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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A Rainha Pamplona fugiu à morte duas vezes

 

isabel e mancia.JPG

 


Isabel escapou duas vezes. A última mulher condenada à morte em Portugal teve sorte. A sua vida, em paralelo com a do marido, parece uma montanha russa, que oscila entre momentos de extraordinário poder e destaque, sempre seguidos de grandes perigos e provações. Num tempo em que as mudanças políticas e ideológicas eram excecionalmente rápidas e drásticas, não há inocentes nem culpados, porque as circunstâncias também eram invulgares.

Sentenciada por crime de lesa-pátria, algo raro entre as mulheres, Isabel de Roxas e Lemos* deveria ter morrido “de morte natural de garrote”, tendo a sua cabeça decepada e todo o corpo queimado, no cadafalso do Cais do Sodré, para que o povo pudesse ver o castigo, por ter sido “sócia dos delitos e horrorosos crimes” do seu marido, Manuel Inácio Martins Pamplona**. Este, alvo de idêntica condenação, seria dificilmente defendido, quer por liberais, quer por absolutistas, com anticorpos em ambas as fações, como é usual entre os moderados.

conde subserra.JPGO tenebroso veredito parece primitivo e remoto, mas tem pouco mais de 200 anos.
De facto, o casal, herdeiro de extraordinária riqueza e títulos sonantes, foi, em 1811, condenado com pena capital por ter alinhado com os exércitos franceses, que semearam a devastação quando invadiram Portugal e nos quais Pamplona teve papel proeminente. Isabel, longe da figura submissa e recatada da mulher de então, acompanhou-o em marchas e batalhas, isto com tal satisfação que a soldadesca a alcunhou de “Rainha Pamplona”.
Os muitos contactos que possuíam não impediram o confisco dos bens, mas ajudaram-nos a fugir ao patíbulo que lhes estava destinado. Durante anos, por convicção ou conveniência, andaram pela Europa fora combatendo nas tropas de Napoleão, até ao desaire na Rússia.

p55265_2.jpgA revolta liberal (1820) traria a amnistia de todos os condenados por motivos políticos e abriria a porta para o regresso de Pamplona ao seu País, onde não tardou a subir na hierarquia, como ministro de várias pastas e conselheiro de Estado, sendo agraciado com o título de Conde de Subserra, por D. João VI.
O êxito não perdurou - para os fracos não é conveniente ter por perto quem pense pela sua cabeça – e, pressionado, o rei acabaria por remetê-lo para Espanha, como embaixador.
Com a morte do monarca e todas as manobras de sucessão, novos ventos de mudança não se fizeram esperar e, quando os absolutistas chegaram ao poder, foram implacáveis para com o casal Subserra.

farol do bugio.JPGO governo de D. Miguel começou a perseguir e prender todos os que pudessem ter alguma ligação ao liberalismo ou à carta constitucional.
Corria junho de 1828 quando Pamplona e Isabel foram levados e, por entre maus tratos e insultos, fechados, primeiro na torre de São Lourenço do Bugio; depois em São Vicente de Belém e, finalmente, às mãos do tenebroso Teles Jordão, em São Julião da Barra, onde Isabel foi a única mulher encarcerada.

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Como as tropas inglesas entraram Tejo dentro exigindo a libertação dos prisioneiros daquela nacionalidade, os presos mais ilustres foram arrastados numa penosa caminhada para novas paragens: o forte da Graça, em Elvas.

00674_004455.jpgPara o conde foi o destino final, não porque se fizesse cumprir a pena anteriormente traçada – para tal não tiveram ousadia - mas porque a sua saúde não resistiu às condições dos calabouços. Finou-se a 16 de outubro de 1832, acontecimento comemorado com foguetório por parte dos miguelistas.


Mais uma vez, Isabel teve sorte…e engenho. Um velho general, condoído da sua sina, fê-la libertar-se por uma porta secreta. À sua espera tinha a filha, Mância (estão ambas na primeira imagem), com quem calcorreou as áridas planícies alentejanas, até que chegaram as boas notícias: os liberais tinham tomado Lisboa.
Uma renovada esperança surgia para a Rainha Pamplona. Tinha então 53 anos e ainda muita vida pela frente – só morreria em 1856, aos 77 anos de idade.

