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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A visita de D. João VI a Alcácer do Sal

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O rei e as filhas chegaram a Alcácer na galeota real e o monarca fez questão de conhecer o Santuário do Senhor dos Mártires e o Convento de Aracoeli, tendo permanecido no real palácio do Pinheiro.

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Edifícios com cara lavada e pintada, tambores e muitas formalidades. Terá sido assim que El Rei D. João VI foi recebido em Alcácer do Sal, em finais de abril de 1825. Sabemos que a visita se deu durante uma pequena estadia no palácio do Pinheiro, provavelmente em busca de alguma paz numa época muito conturbada da história de Portugal: o monarca andava de candeias às avessas com a mulher, Carlota Joaquina, e os filhos Pedro e Miguel. Três meses depois, foi obrigado a reconhecer a independência do Brasil e, no ano seguinte, morreu - muito provavelmente envenenado. 

A Gazeta de Lisboa informa que D. João VI passou por Setúbal, onde pernoitou. No domingo, 24 de abril, acompanhado pelas filhas, Isabel Maria e Maria da Assumpção, embarcou “na real galeota” – já falei das reais galeotas aqui -, em direção ao sítio do Pinheiro. A infanta Ana de Jesus Maria faria o mesmo percurso no dia 26, apesar do “mar empolado”, que é como é descrito o rio Sado nessa manhã de primavera. Todos “gozam de uma perfeita saúde”, pode ler-se no órgão oficial do governo.

José Joaquim de Almeida e Araújo Correia de Lacerda, ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino, também ali esteve e é curioso saber que foi do Real Sítio do Pinheiro que D. João VI, não estando apenas de férias, aproveitou para despachar, por exemplo, a redução da tarifa de circulação de jornais e outros periódicos, por ser “muito conveniente ao público” a sua fácil e expedita circulação.

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A 5 de maio o rei já está de regresso ao arsenal do Alfeite, tendo sido “duráveis” as “ternas impressões que a presença do adorado monarca e das augustas infantas deixaram entre os leais habitantes das margens do Sadão”, conclui a Gazeta de Lisboa.

 

 

De facto, sabe-se que o soberano esteve na então vila de Alcácer, porque, no Santuário do Senhor dos Mártires, existe uma obscura placa*de madeira pintada (na imagem) que assinala esse facto. Por outro lado, nos livros de contas do Convento de Aracoeli*, as freiras registaram a compra de cal e brochas, bem como o pagamento a mulheres para caiarem o edifício na vinda d’El Rei, tendo, em setembro do mesmo ano, pago a milicianos e tambores, possivelmente para marcar presença no evento.

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Podemos apenas imaginar como decorreu a visita e quem a acompanhou, tendo em conta as pessoas mais importantes de Alcácer do Sal nesta época.

D. João VI terá, muito provavelmente, sido recebido por Manuel Coelho, capitão-mor das ordenanças (uma espécie de força de segurança militarizada) e pelos vereadores da Câmara, que sabemos serem, nesse ano, Amaro Nunes Rolão e Joaquim Alberto Fragozo.

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Sabe-se, igualmente, que a passagem da real comitiva oferecia “um espetáculo único, pitoresco e inacreditável”. Quando as deslocações se faziam por terra e como as carruagens da corte eram insuficientes para transportar tudo, requisitavam-se todas as carruagens de aluguer de Lisboa e era um tal desfilar de seges velhas e novas, “elegantes umas, avariadas outras, limpas umas, com outras cobertas de poeira ou de lama, de sotas velhos com sotas novos, altos e baixos, esfarrapados, extravagantes, zarolhos, com casaco ou em colete e muitas vezes embriagados”, num “rebuliço geral, tumultuoso, desordenado, impossível de contar” e a que teria sido muito interessante assistir.

De resto, era frequente o rei e o seu séquito deslocarem-se pelo território nacional. O palácio da Real Quinta do Pinheiro, como também era conhecido, era apenas um dos espaços escolhidos. Este ficou a pertencer à coroa após os anteriores proprietários terem caído em desgraça por fazerem parte da família Távora e foi popular nos reinados de D. José, D. João VI e D. Miguel, que ali se dedicavam a caçadas. As visitas de tão extensas e abastadas comitivas eram significativas para o desenvolvimento local, pois, ainda que por um curto espaço de tempo, transformavam qualquer pequena vila em corte.

