atingiram o valor pretendido.

De fora não ficaram igualmente acusações de “burla” e indignação pelo preço considerado elevado de alguns objetos, o que fez, com estranha facilidade, descambar para uma “balbúrdia medonha” a aparente fineza de trato de tão educado público.

Assim, foram desfilando pregadeiras, pulseiras, colares, brincos, gargantilhas, diademas – um dos quais, por curiosidade, comprado a prestações por D. Pedro V para ofertar a D. Estefânia - fivelas, botões de punho, frascos de cristal e safira, alfinetes de gravata, uma lapiseira em ouro, fruteiras, candelabros…enfim, toda uma parafernália de bens sofisticados, cuja utilidade, em alguns casos, escapava até ao cidadão comum e que a rainha dolorosamente empenhou para satisfazer outros luxos ou atender à caridade, pela qual era tão reconhecida como pelo exagero nos adereços. Peças que herdou, recebeu de presente ou comprou e das quais se viu privada.

 

 

O estratagema manteve-se porque o poderoso Burnay – uma espécie de “dono disto tudo” daquela época - “emprestava” as joias à monarca, que já não era sua dona, para que se pudesse adornar com elas em determinadas ocasiões oficiais, devolvendo-as aos cofres do banco uns dias depois, sem ter que dar justificações inconvenientes, embora, imagine-se, angustiada e triste com tal situação.

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O leilão, “nota palpitante da vida lisboeta” enquanto durou, angariou 851.678 escudos, praticamente o triplo dos cálculos iniciais para o valor das peças.

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Ironicamente, por aqueles dias, um outro acontecimento reuniu a fina flor da sociedade da Capital da já República Portuguesa.

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Na igreja do Loreto, celebrou-se missa para assinalar um ano sobre a morte da princesa italiana que chegou a Portugal ainda adolescente para casar com D. Luís e por estas bandas foi rainha quase três décadas.

A mesma Maria Pia que, por opção, morreu na sua terra natal, longe dos restantes elementos da família no exílio e é a única que não está sepultada em Portugal.

Morreu sozinha, mas poupada ao desgosto de ver leiloados os tesouros que um dia foram seus.

 

 

 

 

À margem

 

 

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 Ao longo de uma história tão longa como a de Portugal, muitos foram os momentos em que as joias da coroa – acumuladas em outras ocasiões mais felizes e prósperas – serviram de moeda de troca em apertos financeiros, simplesmente foram malbaratadas ou roubadas. O domínio filipino, o terramoto e tsunami de 1755 e a transferência da corte para o Brasil durante as invasões francesas foram, provavelmente, os períodos em que se registaram mais perdas no tesouro real. O que sobra e o que tem vindo a ser recuperado ao longo dos tempos – nomeadamente peças leiloadas em 1912 - está à guarda do Estado e foram vistas em conjunto apenas uma vez, numa exposição realizada em 1954.

45520858081_e3a59dce26_m (1).jpgEstre cerca de cem peças estão algumas especialmente emblemáticas, como a coroa real com 2,5 quilos de ouro; a tabaqueira mais luxuosa do mundo; a laça - laço de peitilho com 216 diamantes e 31 esmeraldas (na imagem) ou o colar e diadema de estrelas, parte de um conjunto que constituiu uma das primeiras encomendas de Maria Pia ao chegar a Portugal. A partir de 2020 espera-se que possam voltar a ser admiradas, de forma permanente, numa nova ala do Palácio Nacional da Ajuda, a ser erguida especialmente para esse efeito e que conclui a construção daquele monumento, que esteve encerrado meio século após a implantação da República.

Mas isso é outra história...