À margem


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As mulheres são uma ínfima parte dos sentenciados à morte em Portugal, de resto um dos primeiros países do mundo a abolir a pena capital. Até 1757, todas as condenadas foram-no porque mataram, mas com o Marquês de Pombal, essa “tradição” seria alterada.
Nesse ano, cinco mulheres foram executadas por crime de lesa-majestade. Alegadamente, tinham encabeçado a revolta que se gerou na “cidade invicta” contra a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, que afetaria o negócio de taberneiros e pequenos armazenistas, impedidos, assim, de comercializar vinho do Porto. Ao todo foram executadas 26 pessoas.
Mas, a dureza da justiça pombalina não ficaria por aqui. Leonor Tomásia de Távora foi condenada pela implicação no atentado contra D. José, sendo decapitada em 1759, juntando-se a outras três desgraçadas mortas por crimes menores, como roubo, também nessa época.
Como já se tinha visto, Isabel de Roxas e Lemos foi a derradeira condenada, a única que conseguiu fugir, mas não foi a última executada. Esse “título” coube a Luísa de Jesus, uma jovem de 22 anos, ama dos expostos de Coimbra. Em 1772, foi julgada por ter posto fim à vida de pelo menos 34 bebés que lhe tinham sido entregues para criar, mediante pagamento por esse serviço. Antes de ser morta, foi supliciada, algo também raro entre o sexo feminino. Ficaria tristemente para a história como a única serial killer portuguesa.
Mas isso é outra história…

……………
*O nome completo era Isabel Antónia do Carmo de Roxas e Lemos Carvalho e Menezes
** O nome completo do 1º Barão de Pamplona e 1º Conde de Subserra era Manuel Inácio Martins Pamplona Côrte-Real

Fontes
O Conde se Subserra, de Rafael Ávila de Azevedo, in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira Volune XXXIX; União Gráfica Agrensa, Hangra do Heroísmo – 1981. Disponível em http://ihit.pt/codeigniter/assets/upload/pdf/ecacd69f0fc9dd6afb0fa20eea3fdbf3.pdf

As mulheres perante os tribunais do antigo regime na península ibérica, de Maria Antónia Lopes, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; coordenação de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga e Margarida Torremocha Hernández, Imprensa da Universidade de Coimbra – 2015. Disponível em https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/37193/1/Capítulo%206-%20Mulheres%20condenadas%20à%20morte%20em%20Portugal.pdf


Imagens
Geneall net
https://www.google.pt/search?q=%22condes+de+subserra%22&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjzgeS5mbbeAhXIVsAKHVaeA3oQ_AUIDigB&biw=1694&bih=947#imgrc=YDvuUWpL0nI3UM:&spf=1541178611183

Museu – Biblioteca Condes de Castro Guimarães
https://www.google.pt/search?q=%22condes+de+subserra%22&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjzgeS5mbbeAhXIVsAKHVaeA3oQ_AUIDigB&biw=1694&bih=947#imgrc=8eDkI-onscBPJM:&spf=1541178611183

Biblioteca Nacional Digital
http://purl.pt/13357/1/index.html#/1/html

http://fortalezas.org/index.php?ct=fortaleza&id_fortaleza=674&muda_idioma=PT

Antonio Pisanello - The Yorck Project 10.000 Meisterwerke der Malerei. DVD-ROM, 2002. ISBN 3936122202. Distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH., Domínio público, httpscommons.wikimedia.orgwindex.phpcurid=1

 

Câmara de Alcácer cortava nos ordenados para pagar dívidas

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Para além de serem reduzidos, os vencimentos também não eram pagos atempadamente e o município tinha um vasto rol de contas atrasadas para saldar.