 

À margem

 

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Foi Carlos Mardel, Arquiteto dos Paços e Obras Reais, quem desenhou a adaptação do palácio do Pinheiro para acolher a corte, isto ao mesmo tempo que, em conjunto com outros, projetava a reconstrução de Lisboa. Pode até ser que o arquiteto tenha aproveitado para mudar de ares para junto ao Sado enquanto estudava este projeto, pois em 1760 a Capital ainda não seria o lugar mais agradável onde permanecer.

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Em 1771 são já diversos despachos de D. José a partir desta herdade, o que não admira, sabendo-se o terror que provocava ao rei estar em Lisboa depois do grande abalo de terra que ali se viveu.  O hábito continuou pelo menos até ao reinado de D. Miguel**.

 A exemplo do que ocorreu no Pinheiro, estas estadias na “província” eram, por vezes, pretexto para melhorias significativas nas estradas e nos edifícios.

Em Salvaterra de Magos, por exemplo, construiu-se um teatro com capacidade para 500 pessoas (pode ter-se ideia do que terá sido, na última imagem), que chegou a ser a melhor sala de espetáculos do país, até D. Maria I ter um ataque de loucura durante uma atuação e mandar fechar ao público todos os teatros régios.

Mas isso é outra história...

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* Agradeço à Drª Maria Teresa Lopes Pereira estas duas preciosas informações.

**Há registos de D. Miguel se deslocar ao Pinheiro por terra, ocupando-se, pelo caminho, concedendo autorizações para que os dignitários das terras onde passava pudessem ter o sublime privilegio de usar a sua real efigie  - da qual já falei aqui -, como atesta a imprensa da época, na sua passagem por Alcochete.

 Nota: a primeira imagem é meramente indicativa da deslocação da corte de D. João VI.

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Fontes

Casas das elites de Lisboa: objetos, interiores e vivências (1750-1830), tese para obtenção do grau de doutor em Estudos do Património por Carlos José de Almeida Franco, Universidade Católica Portuguesa, Escola das Artes - dezembro 2014, disponível em:https://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/18122

http://acasasenhorial.casaruibarbosa.gov.br/index.php/fontes-documentais/plantas-antigas/44-plantas-antigas/524-palacio-do-pinheiro-carlos-mardel

http://cmsm-paco-real-salvaterrademagos.blogspot.com/p/opera-de-salvaterra-de-magos.html

Elites políticas e sociais e o governo de Alcácer do Sal 1774-1834, de Sucinda Rocha,Câmara Municipal de Alcácer do Sal - 2008

Imagens

Serviço de Divulgação da Marinha do Brasil - http://www.naval.com.br/NGB/G/G004/G004-f02.jpg, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4328661

Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6339913

https://1.bp.blogspot.com/-8NpsKADs2bI/UO28FzcXRRI/AAAAAAAAHx8/Z2YE1gCyYFU/s1600/++09+-+D+Jo%C3%A3o+VI+-+desfilando.jpg

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/02/01/0062

Fotografia atual: Cristiana Vargas

 

 

Quando o fenómeno “extraordinário e medonho” arrasou toda uma região

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A tempestade, que ficou conhecida como “cheia de Marrocos”, pulverizou edifícios, árvores e vinhas, causando o pavor entre as gentes. Os rios Corgo, Pinhão e Douro galgaram as margens com uma fúria inigualável.

 

Muito tempo antes das tempestades em Portugal serem batizadas com nome de mulher, a região do Porto viu passar um fenómeno “extraordinário e medonho”, que deixou um rasto de morte e desolação só possível de perceber pelos testemunhos que chegaram à atualidade. Em apenas dois dias, “vulcões” de terra, chuva e vento levaram pelos ares edifícios e embarcações, enquanto gigantescas “bolhas de água” rebentavam, arruinando tudo à sua volta. Rios galgaram as margens, arrastando o que encontraram pelo caminho e destruindo navios, cais e o mais que existia nas margens. Foi a 10 e 11 janeiro de 1821.