 

 

 

Fontes:

Hemeroteca Digital de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

A Capital

Edições de 20, 23, 24, 25, 26, 27, 29 30, 31 jul. 1912

O Occidente

35º ano, XXXV volume, nº1209 – 30 jul. 1912

Illustração Portugueza

Nº114 – 27 abr. 1908

Nº282 – 17 jul. 1911

Nº334, 15 jul. 1912

Nº337, 5 ago. 1912

 

http://www.palacioajuda.gov.pt/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Pia_de_Saboia

https://expresso.sapo.pt/cultura/2016-09-20-O-esplendor-de-uma-gloria-perdida#gs.27EQLpc

Imagens

Fontes mencionadas

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Eduardo Portugal

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001229

 

 Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian

https://www.flickr.com/photos/biblarte/albums/72157702537671714

 

O administrador do concelho que era tio de Sacadura Cabral

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Figura pouco estudada da história recente de Alcácer do Sal, reuniu consensos entre monárquicos e republicanos, mas merecia a crítica popular porque a sua criada atirava pela janela o conteúdo dos penicos da casa.

 

Henrique de Sacadura Freire Cabral. O nome diz-lhe alguma coisa? Provavelmente não, porque se conhecem poucas memórias públicas deste ilustre beirão que por Alcácer do Sal se fixou. Foi administrador do concelho pelo menos durante uma década e fez a inegável proeza de transitar sem beliscadura do regime monárquico para o republicano. Curioso é também descobrir que era tio de outro Sacadura Cabral, esse bem mais conhecido e que dá nome a uma importante avenida daquela terra.

Os registos não explicam, para já, o que levou Henrique a rumar a Alcácer, embora este seja referido igualmente como lavrador nesta região onde chegaram a trabalhar sazonalmente mais de 700 beirões, os “ratinhos”, mão-de-obra agrícola de grande valia. Há ainda outro documento em que é apontado como empreiteiro de obras públicas, num litígio relacionado com a pavimentação de uma estrada de acesso à povoação de Santa Susana, isto entre 1890 e 1898

Anos depois, surge em variada documentação assinando como administrador do concelho, o magistrado representante do governo central, garante da boa aplicação das leis e responsável pela autoridade policial.

pt_ahmalcs_cmalcs_fotografias_02_01_0060.jpgUm cargo de carácter burocrático e algo repressivo, o que pode estar na origem do pouco reconhecimento dos alcacerenses para com Henrique de Sacadura Freire Cabral. No entanto, pode até ter sido devido a esta ligação familiar que Alcácer atribuiu o nome dos aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral àquela que é uma das suas mais importantes artérias.

É que Artur Sacadura Freire Cabral, o oficial da Marinha Portuguesa que ficou conhecido por, em 1922, ter feito, em conjunto com Gago Coutinho, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, era sobrinho do administrador do concelho, filho primogénito de um seu irmão, também chamado Artur.

O clã é natural de Celorico da Beira e, ao todo, Henrique de Sacadura Freire Cabral teve 13 irmãos. Não é de estranhar que exista registo de por Alcácer ter passado pelo menos outro elemento da família: Francisco Augusto Freire Cabral de Sacadura e Albuquerque, que ali exerceu as funções de subdelegado do Ministério Público, também no início do século XX.

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Quanto a Henrique, já em 1908, o jornal Pedro Nunes criticava em tom jocoso o facto de a menina sopeira, que trabalhava para o “Capitão Sacadura”, atirar diariamente pela janela “líquidos e sólidos” aromáticos, que conspurcavam a rua e os transeuntes. Algo muito censurável, especialmente para quem, acima de todos os outros, deveria dar o exemplo.

O desagrado, contudo, não impediu, em 1910, dias depois de ter sido deposto, que Henrique fosse chamado pela Comissão Republicana, que assumiu o poder na Câmara Municipal após a queda da Monarquia, por se entender que ele era quem reunia melhores condições para continuar a administrar o concelho.

Casou com a conterrânea Maria do Patrocínio, com quem teve dois filhos. Morreu em Lisboa, a 1 de junho de 1939, poucos dias antes de completar 80 anos, e encontra-se sepultado no Cemitério do Alto de São João.