Pode pensar-se que a redução dos ordenados dos funcionários públicos é uma invenção dos tempos modernos, recurso de alguns governos em tempo de crise. Pois, não é assim e, até um concelho rural como Alcácer do Sal já impôs cortes salariais aos trabalhadores, quando a penúria das contas públicas a isso obrigou. Duvido que tenha sido caso único no país, mas naquela vila alentejana a ideia saiu da cabeça de João Rodrigues da Cunha Aragão de Mascarenhas que, coincidência ou não, cerca de uma década depois, chegaria a deputado da nação.

Capturar camara e cadeia.JPGCorria novembro de 1852 e aquele município preparava o orçamento para o ano seguinte. Como em ocasiões anteriores, as receitas não chegavam para cobrir as despesas previstas, o que não coibia o conselho municipal de aprovar as contas e ficar a dever as verbas em falta.


O presidente em exercício era Domingos Silvestre Branco. Entre os vogais daquele órgão estavam João da Costa Passos, António José Gonçalves Branco, Francisco de Paula Leite (ausente nesta reunião), João José Rodeia, Francisco José de Carvalho e João Rodrigues da Cunha Aragão Mascarenhas. Foi este que tocou com o dedo na ferida: “não se pode contar com toda a receita em orçamento, porque há algumas dívidas muito custosas de efetuar a sua receção”.
Aliás, a receita não chegaria ainda que fossem cobrados todos os "calotes" que a população tinha para com a câmara, nomeadamente referentes a taxas e licenças, o que tornava impossível que se pudesse fazer obras de grande vulto, que as necessidades públicas reclamavam “incessantemente”, frisou.
Assim sendo, propôs que, “ou se lançava uma contribuição para acorrer às despesas, ou se reduzia os ordenados a todos os empregados” municipais.
Desconhece-se se houve alguma discussão sobre esta decisão polémica, mas o certo é que a mesma foi aprovada por unanimidade.
É preciso esclarecer que, naquele tempo, o município ainda não era o grande empregador que é hoje. Mesmo assim, o escrivão da câmara, os médicos, o cirurgião e até o administrador do concelho viram os seus salários reduzidos. Ao mesmo tempo, anulou-se a verba para pagar a um zelador e a um amanuense – uma espécie de escriturário público – por se entender não haver necessidade destes profissionais. “Por não haver meios”, foram ainda cancelados os gastos com mobília.
A juntar a todos estes cortes, deliberou-se lançar contribuições indiretas – já habituais em anos anteriores – sobre todos os carros e carretas em circulação e sobre os produtos vendidos a retalho no concelho: carne fresca, vinho e peixe, à exceção do bacalhau.

Não obstante, em 1853 – ano em que vigorou este orçamento restritivo, a câmara Municipal devia o primeiro semestre de ordenados aos seus empregados – os mesmos que tiveram os vencimentos reduzidos. Em falta estava também o azeite aos que acendiam as candeias públicas; a limpeza das ruas; os ordenados das amas dos expostos; o vencimento da rodeira e o próprio azeite para a roda dos expostos.

Capturar aterro marginal2.JPG

Intrigante é pensar como terá a câmara conseguido superar estes tão grandes constrangimentos financeiros, uma vez que os outros livros de atas arderam no incêndio que destruiu o arquivo municipal em 1965. Sabe-se, no entanto, que até ao início do século XX, fizeram-se obras de vulto, como o novo edifício dos paços do concelho, a cadeia da comarca e a continuação do aterro, que deu origem à avenida marginal.

 

À margem

Maria_da_Fonte.jpg“..As Câmaras Municipais podem, sem ofensa da lei, alterar, por meio dos seus orçamentos anuais, os ordenados dos empregados do Município, salva a aprovação dos respetivos Conselhos do Distrito”, pois nada impede a diminuição dos ordenados de todos os funcionários públicos, “porque não há a atender aos direitos que se suponham adquiridos por aqueles empregados e sim às necessidades e maior conveniência do serviço e às forças dos rendimentos municipais”. Isto comunicava sua Majestade, a Rainha D. Maria II, em junho de 1845, na sua versão da teoria que defende ser preciso cortar a alguns para que se consiga pagar a todos e atender às superiores despesas do Estado. A determinação vem em Diário do Governo, assinada por José Bernardo da Silva Cabral, irmão de António Bernardo da Costa Cabral. Em conjunto, formaram o denominado “governo dos Cabrais” que, com o apoio da monarca, administrou o País entre 1842 e 1846. Tinham como missão controlar o défice público, mas fizeram-no sobretudo aumentando a carga fiscal – onde é que já ouvimos isto? – ao mesmo tempo que colecionaram honrarias e riqueza pessoal. O conjunto de medidas que adotaram em várias áreas suscitaram a ira popular, que os derrubou no que ficou para a história como a Revolta da Maria da Fonte.
Mas isso é outra história…


…………..