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"De repente, ecoou um trovão medonho e uma densa nuvem se alongou sobre a Quinta de Marrocos, escavando-a com tal força que casas, socalcos, árvores, fragas descomunais e gente, tudo foi impelido com ruído e violência e cortou a corrente do rio de uma a outra margem”. Tal prodígio ficaria conhecido para a meteorologia como “cheia de Marrocos”.

O relato é de Luiz Teixeira, em carta à patroa, D. Maria Rita de Sampayo da Cunha e Castro, da Casa Bandeirinha. Dado como morto, o caseiro apressou-se a desmentir o boato e descreveu o que viu e ouviu como um “estrondo horroroso”, que precedeu uma “extraordinária porção de terra” e de água, elevando-se “a grande altura”, fazendo depois um “profundo buraco” e mais três em outras quintas próximas, igualmente afetadas. O portento “levou” a adega, os vinhos, lagares, casas, todas as árvores e a vinha, “não restando o mais pequeno vestígio de haver” existido ali edifício algum.

O caso é noticiado no Correio do Porto, referindo-se, danos em diferentes propriedades e a morte de muita gente, afogada nas torrentes do Pinhão e do Corgo. 

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Como seria de esperar, o Douro não se fez rogado e também galgou as margens com “grande fúria e violência”. Desta vez, quem conta o que aconteceu é um enigmático J.B.G., do Porto, em missiva a um seu amigo de Lisboa.

“Todos os navios que se achavam surtos neste rio estiveram em iminente perigo de se perderem”, diz, esclarecendo que pelo menos seis tiveram um “desgraçado fim”. Na funesta lista estão os bergantins ingleses Fair-Hibernian e Mathilda, ambos já carregados com vinho para zarparem, que forram arrastados pela corrente, despedaçando-se. O mesmo aconteceu à galeota alemã Anna-Margaretha, aos hyates portugueses Senhor da Pauta e Triunfo da Inveja; ao espanhol San Josef el Vencedor, a inúmeros botes, lanchas e barcas.

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 Diz que “a enchente foi muito grossa e subiu a grande altura”, comunicando “da porta da Ribeira com o postigo da Lingueta; e do postigo dos Banhos com a porta Nobre”, afetando por isso muitas pessoas e edifícios: a casa do despacho do Cais da Alfândega “veio a terra”, porque um bergantim inglês encalhou sobre ela; o cais novo de Sobreiras e outros aluíram e, em Vila Nova de Gaia, “houve grande perda de vinhos”.

Esta narrativa acrescenta dois pormenores interessantes. Dá conta que os navios que escaparam registaram tal dano nos seus cordames, que “os cordoeiros venderam toda a obra que tinham pronta deste género” e que era muita, que há muito estava empatada devido “à apatia” em que o comércio se achava.

Revela igualmente que foi por toda esta sequência de desgraças que os deputados à assembleia constituinte provenientes da região ainda não tinham chegado à Capital, atrasando-se, assim, para a importante sessão das Cortes, que daria origem ao primeiro texto constitucional português.  

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À margem

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 Muitas vezes galgou o Douro as margens, com isso causando volumosos danos e o desespero de quem vive ou trabalha à mercê da sua força. As cheias de 1739, 1779, 1860 e 1909 são apontadas como das mais severas. De facto, nas vésperas de natal de 1909, as águas chegaram a cerca de 80 cm do tabuleiro inferior da Ponte D. Luís I; muitos barcos se perderam com sua carga e numerosos edifícios foram afetados, com elevados prejuízos para os moradores.

E, quando já se pensava que a construção de barragens prevenia que algo assim se repetisse, eis que, em janeiro de 1962, a cheia atinge uns extraordinários 4,5 metros de altura ao nível dos cais da Ribeira, Terreiro e Gaia.

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Apesar dos alertas e das medidas de precaução, houve embarcações que se afundaram ou garraram barra fora.

Recusando acatar as ordens das autoridades para abandonar o seu navio, João Saragoza, capitão do Puerto Alicante, permaneceu a bordo. Quando finalmente mudou de ideias, goradas que foram as tentativas de o resgatar, atirou-se ao rio com o intuito de alcançar terra a nado. Já foi tarde.

Mas isso é outra história…

 

 

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Para conhecer a história de outro naufrágio, mas no Tejo, veja aqui.

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As imagens 1 a 4 são meramente indicadoras, não correspondendo aos fenómenos narrados.