O filho, Ricardo, amanuense da Fazenda Pública, morreria cedo, com apenas 27 anos, numa casa da rua Direita, em Alcácer do Sal. A filha, Maria do Amparo, iria unir-se a outra família com nome sonante na terra: os Lara Alegre. Casou com Joaquim Alberto de Lara alegre, filho do conhecido médico Joaquim José Alegre, que dá nome a uma rua do centro histórico e que deixou basta descendência – nove filhos -  alguma da qual ainda a viver naquela cidade alentejana ou com ela mantendo ligações.

 

À margem

predio arco do coronel.GIFNa época (1908) em que é relatado o episódio dos “líquidos e sólidos” aromáticos, Henrique  Sacadura Cabral morava no emblemático prédio do arco do Coronel (e este, quem seria?), edifício hoje ocupado por uma albergaria abandonada (na imagem, o primeiro da direita), mas onde se cruzaram pessoas e acontecimentos relevantes para a história recente de Alcácer do Sal. Em meados do século XIX, ali residia Manuel José Ponce, que pediu autorização para fazer um cais em frente à sua morada, de modo a facilitar a recolha dos produtos que diariamente recebia por rio. Ali teve lugar, já em 1890, o primeiro comício republicano realizado na então vila de Alcácer do Sal, tendo o espaço sido cedido por José Godinho Jacob. Este comerciante e industrial, que chegou a ser também presidente de câmara, fez gravar na fachada as suas iniciais e a data 1894 (ainda visíveis) e ali viveu com a mulher, Emília Vila Boim. Pelo menos mais dois presidentes passaram pelo prédio do Arco do Coronel: António Xavier do Amaral e o seu filho, Carlos Xavier do Amaral, que ali residiram já no século XX. Paredes meias com este imóvel, existe outro igualmente importante e devoluto: o denominado "clube dos ricos", onde os lavradores e políticos se reuniam para discutir negócios e jogar à batota, mas também  se chegaram a realizar bailes de debutantes para apresentar as moças casadoiras de boas famílias à sociedade local.

Mas isso é outra história…

 

Fontes

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/DELPROCURADORIA/01/02

PT/AHMALCS/CMALCS/EXTERNO/02/05/001

PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/02/01/001

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0077

 

https://geneall.net/pt/

Por unknown authorship - http://www.vidaslusofonas.pt/sacadura_cabral.htm, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7304818

Instantâneos (22): As operárias da Fábrica Confiança

 

 

 

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As mais prendadas usavam avental branco sobre saia xadrez ou de cor escura, sem alarde, em tela barata e tosca, contrastante em tudo com a pureza, a suavidade e o requinte de acabamentos dos tecidos de que se ocupavam diariamente.

 

Costas curvadas sobre as máquinas, ou aproximando os olhos do intrincado bordado em execução por dedos ágeis, embora rudes, marcados pelas picadas frequentes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Chegaram a ser mil, as mulheres que, laboriosamente, assim criavam os primorosos atavios e toilettes vendidos depois na luxuosa frente de loja da Fábrica Confiança, ali, em plena rua de Santa Catarina, hoje tão no centro da cidade do Porto, mas na época ainda um arrabalde em expansão.

 

 

 

 

 

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A grande unidade fabril sucedeu à Bela Jardineira, e à primeira Camisaria Confiança, ambas fundadas por António José da Silva Cunha, um industrial vindo de Amarante com aspirações políticas, que ali levou por diante a “maior fábrica de roupas brancas da Península”, como orgulhosamente se afirmava na publicidade de prestígio que fazia publicar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Na empresa, onde trabalhavam mais de uma centena de moderníssimas máquinas de costura com motor elétrico, - algo novo para a época - o mulherio labutava sob o olhar atento de quem mandava, para que a conversa não fervilhasse e a atenção não se perdesse num meio com tantas moças juntas, horas e horas a fio.

Mesmo assim, o ruído podia ser ensurdecedor.