Já antes falei de João Rodrigues da Cunha Aragão Mascarenhas, e de como, enquanto juiz, condenou um dos mais dotados tribunos que o parlamento já conheceu, por ter morto a mulher, numa versão real da tragédia da rua das Flores.

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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/02/01/001

PT/AHMALCS/CMALCS/EXTERNO/01/06/001
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0074

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/02/01/0070

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/02/01/0081

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Cabralismo
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=779662

Instantâneos (24): a brutal tourada no mar

regresso copejo atum.jpg

 

De regresso, é uma calmaria. Corpos luzidios e inertes enchem o convés, o sol refletido nas peles azul-metálico. Os homens manejam a embarcação e descansam, curando mazelas da última contenda - um arranhão, um golpe mais profundo que requer cuidados – pouco mais quebra a estranha tranquilidade que sucede às grandes tormentas. Apenas as manchas de sangue ainda fresco, aqui e ali, dão conta que algo de muito terrível teve lugar.

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O copejo do atum é um espetáculo frenético e medonho. Os grandes peixes são encurralados numa espécie de arena confinada por redes e barcos. Os pescadores penduram-se entre a amurada e o abismo. Com um braço seguram o cabo que os prende à vida e, com o outro, empunham os bicheiros, espécie de pequena foice com que fisgam os peixes e os içam para bordo.

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Os animais contorcem-se, tentam desesperadamente encontrar uma saída. Os homens esforçam-se por acabar rapidamente com aquela luta.
Têm as roupas e a pele machadas de sangue, gordura e sal.
Transfiguram-se em seres implacáveis até ao último peixe capturado e alçado para a embarcação já apinhada, mas a sua fragilidade é denunciada pelos esgares de esforço e dor e porque só a pares conseguem finalmente trazer para dentro cada enorme atum que insiste em bater com os vigorosos rabos pontiagudos, num ruído ritmado, irritante, mas inútil.

Um último sinal de alento quando já nada há a fazer. É preciso regressar.
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As imagens são do copejo do atum em Tavira, no Algarve. A atividade é mais antiga, mas a partir da década de 30 do século XIX, multiplicaram-se naquela região empresas que se dedicavam à captura do atum, que atravessa a nossa costa nas suas migrações sazonais. Os peixes eram encurralados numa armação de redes – as almadravas – e copejados para bordo. A cena, descrita como “tourada marinha”, impressionou Raúl Brandão. Pode ler a sua descrição aqui (pag.23), mas o resto da revista também vale a pena.

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Fontes
Lese, Mary Costa - O atum em Portugal entre 1896 e 2011: Contributos para a sua história ambiental, ecológica e económica – dissertação de mestrado em ecologia e gestão ambiental, 2013, Faculdade de Ciências, Departamento de Biologia Animal, Universidade de Lisboa, disponível em:
repositorio.ul.pt/bitstream/10451/9817/1/ulfc103169_tm_lese_costa.pdf

http://desvendando-historia.blogspot.com/2008/05/almadrava-epopeia-da-pesca-do-atum.html

Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt

Panorama – Revista Portuguesa de Arte e Turismo
Nº23, ano 4º - 1945

http://dicionario.priberam.org/copejar

Imagens
Arquivo Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/
Artur Pastor
PT/AMLSB/ART/050229
PT/AMLSB/ART/005621
PT/AMLSB/ART/050209