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Fontes

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/EXTERNO/01/06/001

Diário do Governo nº1 - nº78

 

Notícias de Catástrofes no Douro – Uma leitura geográfica da dinâmica do meio físico, de Carlos Bateira; Ângela Seixas; Susana Da Silva Pereira, Projeto TERRISC; Departamento de Geografia da Universidade de Letras do Porto, 2004, disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9688.pdf

 

Geologia Ambiental, de José Alveirinho Dias, disponível em:

http://w3.ualg.pt/~jdias/GEOLAMB/GAn_Casos/Douro1909/Douro%201909.html

 

A Cheia de 1962, de Germano Silva, disponível em:

https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=9487587

 

Imagens

https://oportunityleiloes.auctionserver.net/view-auctions/catalog/id/357/lot/94571/?url=%2Fview-auctions%2Fcatalog%2Fid%2F357%2F%3Fpage%3D2

Gravura séc. XVIII "Vernet" tempestade

Tempestade no mar, (xilogravura) desenhada por Th. Weber, gravada por J. Gauchard. 1881

https://www.gravuras-antigas.com/product_info.php?products_id=13237

tempestade no mar 2

http://www.espiritbook.com.br/profiles/blogs/p-ssima-imagem-e-energia-quadro-de-tempestade

 

Arquivo Municipal do Porto

http://gisaweb.cm-porto.pt/

1909
Editor: Tabacaria Cubana

D-PST/1387

D-PST/3064

Editor: Tabacaria Vareirense

D-PST/2597


1962
Fotografia de Teófilo Rego.

F-P/CMP/10/391(3)

 

 

Instantâneos (23): a última ceia de um rei português

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A sala apresentava-se deslumbrante e a mesa esplendidamente ornamentada. Ao centro estava El Rei, a quem não estranharam o semblante sombrio, nostálgico até, que habitualmente o caracterizava. No ar, uma sensação desagradável, uma tensão inexplicável, um nervoso miudinho difícil de disfarçar, contrastavam com tanta sumptuosidade.

O banquete decorria no palácio de Belém, que pouco tempo depois seria escolhido para sede da Presidência da República e, à direita de D. Manuel II, estava um republicano eleito para liderar o país irmão. Hermes da Fonseca, o tal republicano, seria, simultaneamente, o último chefe de Estado a visitar um monarca reinante em Portugal e o primeiro a ser recebido pelo novíssimo governo provisório da República Portuguesa, acabada de nascer.

Foi ali que D. Manuel II soube que o seu reinado tinha chegado ao fim.

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Mas, não apressemos as coisas:

Hermes da Fonseca visitou terras lusas mesmo antes de tomar posse. Chegou a 1 de outubro de 1910 - dois dias antes da "última ceia" - e desdobrou-se em festas, homenagens, contactos - o normal em ocasiões deste tipo. Em todo o lado, foi recebido apoteoticamente pelo povo, que dava vivas ao presidente eleito do Brasil, símbolo da República desejada.

A sua chegada triunfal, com o couraçado S. Paulo rodeado por embarcações onde se agitavam bandeiras republicanas e se cantava a Marselhesa, deu o mote para o resto da estadia.

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O dia 3 de outubro começou com uma cerimónia na Sociedade de Geografia de Lisboa, prosseguindo com passeio pela cidade e receção a D. Manuel II, a bordo do couraçado brasileiro.ultima festa de d manuel 3.GIF

À noite, Hermes da Fonseca tinha organizado lauto jantar em honra do rei português.

Foi precisamente durante esse jantar* que se confirmaram os piores pressentimentos: a rebelião estava na rua.

O presidente do Brasil ainda ergueu a taça num toast por sua Majestade El Rei e por toda a família real portuguesa, mas de nada valeu.

Durante o repasto, correu a notícia de estar em marcha uma revolução republicana e certos convidados, uns mais disfarçadamente que outros, foram saindo.


No final, D. Manuel II recolheu ao Palácio das Necessidades de onde, no dia seguinte, à força de intimidante bombardeamento dos cruzadores S. Rafael e Adamastor, saiu escorraçado para Mafra e daí para a Ericeira, onde embarcou para o exílio.

 

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No dia 8 de outubro, Hermes da Fonseca, que assistiu ao desenrolar dos acontecimentos a bordo do S. Paulo, voltou a passear por Lisboa, já então capital de uma República.