 

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A maioria estava nas oficinas de costura de onde saía de tudo um pouco: dos atoalhados aos lençóis, dos enxovais infantis às corbelhas de noiva; das camisas masculinas às apuradas toiletes de senhora, dos lenços de pescoço, às ceroulas....

 

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Muitas outras distribuiam-se pelas restantes áreas de fabrico: da fiação (imagens 6 e 7) à lavandaria (imagem 8); da oficina de corte ao secador; dos brunis ao embalamento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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As contas, a papelada, a venda, ficavam à responsabilidade dos senhores, que teriam alegadamente maior vocação para isso e também para algumas tarefas que exigiam mais força que jeito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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De resto, era um mulherio que nunca mais acabava, a desfilar à hora da saída, rua de Santa Catarina abaixo, perante os mirones dos mancebos, que não perdiam oportunidade de fazer olhinhos a alguma costureirinha mais engraçada ou suficientemente audaz para retribuir o olhar.

 

 

Tão belo e movimentado espetáculo não escapou ao interesse dos entendidos em imagem. 

 

 

Foi assim que, em 1896, estas operárias, se transformaram nas protagonistas involuntárias do primeiro filme português, quando Aurélio Paz dos Reis, amigo do patrão, as fixou para a posteridade com o seu aparelho cronofotográfico (pode ver a sequência aqui). Fez-se história!

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A fábrica Confiança – que sucedeu às unidades mais pequenas, Bela Jardineira e Camisaria Confiança, instalou-se na rua de Santa Catarina, corria o ano de 1894. 

 

No local onde antes tinha existido o Teatro de Santa Catarina, surgiram umas instalações com 4.800 m2.

 

 

 

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O objetivo era claro: conquistar o mercado nacional, das colónias portuguesas e do Brasil.

 

 

 

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O sucesso prevaleceu ainda pelo século XX adentro, com a loja a tornar-se ponto de encontro incontornável para quem visitava a baixa portuense, até porque passou, a partir de certa altura, a ter outras valências, como salão de chá.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fontes

Arquivo Municipal do Porto

http://gisaweb.cm-porto.pt/

Foto Guedes

F-NV/FG/11/302; F-NV/FG/11/353; F-NV/FG/11/354; F-NV/FG/11/303; F-NV/FG/11/307; F-NV/FG/11/348; F-NV/FG/11/344; F-NV/FG/11/300; F-NV/FG/11/304; F-NV/FG/11/573; F-NV/FG/11/499; F-NV/11/347

Postais

Editor: Le Temps Perdu

D-PST/1649; D-PST/1636

 

Germano Silva, A camisaria Confiança, disponível em:

https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=10200612

 

 

Biblioteca digital luso-brasileira

Litografia Nogueira da Silva, Francisco Augusto, disponível em

http://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/272922?locale-attribute=en

 

https://www.youtube.com/watch?v=3G34fwIqqD4

 

http://restosdecoleccao.blogspot.com/2013/01/fabrica-confianca.html

 

O português que reinventou os monumentos italianos

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É difícil enumerar todos os cargos importantes que Alfredo d’Andrade ocupou em Itália. O castelo e o núcleo medieval de Turim, admirados por milhões de turistas, saíram da sua imaginação… no século XIX.

 

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Por estes dias, Cristiano Ronaldo é um dos nomes mais falados em Turim. Mas, e lhe disser que os principais símbolos arquitetónicos daquela cidade italiana se deverem ao trabalho de outro Português? Alfredo d’ Andrade foi o homem que restaurou e reconstruiu um grande número de monumentos italianos, apagando o rasto de restauros desastrosos, devolvendo-os à sua traça original, recriando-os ou até, pasme-se, criando-os de raiz. O castelo e o núcleo medieval de Turim (na imagem) são dois exemplos que saíram da sua imaginação e de um apurado estudo histórico.