Ainda…Carlos Cohen

A cara do primeiro figurinista português

carlos cohen foto.JPG

Cabelo armado, frisado, ligeiramente comprido; bigodes longos e recurvados numa posição pouco natural, barbicha sobre o queixo, longa e aparada. Porte elegante, “vestindo sempre com máxima distinção”. Assim era Carlos Cohen, o primeiro figurinista português, o mais requisitado alfayate costumier de Lisboa, o homem que, “a par de um raro gosto harmónico nas cores e de uma justeza de linhas inteiramente artística”, introduziu na sua arte a “ciência dos estilos históricos e das épocas, que antes dele quase se desconhecia em guarda-roupas de teatro português”.
aqui falei de Carlos Cohen, do rigor, fruto de muito estudo, que imprimiu à profissão de costumier, transformando-a para sempre em Portugal.
Mas, só agora conheci a sua cara, que partilho aqui.
Custa imaginá-lo arruinado e andrajoso, como acabaria por morrer, por nunca mais recuperar do incêndio que lhe destruiu o vasto e riquíssimo guarda-roupa, o atelier e todo o edifício de quatro pisos entre as ruas dos Correeiros e da Betesga.
Foi em 1886. No terrível sinistro pereceram cinco pessoas. Carlos Cohen não tombou, mas ficaria ferido de morte.
Aqui, pode conhecer toda a história deste artista, ainda hoje com obras em destaque nos museus do Traje e do Teatro.

 

Fontes
Carteira do Artista, de Sousa Bastos
https://archive.org/stream/carteiradoartist00sousuoft/carteiradoartist00sousuoft_djvu.txt

 

O sal da história

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Um ano e 85 posts depois, cá estou… com o mesmo entusiasmo do 1º dia, curiosidade igual à do momento original; vontade ainda mais forte do que no início. Agradeço a todos os que têm lido e também as questões que colocaram, as pistas que forneceram, os comentários que deixaram, aqui e no Facebook.
Aprendi imenso neste ano, não só sobre os temas que aqui já revelei, mas sobre outros com que, indiretamente, me cruzei nestas minhas pesquisas. Só por isso, já foi fantástico.
Um ano é algo insignificante na vida de um blog. É preciso continuar, tendo sempre em mente que aqui não se fala de História – deixemos isso para quem sabe – mas tenta-se, de forma descontraída e o mais documentada possível, contar histórias/estórias dessa História…sempre com uma pitada de sal, claro.
Obrigada!
C.V.

A maldição dos monumentos do Rossio

Rossio 1.jpg

 

No centro da praça do Rossio, em Lisboa, ergueu-se um monumento que foi derrubado mesmo antes de estar concluído. O elogio à vitória liberal de 1820 morreu à nascença, como o próprio regime. Quarenta e quatro anos depois, era demolida uma segunda tentativa de monumento, que foi alvo de chacota popular. Como não há duas sem três, só em 1870 se chegou ao consenso necessário para se erigir nova obra. Pelo meio, a praça ainda viu erguer duas colunas evocativas que também não duraram.

rossio 2.jpg“É obra de um português, tem solidez bastante e oferece a ideia de que o sistema constitucional durará perpetuamente”. Foram estes os argumentos que, depois de muitas indecisões e algumas alterações ao desenho original, sustentaram a escolha da proposta apresentada por Domingos António Sequeira para, “no primeiro lugar da cidade” de Lisboa – o Rossio - enaltecer, de uma só vez, as mais importantes datas do jovem liberalismo nacional: “os faustíssimos dias 15 de Setembro, 24 de Agosto, e 1° de Outubro”*.
Estávamos em 1821 e Portugal iniciava uma nova etapa da sua história política. A primeira assembleia constituinte esboçava a lei fundamental de um país liberal. O absolutismo estava morto, mas devia ser enterrado. Por todo o território, se instou os líderes de opinião a elogiar a nova ordem, sucederam-se festejos, loas e manifestações de regozijo, mas era preciso deixar para a posteridade marcas indeléveis destes novos tempos.
O senado deu o mote, os moradores organizaram-se no sentido de levar por diante uma subscrição pública para angariar as verbas necessárias e, com toda a pompa e circunstância, na presença de D. João VI, regressado apenas dois meses antes do Brasil, a primeira pedra é lançada a 15 de setembro. Os trabalhos prosseguem, mas não chegam a bom porto.