Acompanhava-o, manifestando cumprimentos de despedida, o ministro dos negócios Estrangeiros do governo provisório, Bernardino Machado, curiosamente, nascido no Brasil, e que viria a ser por duas vezes presidente de Portugal.

O rei dos olhos tristes só voltaria a Portugal em 1932, para ser sepultado no panteão dos Bragança, em S. Vicente de Fora.

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*O banquete na imagem é na sala do risco do Arsenal da Marinha, oferecido pelas associações, Comercial, de Lojistas e Industrial de Lisboa, a 2 de outubro. Da “última ceia”, no Palácio de Belém, não me foi possível encontrar imagens, talvez porque o que de importante acontecia era já nas ruas.

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Fontes
Hemeroteca Municipal de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/´
O Occidente
XXXIII volume; nº 1144-5 – 20 out. 1910
Brasil-Portugal
Nº282 – 16 out. 1910
Illustração Portugueza
Nº242 – 10 out. 1910
A Capital
Nº93 – nº97 - 1 a 5 out. 1910

Biblioteca Nacional de Portugal
www.purl.pt
Diário Illustrado
40ºano; nº18:281 – 4 out. 1910

http://www.fmsoares.pt/aeb/crono/pesquisa?pesquisa=D.%20Manuel%20II

 

http://garfadasonline.blogspot.com/2010/10/o-5-de-outubro-de-1910-e-o-banquete.html

https://cronicasmacaenses.files.wordpress.com/2012/10/portugal-5outubro06-jornal.jpg

 

A tragicomédia do soldado João Ninguém na I Grande Guerra

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E, se no meio do sofrimento, o espírito humano, no que este tem de melhor, conseguisse rir da desgraça, fazer piada com o medo, zombar dos problemas, gozar com as suas próprias falhas, fragilidades e tristezas? Esta é a guerra tragicómica de João Ninguém, contada em palavras e desenhos por quem a viveu, nos longínquos anos de 1917 e 1918, “num terreno retalhado pelos canais do Lys”.

 

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A participação portuguesa na I Grande Guerra não deixou boas memórias a quem quer que fosse. Foi um drama, do ponto de vista humano, social e económico, que também não logrou alcançar os objetivos políticos e geoestratégicos que dariam razão ao envolvimento do País no conflito. Os militares, que lutaram em África e na Europa, foram sujeitos a esgotamento físico e moral, fome, frio e riscos derivados de preparação insuficiente e equipamento desadequado. Mas, e se no meio de tanto sofrimento, o espírito humano, no que este tem de melhor, conseguisse rir da desgraça, fazer piada com o medo, zombar dos problemas, gozar com as suas próprias falhas, fragilidades e tristezas? Foi isso mesmo que fez o Capitão Menezes Ferreira, membro do Corpo Expedicionário Português nos longínquos territórios de Aire Sur La Lys, terra que cedo foi rebatizada “Lys-bonne”, tantos eram os lusitanos ali instalados.

“João Ninguém – Soldado da Grande Guerra” é uma tragicomédia escrita e desenhada por um homem, sobre si e os seus pares, submetidos a situações limite e, ainda assim, encontrando nisso um ânimo difícil de quebrar.

Conta a história dos “simpáticos soldadinhos”, “trigueiraços que, das oito províncias de Portugal, acorreram de mochila às costas sem faltar ao embarque para honra dos seus batalhões”.

Entre estes, encontrava-se o João Ninguém, como os outros, representante da “arraia miúda da sociedade internacional”, que “depois de ter suportado as soalheiras de ‘Paulona’* de Tancos, besuntado ligeiramente de um treino guerreiro muito rudimentar, lá foi chamado enfim para o embarque naquele áspero inverno de 1917”, com o fim de ir combater os “boches”.

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Fala das peripécias dos “quatro longos dias no mar” e da viagem de comboio, afogando as “mágoas na aguardente da ração, já meio conformados e embrulhados no fatalismo que lhes” vinha da sua raça”.

Descreve animadamente as funções dos diversos soldados – as picardias entre “palmípedes” e “cachapins”, entre soldados e oficiais; a camaradagem, os ensaios e manobras onde se mostrou “meio Zagalo**, meio fadista” e o relacionamento com os outros contingentes no terreno.