É que, ao contrário do que se pode pensar à primeira vista, aqueles imponentes edifícios têm apenas 134 anos e nasceram como cenários para uma exposição mundial. Acabaram por permanecer como principais atrações turísticas da cidade que agora aplaude o nosso futebolista.

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Antes, já Itália se tinha rendido a este lisboeta nascido em 1839 e embarcado aos 14 anos para aquele país, em busca de aprofundar estudos. Em vez de se dedicar à original carreira na área comercial e de gestão, estudaria pintura e tornar-se-ia arquiteto e arqueólogo. Não um qualquer, mas um dos mais influentes, aclamados e poderosos do seu tempo.

Alfredo César Reis Freire d’ Andrade foi o principal mentor da reconstrução de monumentos que se encontravam em situação de degradação extrema.  Entre muitas outras igrejas e conventos, palácios e fortificações, edifícios tão relevantes como o Castelo de Rivara (Turim); a Torre de Paillleron, os castelos de Montalto-Dora e Fenis (na região de Aosta - na imagem); o palácio de S. Jorge e a porta Soprana, em Génova; o castelo de Pavone Canavese; e a impressionante Sacra de S. Miguel, no vale de Susa (na imagem a cores).

Na cidade de Turim, que o nomeou cidadão honorário, foi responsável por levar à sua verdadeira essência a emblemática Porta Palatina (na imagem, o antes e o depois), bem como por, em ano e meio, recriar, como cenário para a exposição industrial de 1884, o castelo e a aldeia medieval. O rigor histórico terá sido tal, que o poder político decidiu passar a construção a definitiva, como exemplo do que seria a cidade na época retratada e elemento de atração turística.

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Por aqui se vê a confiança que os italianos depositavam neste português. Mas não é tudo.

castelo de fenis.GIFNão é fácil enumerar todos os cargos importantes que ocupou: superintendente dos monumentos de Piemonte e da Ligúria; membro do Conselho Superior de Antiguidades e de um enorme conjunto de comissões para o restauro de monumentos de Verona, Vicenza, Olvieto, Pisa, Nápoles e Palermo. Fez parte dos grupos para avaliação artística do monumento a Vítor Emanuel II; e para a edificação do sepulcro do rei Umberto, ambos em Roma, bem como do comité para a reconstrução da basílica de S. Marcos, em Veneza.

Foi, em vida e postumamente, alvo de numerosas homenagens, dá nome a fundações, prémios artísticos e ainda hoje o seu trabalho é visto com pioneiro, constituindo tema para conferências, estudos, colóquios e trabalhos.

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E por cá, no país que o viu nascer? Pois é certo que Alfredo d’Andrade escolheu naturalizar-se italiano, mas será motivo para ser um nome tão pouco conhecido?

O chalet de Fontalva, em Barbacena (Alentejo), é talvez a sua obra mais conhecida - até porque já foi cenário de uma novela portuguesa - mas Alfredo d’Andrade é também o autor do alargamento do Terreiro do Paço através de um aterro que ganhou área ao rio Tejo, corria o ano de 1857. Do seu trabalho de pintura, o museu do Chiado guarda pelo menos uma obra.

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Pintor e arqueólogo, o seu espólio é atualmente gerido por uma fundação e pode ser visto no museu de Pavone Canavese, para além de a sua marca ainda permanecer num elevado número de monumentos italianos que devem a este lisboeta a aparência que atualmente contemplamos.

 

 

 

 

À margem

0001_M.jpgAs opções estéticas seguidas no restauro de monumentos são frequentemente polémicas, tanto mais que, não raras vezes, implicaram a recriação da sua traça ao gosto de diferentes épocas ou, não menos discutível, a imitação das características arquitetónicas originais.

Em Portugal há muitos exemplos de edifícios em que só um olhar muito entendido e atento percebe que a sua aparência atual não se deve aos seus primitivos autores, mas si aos que os reinterpretaram já no século XIX ou XX.