No final da primavera de 1823, os absolutistas chegam ao poder e o esboço de monumento é demolido, porque os ventos políticos mudaram mais rapidamente que a capacidade de execução artística. O mesmo acontece no Porto, onde a destruição do que aí se construía para enaltecer os constitucionalistas teve tanto formalismo como o lançamento da 1ª Pedra.

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O regresso ao passado durou pouco, mas não parece ter havido vontade de recuperar o antigo projeto, talvez porque havia assuntos mais prementes a tratar.
Só em 1852 se promove outro monumento. Tratava-se então de uma homenagem a D. Pedro IV.
O “galheteiro”, como o povo o batizou, teve todas as honras habituais de lançamento, com a rainha D. Maria II “em grande estado” e todos os que alguma importância tinham em Lisboa nessa época a participar na cerimónia.

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De pouco valeu, porque nunca passaria do pedestal (na imagem 3), “conceção mesquinha que desdizia do desafogado e grandioso do recinto”, mas que ali permaneceu uma década.
Nesse entretanto, serviu de base para colunas efémeras no topo das quais estava uma representação de Himeneu (deus grego do casamento), a propósito dos enlaces de D. Pedro V e de D. Luís (imagem 4).

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Em 1864, o muito criticado “galheteiro”, de “caricata memória”, veio abaixo. Durante algum tempo, a praça esteve “nua”, mas já então germinava a ideia de erigir outro memorial ao monarca que pôs um ponto final no absolutismo em Portugal.

rossio 6.jpgDesta feita, abriu-se concurso internacional, ao qual concorreram 87 propostas de toda a Europa. Ganharam os franceses Elias Robert e Jean Antoine Gabriel Davioud. Desta vez, só o trabalho de cantaria e a autoria das estátuas nos cantos da base tiveram “dedo” de portugueses. **
Como os políticos não brincam com estas coisas de poderem brilhar, o novo monumento voltou a ter direito a festa e honrarias, inaugurado na presença “de toda a Lisboa”, a 29 de abril de 1870.
É o que ainda lá está. Resta saber até quando…


À margemrossio 7.jpg

Muito antes de se falar em enaltecer a constituição e o regime liberal, o Rossio viu demolir outro monumento. Uma fabulosa fonte ornamentada com um poderoso Neptuno “com barbas, capacete de plumas e tridente na mão”, já existente no século XVI, mas que não sobreviveria aos constantes episódios de secura, sendo derrubada em 1786 - na imagem. Paralelamente, o objetivo de embelezar aquela espantosa praça e, com isso, deixar o nome escrito na história de Lisboa, parece ter sido algo bastante apelativo para os artistas de varias áreas. Em 1812, o arquiteto Honorato José Correa de Macedo ofereceu à regência o desenho de um monumento com as efigies de D. João VI e de Jorge III de Inglaterra. A ideia não vingou, tal como a proposta de António Feliciano de Castilho, defendida em 1852. O escritor e pedagogo preconizava enaltecer D. Pedro IV, com “um braço colossal de ferro ou bronze” rasgando o chão e erguendo-se à altura dos edifícios circundantes, segurando na mão um facho que levaria a claridade a toda a praça, representando o monarca “iluminando a pátria com a luz da constituição”. Seria original, mas também se ficou pela intenção.

rossio 8.jpgCurioso mesmo é que durante muito tempo se quisesse erigir algo imponente, e memorável no centro do que era então ainda um grandioso recinto…em terra batida. Com efeito, o primeiro calcetamento do Rossio só se concretizou em 1849, fazendo uso de mão-de-obra presa, conhecidos como os “grilhetas” do castelo de S. Jorge. 
Mas isso é outra história…

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*Respetivamente, o pronunciamento militar em Lisboa, com destituição da regência e nomeação de Governo interino; pronunciamento militar no Porto – revolta liberal - com formação de uma junta provisória do Governo Supremo do Reino; chegada dos membros desta Junta à Capital.