 

Tudo de forma inusitadamente divertida.

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E o tom prossegue até nas “trinchas”, mesmo com “as miseras condições” dessa “sua vida de toupeira”, “dentro dos abrigos, em volta de latas vazias – braseiros improvisados”, aguardando ansiosamente a hora de matar ou morrer.

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Só no fim, o timbre resvala para alguma amargura, face à “sanha da destruição”, ao “constante e deletério bafo da morte, que endureceu o coração dos combatentes”, em resultado, talvez, dos “meses terríveis para o pequeno exército português”, que foram janeiro, fevereiro e março de 1918, nos “batalhões dizimados pelos ataques de gases, extenuados por um serviço mortificante”, “transidos de frio, mal aquecidos pelo rum e dobrados menos pelo peso dos equipamentos do que pelo das suas incríveis trouxas de malteses”.

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Por último, conta essa “pavorosa batalha do Lys”, em que “infantes e metralhadores de armas na mão, numa perfeita noção do sacrifício extremo, deixaram-se matar até ao último cartucho”.

 

João Ninguém ficou lá. Menezes Ferreira teve a sorte de regressar, para dar à estampa esta extraordinária narrativa do primeiro conflito bélico global.

 

Vale a pena ver a obra completa, à qual não consigo fazer jus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Fardados da cor da bruma

Soldados da nossa terra,

Cruzes de pau, cada uma

Representa a Cruz de Guerra”

 

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“A Portugal minha mãe

Deu seu filho pr’a soldado:

Quem dá aquilo que tem

A mais não é obrigado”

 

À margem

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 Os soldados portugueses interagiram com facilidade com as populações francesas e, no pouco tempo que tiveram antes de serem enviados para a frente de batalha, rapidamente fizeram justiça à sua fama de namoradeiros. Ajudavam os camponeses e estes, em troca, convidavam-nos para os seus lares. Isso dava-lhes à vontade para tentar catrapiscar as moças da terra, missão na qual competiam com os “bifes”, “escanhoados e fleumáticos”, para mais tendo do seu lado “o prestigio das libras”, sempre competidor nos negócios do coração.  O mote dos portugueses era sempre o mesmo, num arranhado francês: “’Mademóselle’ vous fiancé moi aprés la guerre finie?”.  E assim, o João Ninguém embalado pela “sua boa conduta e pelas afinidades da sua linguagem com o emaranhado ‘patois’ “ daquelas regiões, conseguiu insinuar-se no coração das ‘mademóselles’. “Amorudo e volúvel, namoriscando todas essas meninas das ‘férmes’ que se deixaram seduzir pelos seus olhos negros, não admira, pois, que, mais tarde, algum ‘petit portugais’ – leia-se um bebé luso-português – tenha sido o gentil ‘souvenir’ da sua passagem por França”.

Mas isso é outra história…

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*Paulona: “cidade” construída de pau e lona, vulgo tendas, que os soldados montaram em Tancos durante o treino que ali efetuaram.

*Penso ser uma alusão a Bernardo António Zagalo, marechal de campo graduado e muito condecorado, que viveu entre 1780 e 1841.

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Já tinha falado da passagem dos portugueses pela I Grande Guerra e do Cristo das trincheiras. Pode ler aqui.

 

Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

João Ninguém – Soldado da Grande Guerra, Impressões do CEP 1917-1918, texto e desenhos do Capitão Menezes Ferreira; Serviços Gráficos do Exército 1921.

 

http://www.arqnet.pt/dicionario/zagaloba.html

 

A reconstrução do aqueduto e da fonte do Passeio

 

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A Câmara de Alcácer teve de hipotecar todos os seus rendimentos, em especial a renda do paço da vila, até à conclusão da obra, que incluía a construção de um lavadouro público.