Toda a ala oeste do conjunto do Mosteiro dos Jerónimos, onde estão instalados o Museu Nacional de Arqueologia e parte do Museu da Marinha, aparentemente tão ao estilo manuelino, são obra oitocentista, tal como o portal e os dois torreões que ladeiam a entrada do Museu da Marinha (topo poente - na imagem), que saíram da imaginação dos cenógrafos do Teatro de São Carlos, Rambois e Cinatti.

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No Estado Novo, por outro lado, a “moda” foi o devolver os monumentos à sua suposta traça inicial, o que levou a novas reinvenções, com o propósito de engrandecer a antiguidade da história nacional.

Exemplos dessas transformações controversas são a Sé de Lisboa, cujas torres sineiras ganharam ameias antes inexistentes; o Paço de Guimarães, reerguido praticamente do zero, ou o próprio castelo de S. Jorge, que, segundo piada da época, não seria reconhecido pelo próprio Martim Moniz, que ali terá morrido “entalado”, segundo conta a versão então aceite dos acontecimentos, também ela composta para provocar mais emoção.

Mas isso é outra história…

 

 

 

 

 

Fontes

Illustração portuguesa

Nº 170 – 24 mai. 1909

Texto de Limbertini Pinto

https://it.wikipedia.org/wiki/Alfredo_d%27Andrade

https://www.mondadoristore.it/Alfredo-D-Andrade-Precursore-Carolina-Filippini/eai978887637045/

http://viadeiportoghesi.blogspot.com/2016/11/convegno-sullattualita-di-alfredo.html

https://it.wikipedia.org/wiki/Alfredo_d%27Andrade#/media/File:D%27Andrade_1908.jpeg

https://en.wikipedia.org/wiki/Palatine_Towers

http://www.romeacrosseurope.com/?p=5039

http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6491

https://artoblog.it/levoluzione-della-porta-palatina-nel-corso-dei-secoli/

Di Original uploader was Fotogian at it.wikipedia - Transfered from it.wikipedia, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=536542

http://www.mosteirojeronimos.gov.pt/pt/index.php

Visão História

Nº 41 – maio 2017 – texto de Luís Almeida Martins

Nº 46 – abril 2018 – texto de Maria João Neto

 

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

Paulo Guedes

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/PAG/000349

 

Filmarte

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000405

 

Como duas pequenas chinesas fizeram tremer a jovem república portuguesa

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O povo saiu à rua numa fúria difícil de dominar. Tudo por causa daquelas estranhas mulheres que tiravam bichos dos olhos e prometiam dar a luz aos que viviam na escuridão.

 

ilustracao port 7.JPGComícios; manifestações; exposições ao governo, ao parlamento e ao chefe de Estado; debates políticos; tiroteios; explosões; apedrejamentos; milhares nas ruas; centenas detidos; dezenas feridos e um morto. Treze meses apenas sobre a implantação da República, Lisboa e depois outros pontos de País foram assolados por uma tal revolta popular, que o novo sistema político e os seus protagonistas tremeram na base. E o que esteve na origem de tal tumulto? Não foram os realistas que ainda brandiam armas no Norte e esgrimiam argumentos nos tribunais que os julgavam por conspiração…não! Foram duas jovens e pequenas mulheres que, chegadas de Xangai, prometiam dar visão aos cegos e, por pouco, não amotinavam todo um Portugal à beira de um ataque de nervos.

As “chinesas milagrosas”, Ajus, de 31 anos, e Joe, de 29, teriam passado por várias nações, nomeadamente na Europa. Entraram em terras lusas pelo Sul, provenientes de Espanha, para depois se instalarem no hotel Algarve, na rua da Padaria, na Capital. Aí, conta a imprensa da época, prometiam curar males da vista.

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A sua técnica passava pela massagem das pálpebras com uns “pauzinhos”, com que depois, pasme-se, retiravam dos olhos – “como quem tira burriés de dentro da casca com um alfinete” - uma espécie de larvas que a todos causavam espanto.