** Oficina de cantaria de Germano José de Sales. Escultores Fortunato e Punhe (?).

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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/EXTERNO/01/06/001
Diário do Governo nº1 - nº78

Biblioteca Nacional Digital
www.purl.pt

Lisboa antiga – bairros orientais, de júlio de Castilho 2ª edição, Volume X; Lisboa S Industriais da CML 1937.

Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, disponível em
http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821

https://acervo.publico.pt/culturaipsilon/noticia/uma-cronologia-com-base-na-correspondencia-do-pintor-1711917

Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/sala/online/ui/SearchBasic.aspx
Terreiro do Rossio em 1848
Estúdio Mário Novais
Desenho de Legrand
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/MNV/001458
Fragmento da gravura colorida "A reunião da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino e Regência Interina de Lisboa"
Estúdio Mário Novais
Gravura de Antoine Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/MNV/000746
Galheteiro
PT/AMLSB/POR/060365
4 Coluna evocativa
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000462
Rossio 1866
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000463
Quiosques e tipoias
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000456
Chafariz de Neptuno
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/002063
Rossio sem monumento
Eduardo Portugal
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001638

 

Instantâneos(24): O sonho de Cassiano Branco para a Califórnia da Margem Sul

costacaparica cassiano 1930.jpgUma estância balnear onde não havia lugar à habitação permanente, onde enormes piscinas – uma coberta e outra descoberta – bem como um vasto canal entre a zona urbana e o areal, complementavam a oferta de praia para banhos e desportos náuticos. Largas avenidas traçadas a régua e esquadro, dois grandes hoteis…em suma, um paraíso elitista e hollywoodesco da Costa de Caparica à Fonte da Telha. Foi este sonho, dificilmente concretizável, que Cassiano Branco passou para o papel e apresentou como a sua visão do futuro aspiracional para aquele território, no longínquo ano de 1930, muito antes da balbúrdia que, décadas depois, dominaria aquela paisagem.
Numa época em que a “Costa” era pouco mais que uma aldeia de pescadores dando os primeiros passos como local de férias - uma atividade então ainda relacionada mais com questões de saúde - Cassiano Branco planeava uma cidade magnífica, ligada à praia por pontes pedonais e equipada com teatros, cinema, um casino de grande dimensões, campos desportivos ladeados de bancadas, salas de conferências, amplos parques de estacionamento e até uma pista para pequenos aviões de turismo.
Ao fundo, apenas a arriba fóssil nos recorda onde estamos.
Era um espaço deslumbrante, cosmopolita, pensado para uma sociedade urbana em ascensão, culturalmente exigente, com poder de compra e disponibilidade para fruir as coisas boas da vida, qual Califórnia da Margem Sul, que também atrairia turismo estrageiro de luxo.
Não parece haver ali lugar para os pescadores, que por aquela altura povoavam a “Costa” ganhando o seu pão nas ondas; nem para o proletariado, que viria a ser a força motriz do crescimento daquela região; muito menos para tendas, barracas, barraquinhas e ainda outras construções abarracadas ou de fraca arquitetura e pior ordenamento que minaram aquela frente de mar durante décadas e que só nos últimos anos foram sendo limitadas, organizadas ou eliminadas.
O sonho e o pesadelo numa mesma localização.
O mar azul e profundo; as areias finas, a escarpa sobranceira, a luxuriante Mata Nacional dos Medos; o altaneiro Convento dos Capuchos…tudo isso é a realidade, que assiste impávida aos devaneios e atropelos.

Fontes
Arquivo Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/
Imagem
PT/AMLSB/CB/09/02/06
O apogeu do modernismo em Cassiano Branco 1928-1939, de Paulo Jorge dos Mártires Batista; Arquivo Municipal de Lisboa
Paulo Tormenta pinto, em Cassiano Branco, 1897-1970 – Arquitetura e Artifício, Lisboa, Caleidoscópio, 2007, citado no trabalho anterior.
António Ferro, em Hollywood capital das image; Lisboa, Portugal, Brasil, 1931, idém.