Corria setembro de 1850 quando o Município de Alcácer do Sal decidiu adjudicar a Domingos do Coito a reconstrução do aqueduto de Rio de Clérigos e a edificação de um novo chafariz no cabo da vila. A obra impunha-se pelo estado de degradação em que se encontrava todo o conjunto, pondo em causa a única fonte pública de água potável nas próximidades. Os trabalhos, cujo resultado ainda é visível, foram executados rapidamente e incluíam um lavadouro com capacidade para 15 mulheres, provavelmente o mesmo que acabaria demolido já na segunda metade do século XX.

texto 25 (1).JPGA empreitada, arrematada pelo valor mais baixo proposto, consistia, nomeadamente, em “consertar todo o aqueduto”, com substituição das manilhas e seus apoios; construir um paredão junto à “casa d’água”; reformar o canal, que se achava a “descoberto no sítio do cerrado de João Alves Branco” e rebaixar o “alicerce do cano, desde o olival da Horta de Baixo até à arca d’água”.

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 A estrutura de aqueduto, hoje praticamente destruída, é ainda percetível no muro contíguo à fonte (na imagem 2 ).

O objetivo global era que não se perdesse “uma gota de água”, fazendo chegar “toda a que sai da arca d’água” ao novo fontanário, que ainda existe, mas não possui os dois tanques para o gado beber que são mencionados no contrato.

 As águas restantes da bica, eram conduzidas, “também emanilhadas por debaixo de chão”, ao terceiro tanque, “para se lavar a roupa”, a construir “no fim do passeio”, com “20 palmos de comprido e 15 de largo”.


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 Toda a tarefa foi executada por 1.900 reis, incluindo materiais, valor proposto pelo empreiteiro Domingos do Coito, que apresentou como fiador do bom cumprimento do contrato, nada mais, nada menos, que António Caetano de Figueiredo, o primeiro e único Visconde de Alcácer. Já a câmara, hipotecava “todos os seus rendimentos, em especial a renda do paço da vila”, a partir de 1 de janeiro de 1851 e até a quantia estar toda paga. 

No final, ainda teve que se indemnizar Joaquim Marques, “rendeiro da horta de Rio de Clérigos”, por prejuízos causados aquando da abertura do aqueduto.

Todo o investimento foi muito bem empregue. Durante muito tempo, a fonte do Passeio foi a principal origem de água potável da vila, em especial nos meses de verão, em que as outras bicas secavam. Cerca de um século após a sua reconstrução aqui relatada, ainda eram muitos os alcacerenses que dependiam daquela água.

 

À margem

A fonte ficou conhecida como “do Passeio” muito provavelmente pela proximidade ao único “passeio público” existente na terra, entendendo-se assim o atual jardim, desenhado ao gosto da época como local arborizado de lazer (na imagem).

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Por todo o País, há exemplos deste tipo de espaços, hoje maioritariamente desaparecidos ou transformados. Para além da vegetação, eram comuns os planos de água, habitualmente ornamentados com peças escultóricas; os coretos e um muro ou gradeamento com grandes portões em ferro, que confinavam o recinto. Em Setúbal, ficou conhecido o Passeio do Lago (já falei dele aqui), onde os banhistas deambulavam em busca de um pouco de sombra e os pescadores estendiam as redes. Em Lisboa, o Passeio Público “nasceu” com a reconstrução após o terramoto de 1755 e era uma continuação da praça do Rossio, acabando por ser demolido com a abertura da avenida da Liberdade. Tinha uma cascata com um nicho onde se podia apreciar a estátua de Anfritite, deusa grega do mar, e um terraço com ligação à praça da Alegria. No Porto, por outro lado, cinco décadas antes da plantação do Passeio Alegre (1888), o Passeio Público de São Lázaro, era o local de eleição, com repuxo, canteiros floridos, um tanque com água, iluminação a gás (uma novidade) e uns célebres concertos semanais onde se ia para ver e ser visto.

Mas isso é outra história...

 

 

Já falei de outras fontes existentes em Alcácer e da fama das suas águas, aqui.

 

 

Fontes

Fotografias atuais:

Cristiana Vargas

 

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/019

PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/020

Pt/ahmalcs/cmalcs/fotografias/02/01/0045

 

Livro de Atas a Câmara Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/02/01/001

Jornal O Século

PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/01/01/02/003-1

 

Do passeio público ao jogo de cartas – Apontamentos sobre os espaços ajardinados do Porto, de Luís Paulo Saldanha Martins, em VI Colóquio Ibérico de Geografia – Atas – A Península Ibérica, um espaço em mutação vol. II – Publicações da Universidade do Porto 1995, disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/20052

 

http://revelarlx.cm-lisboa.pt/gca/?id=1401