Por efetivo poder de tal método ou mera sugestão, foram vários os que garantiram ter “visto a luz” após a intervenção das chinesas que assim puseram fim a anos de trevas e outras maleitas oftálmicas. Os relatos do sucesso avolumaram a procura, com filas de pessoas que, vindas de longe e de perto, se aglomeravam junto ao modestíssimo hotel, na ansia de serem vistas pelas “chinesas dos bichos”.

Ora, tal alarde não podia ser aceite em tempos tão frenéticos como aqueles e, por isso, o então Governador Civil de Lisboa proibiu tais operações. Como essa medida não atenuou a demanda, mandou recolher as senhoras e respetiva família, levando-as até ao comboio que, por sua vez, as fez transportar para lá da fronteira com o País vizinho. Aí, ao que foi noticiado, regressaram à sua atividade “clínica”, o que as levaria a ser novamente expulsas.

O problema, no entanto, estava apenas a começar, porque o “sequestro” das misteriosas orientais fez vir ao de cima uma ira popular imprevista. De repente, as chinesas pareciam representar toda uma promessa de um futuro melhor que a recém experimentada República tardava em cumprir.

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Num ápice, as faces desse novo poder eram os símbolos desse ultraje, negando ao povo os direitos e as regalias com que lhes haviam acenado. E as multidões viraram-se contra esse domínio: por pouco não lincharam o herói republicano Machado dos Santos, que tentava apelar a um pouco de serenidade; injuriavam a novíssima Guarda Nacional Republicana, que os subjugava em vez de defender; acusavam o Governador Civil e os deputados* de expulsar as chinesas para proteger a sua classe; argumentavam que os poderosos protegiam os da sua estirpe, criticando não terem igual procedimento com a “Pitonisa” do Chiado, a vidente a que a classe alta recorria**.

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Em suma, a populaça acusava a República de todos os seus males.

E esse grito, quer fosse espontâneo, pela quebra da esperança; quer fosse instrumentalizado pelos numerosos inimigos do recente regime - que pululavam a cada insucesso ou recuo da nova ordem - acabaria por esmorecer, mercê da repressão policial e militar - de agosto de 1911 a julho de 1912 serão 2. 383 os presos políticos - mas também pelo surgimento de outros problemas mais prementes, como a sucessão de greves e a acelerada cadência de novos governos que se instalou neste período.

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À margem

antonio machado dos santos.jpgMachado dos Santos, considerado o pai do novo sistema político que em 5 de outubro de 1910 passou a vigorar em Portugal, fez uso do estatuto de herói republicano e da sua reconhecida coragem para, no dia 26 de novembro de 1912, tentar acalmar os ânimos durante um comício em torno da questão das chinesas que reuniu vários milhares de pessoas,no Rossio.

0001_Mbrasileira balas.jpgNas palavras da imprensa da época, foi “recebido hostilmente” pela multidão, tendo que se refugiar na “loja das águas”, só dali saindo vivo pela intervenção de uns marinheiros que ali se encontravam e porque foi resgatado pela GNR.

Este “salvamento” enfureceu a turba, que tentou destruir o estabelecimento e acabaria por se envolver com as forças de segurança num aceso confronto, com tiroteio à porta do café A Brasileira, curiosamente,  inaugurado nesse mesmo ano e que viu as suas montras serem perfuradas por balas. O emblemático café sobreviveria até aos anos 60, mas Machado dos Santos pereceria uma década depois, vítima da "camioneta fantasma" que, na noite sangrenta de 19 de outubro de 1921, ceifou a vida a vários símbolos da Primeira República, em resultado de uma revolta ironicamente iniciada por marinheiros.

Mas isso é outra história…

 

*Francisco Eusébio Leão, à época Governador Civil de Lisboa, era médico de formação e profissão, assim como o eram 22 por cento dos deputados eleitos à Assembleia Constituinte, de 28 de maio de 1911.

