A tragicomédia do soldado João Ninguém na I Grande Guerra
E, se no meio do sofrimento, o espírito humano, no que este tem de melhor, conseguisse rir da desgraça, fazer piada com o medo, zombar dos problemas, gozar com as suas próprias falhas, fragilidades e tristezas? Esta é a guerra tragicómica de João Ninguém, contada em palavras e desenhos por quem a viveu, nos longínquos anos de 1917 e 1918, “num terreno retalhado pelos canais do Lys”.
A participação portuguesa na I Grande Guerra não deixou boas memórias a quem quer que fosse. Foi um drama, do ponto de vista humano, social e económico, que também não logrou alcançar os objetivos políticos e geoestratégicos que dariam razão ao envolvimento do País no conflito. Os militares, que lutaram em África e na Europa, foram sujeitos a esgotamento físico e moral, fome, frio e riscos derivados de preparação insuficiente e equipamento desadequado. Mas, e se no meio de tanto sofrimento, o espírito humano, no que este tem de melhor, conseguisse rir da desgraça, fazer piada com o medo, zombar dos problemas, gozar com as suas próprias falhas, fragilidades e tristezas? Foi isso mesmo que fez o Capitão Menezes Ferreira, membro do Corpo Expedicionário Português nos longínquos territórios de Aire Sur La Lys, terra que cedo foi rebatizada “Lys-bonne”, tantos eram os lusitanos ali instalados.
“João Ninguém – Soldado da Grande Guerra” é uma tragicomédia escrita e desenhada por um homem, sobre si e os seus pares, submetidos a situações limite e, ainda assim, encontrando nisso um ânimo difícil de quebrar.
Conta a história dos “simpáticos soldadinhos”, “trigueiraços que, das oito províncias de Portugal, acorreram de mochila às costas sem faltar ao embarque para honra dos seus batalhões”.
Entre estes, encontrava-se o João Ninguém, como os outros, representante da “arraia miúda da sociedade internacional”, que “depois de ter suportado as soalheiras de ‘Paulona’* de Tancos, besuntado ligeiramente de um treino guerreiro muito rudimentar, lá foi chamado enfim para o embarque naquele áspero inverno de 1917”, com o fim de ir combater os “boches”.
Fala das peripécias dos “quatro longos dias no mar” e da viagem de comboio, afogando as “mágoas na aguardente da ração, já meio conformados e embrulhados no fatalismo que lhes” vinha da sua raça”.
Descreve animadamente as funções dos diversos soldados – as picardias entre “palmípedes” e “cachapins”, entre soldados e oficiais; a camaradagem, os ensaios e manobras onde se mostrou “meio Zagalo**, meio fadista” e o relacionamento com os outros contingentes no terreno.
Tudo de forma inusitadamente divertida.
E o tom prossegue até nas “trinchas”, mesmo com “as miseras condições” dessa “sua vida de toupeira”, “dentro dos abrigos, em volta de latas vazias – braseiros improvisados”, aguardando ansiosamente a hora de matar ou morrer.
Só no fim, o timbre resvala para alguma amargura, face à “sanha da destruição”, ao “constante e deletério bafo da morte, que endureceu o coração dos combatentes”, em resultado, talvez, dos “meses terríveis para o pequeno exército português”, que foram janeiro, fevereiro e março de 1918, nos “batalhões dizimados pelos ataques de gases, extenuados por um serviço mortificante”, “transidos de frio, mal aquecidos pelo rum e dobrados menos pelo peso dos equipamentos do que pelo das suas incríveis trouxas de malteses”.
Por último, conta essa “pavorosa batalha do Lys”, em que “infantes e metralhadores de armas na mão, numa perfeita noção do sacrifício extremo, deixaram-se matar até ao último cartucho”.
João Ninguém ficou lá. Menezes Ferreira teve a sorte de regressar, para dar à estampa esta extraordinária narrativa do primeiro conflito bélico global.
Vale a pena ver a obra completa, à qual não consigo fazer jus.
“Fardados da cor da bruma
Soldados da nossa terra,
Cruzes de pau, cada uma
Representa a Cruz de Guerra”
“A Portugal minha mãe
Deu seu filho pr’a soldado:
Quem dá aquilo que tem
A mais não é obrigado”
À margem
Os soldados portugueses interagiram com facilidade com as populações francesas e, no pouco tempo que tiveram antes de serem enviados para a frente de batalha, rapidamente fizeram justiça à sua fama de namoradeiros. Ajudavam os camponeses e estes, em troca, convidavam-nos para os seus lares. Isso dava-lhes à vontade para tentar catrapiscar as moças da terra, missão na qual competiam com os “bifes”, “escanhoados e fleumáticos”, para mais tendo do seu lado “o prestigio das libras”, sempre competidor nos negócios do coração. O mote dos portugueses era sempre o mesmo, num arranhado francês: “’Mademóselle’ vous fiancé moi aprés la guerre finie?”. E assim, o João Ninguém embalado pela “sua boa conduta e pelas afinidades da sua linguagem com o emaranhado ‘patois’ “ daquelas regiões, conseguiu insinuar-se no coração das ‘mademóselles’. “Amorudo e volúvel, namoriscando todas essas meninas das ‘férmes’ que se deixaram seduzir pelos seus olhos negros, não admira, pois, que, mais tarde, algum ‘petit portugais’ – leia-se um bebé luso-português – tenha sido o gentil ‘souvenir’ da sua passagem por França”.
Mas isso é outra história…
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*Paulona: “cidade” construída de pau e lona, vulgo tendas, que os soldados montaram em Tancos durante o treino que ali efetuaram.
*Penso ser uma alusão a Bernardo António Zagalo, marechal de campo graduado e muito condecorado, que viveu entre 1780 e 1841.
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Já tinha falado da passagem dos portugueses pela I Grande Guerra e do Cristo das trincheiras. Pode ler aqui.
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
João Ninguém – Soldado da Grande Guerra, Impressões do CEP 1917-1918, texto e desenhos do Capitão Menezes Ferreira; Serviços Gráficos do Exército 1921.
http://www.arqnet.pt/dicionario/zagaloba.html