A maldição dos monumentos do Rossio
No centro da praça do Rossio, em Lisboa, ergueu-se um monumento que foi derrubado mesmo antes de estar concluído. O elogio à vitória liberal de 1820 morreu à nascença, como o próprio regime. Quarenta e quatro anos depois, era demolida uma segunda tentativa de monumento, que foi alvo de chacota popular. Como não há duas sem três, só em 1870 se chegou ao consenso necessário para se erigir nova obra. Pelo meio, a praça ainda viu erguer duas colunas evocativas que também não duraram.
“É obra de um português, tem solidez bastante e oferece a ideia de que o sistema constitucional durará perpetuamente”. Foram estes os argumentos que, depois de muitas indecisões e algumas alterações ao desenho original, sustentaram a escolha da proposta apresentada por Domingos António Sequeira para, “no primeiro lugar da cidade” de Lisboa – o Rossio - enaltecer, de uma só vez, as mais importantes datas do jovem liberalismo nacional: “os faustíssimos dias 15 de Setembro, 24 de Agosto, e 1° de Outubro”*.
Estávamos em 1821 e Portugal iniciava uma nova etapa da sua história política. A primeira assembleia constituinte esboçava a lei fundamental de um país liberal. O absolutismo estava morto, mas devia ser enterrado. Por todo o território, se instou os líderes de opinião a elogiar a nova ordem, sucederam-se festejos, loas e manifestações de regozijo, mas era preciso deixar para a posteridade marcas indeléveis destes novos tempos.
O senado deu o mote, os moradores organizaram-se no sentido de levar por diante uma subscrição pública para angariar as verbas necessárias e, com toda a pompa e circunstância, na presença de D. João VI, regressado apenas dois meses antes do Brasil, a primeira pedra é lançada a 15 de setembro. Os trabalhos prosseguem, mas não chegam a bom porto.
No final da primavera de 1823, os absolutistas chegam ao poder e o esboço de monumento é demolido, porque os ventos políticos mudaram mais rapidamente que a capacidade de execução artística. O mesmo acontece no Porto, onde a destruição do que aí se construía para enaltecer os constitucionalistas teve tanto formalismo como o lançamento da 1ª Pedra.
O regresso ao passado durou pouco, mas não parece ter havido vontade de recuperar o antigo projeto, talvez porque havia assuntos mais prementes a tratar.
Só em 1852 se promove outro monumento. Tratava-se então de uma homenagem a D. Pedro IV.
O “galheteiro”, como o povo o batizou, teve todas as honras habituais de lançamento, com a rainha D. Maria II “em grande estado” e todos os que alguma importância tinham em Lisboa nessa época a participar na cerimónia.
De pouco valeu, porque nunca passaria do pedestal (na imagem 3), “conceção mesquinha que desdizia do desafogado e grandioso do recinto”, mas que ali permaneceu uma década.
Nesse entretanto, serviu de base para colunas efémeras no topo das quais estava uma representação de Himeneu (deus grego do casamento), a propósito dos enlaces de D. Pedro V e de D. Luís (imagem 4).
Em 1864, o muito criticado “galheteiro”, de “caricata memória”, veio abaixo. Durante algum tempo, a praça esteve “nua”, mas já então germinava a ideia de erigir outro memorial ao monarca que pôs um ponto final no absolutismo em Portugal.
Desta feita, abriu-se concurso internacional, ao qual concorreram 87 propostas de toda a Europa. Ganharam os franceses Elias Robert e Jean Antoine Gabriel Davioud. Desta vez, só o trabalho de cantaria e a autoria das estátuas nos cantos da base tiveram “dedo” de portugueses. **
Como os políticos não brincam com estas coisas de poderem brilhar, o novo monumento voltou a ter direito a festa e honrarias, inaugurado na presença “de toda a Lisboa”, a 29 de abril de 1870.
É o que ainda lá está. Resta saber até quando…
À margem
Muito antes de se falar em enaltecer a constituição e o regime liberal, o Rossio viu demolir outro monumento. Uma fabulosa fonte ornamentada com um poderoso Neptuno “com barbas, capacete de plumas e tridente na mão”, já existente no século XVI, mas que não sobreviveria aos constantes episódios de secura, sendo derrubada em 1786 - na imagem. Paralelamente, o objetivo de embelezar aquela espantosa praça e, com isso, deixar o nome escrito na história de Lisboa, parece ter sido algo bastante apelativo para os artistas de varias áreas. Em 1812, o arquiteto Honorato José Correa de Macedo ofereceu à regência o desenho de um monumento com as efigies de D. João VI e de Jorge III de Inglaterra. A ideia não vingou, tal como a proposta de António Feliciano de Castilho, defendida em 1852. O escritor e pedagogo preconizava enaltecer D. Pedro IV, com “um braço colossal de ferro ou bronze” rasgando o chão e erguendo-se à altura dos edifícios circundantes, segurando na mão um facho que levaria a claridade a toda a praça, representando o monarca “iluminando a pátria com a luz da constituição”. Seria original, mas também se ficou pela intenção.
Curioso mesmo é que durante muito tempo se quisesse erigir algo imponente, e memorável no centro do que era então ainda um grandioso recinto…em terra batida. Com efeito, o primeiro calcetamento do Rossio só se concretizou em 1849, fazendo uso de mão-de-obra presa, conhecidos como os “grilhetas” do castelo de S. Jorge.
Mas isso é outra história…
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*Respetivamente, o pronunciamento militar em Lisboa, com destituição da regência e nomeação de Governo interino; pronunciamento militar no Porto – revolta liberal - com formação de uma junta provisória do Governo Supremo do Reino; chegada dos membros desta Junta à Capital.
** Oficina de cantaria de Germano José de Sales. Escultores Fortunato e Punhe (?).
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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/EXTERNO/01/06/001
Diário do Governo nº1 - nº78
Biblioteca Nacional Digital
www.purl.pt
Lisboa antiga – bairros orientais, de júlio de Castilho 2ª edição, Volume X; Lisboa S Industriais da CML 1937.
Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, disponível em
http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821
https://acervo.publico.pt/culturaipsilon/noticia/uma-cronologia-com-base-na-correspondencia-do-pintor-1711917
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/sala/online/ui/SearchBasic.aspx
Terreiro do Rossio em 1848
Estúdio Mário Novais
Desenho de Legrand
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/MNV/001458
Fragmento da gravura colorida "A reunião da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino e Regência Interina de Lisboa"
Estúdio Mário Novais
Gravura de Antoine Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/MNV/000746
Galheteiro
PT/AMLSB/POR/060365
4 Coluna evocativa
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000462
Rossio 1866
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000463
Quiosques e tipoias
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000456
Chafariz de Neptuno
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/002063
Rossio sem monumento
Eduardo Portugal
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001638