**Madame Broillard, de cujas proezas já falei, aqui.

 

Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

Illustração Portugueza

Nº 302, II Série – 4 dez 1911

O Occidente

Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro

34º ano, XXXIV, nº 185 – 30 nov 1911

 

A. Gonçalves Guimarães, O caso das chinesas curandeiras de Lisboa que queriam pôr os cegos a ver no primeiro ano da República Portuguesa, em Zhongguo Yanjiu - Revista de estudos chineses, nº 7, Instituto Português de Sinologia, Lisboa/Porto 2011, disponível em www.uc.pt/en/feuc/carmen/download_files/artigos.../1097_1097__RevChineses-1.pdf

 

http://maltez.info/respublica/portugalpolitico/acontecimentos/1911.htm

 

 http://www.portugal1914.org/portal/pt/historia/biografias/item/7526-santos-antonio-maria-de-azevedo-machado-1875-1921

 

 

(21) Instantâneos: a lição bem estudada

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Olhando para esta imagem é dificil saber por onde começar, tantas são as mensagens “plantadas” estrategicamente para que não existam dúvidas ou segundas interpretações.

Podemos iniciar pela família apresentada. A mulher, castamente vestida, entregue aos seus afazeres domésticos, mas acolhendo o marido com um movimento do corpo e o olhar, reverente. O homem, chefe da casa, vindo do trabalho, árduo certamente, empunhando a enxada que, em conjunto com outras alfaias tradicionais arrumadas por detrás da porta, nos indica uma atividade física, ligada à terra, como deve ser.

As crianças, o casalinho desejado por toda a gente - ele com o uniforme da Mocidade Portuguesa, como não poderia deixar de ser – levantando-se educadamente para receber o pai. Ela, bracitos no ar de alegria ao ver o progenitor, por momentos desviada da brincadeira em que se entretinha: bonecas e tachinhos, claramente antecipando aquilo que será a sua ocupação adulta de mulher e mãe.

Depois temos o cenário. Uma casa modesta, mas limpa e organizada, onde não falta uma mesa posta. Aí repousa já um pão e um jarro de vinho, sobre uma toalha imaculadamemnte branca, à espera da refeição em família.

Uma réstia de cebolas, abóboras, um monte de lenha, uma espécie de alguidar com alimentos, os recipientes rudimentares mas suficientes e dignos, alguns fechados, guardando água, azeitonas… ajuizadamente precavendo outros dias, outras refeições.

No lugar de destaque e sobre a melhor peça de mobilia da casa, um Cristo na cruz, pequeno altar onde estas pessoas expressam a sua devoção, sempre presente.

E como se isto não bastasse, ainda temos a paisagem exterior, certamente campestre, mas onde não poderiam deixar de se vislumbrar os símbolos da portugalidade e da nossa heroica, gloriosa e vetusta história: um castelo onde se hasteou a Bandeira Nacional.

Se alguma coisa nos tivesse escapado, a mensagem verbal está lá; “A lição de Salazar” - “Deus, Pátria, Família: a trilogia da educação nacional”.

Não há como falhar. Ou antes, há muito por onde falhar porque até Salazar devia saber que, lamentavelmente, não existem mundos perfeitos…mesmo que todos os dias nos queiram convencer do contrário.

Este quadro, mil vezes esmiuçado, mas ao qual não resisti, é o último de um conjunto de sete, lançados e profusamente distribuídos em 1938 pelo Secretariado da Propaganda Nacional, para comemorar os dez anos de governo. É o único em que não se faz uma comparação entre o caos do País antes da subida de Salazar ao poder e o paraíso em que este se tornou após a sua ação. 

O grafismo é de Jaime Martins Barata.

 

Fontes

Biblioteca Nacional Digital

http://purl.pt/22317

 

http://oliveirasalazar.org/download/documentos/A%20lição%20de%20Salazar___4D121BE9-3394-4D43-AB1F-A81584CE2799.pdf