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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (34): água fresca, limonada ou capilé?

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Parece-nos hoje muito moderna e cosmopolita a enorme variedade de propostas que enchem as ruas de Lisboa, transformadas em expositor de comidas e bebidas mais ou menos originais, servidas a quem passa, ao balcão de um qualquer veículo, tão colorido quanto espalhafatoso. Pois, estes novos empreendedores nada mais fazem que reinventar a ancestral atividade de venda ambulante, indo ao encontro da fome ou da sede dos muitos transeuntes.

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Menos extravagante parecia, no início do século XX, quem, nos mesmos locais, vendia limonada, refrigerantes improvisados e água fresca - a copo - amenizando os escaldantes verões da Capital e deixando cheio de inveja e ainda mais sedento quem não tinha dinheiro nem para umas gotas... e só olhava.
Na época (1908-1912) a água não chegava a todas as casas e ainda era comum ferver esse precioso líquido obtido nas fontes públicas, receando contágios tão nefastos no passado. A criançada, por outro lado, deliciava-se com os refrescos. Os vendedores de capilé – bebida também presente nos estabelecimentos com “casa própria” - eram um verdadeiro chamariz para os mais novos, talvez na expetativa de escorropichar algum copo.

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Traziam a água em bilhas de barro e tinham o requinte de, para além de adoçar a mistura, aromatizá-la com uma casca de limão. Mesmo que só tivessem um banco como utensílio de trabalho.

 

 


Capilé e groselha são sabores bem portugueses, ainda hoje recordados por muitos e, talvez por isso, relançados no “mercado da nostalgia”. Mantêm as embalagens e rótulos de outros tempos.

Mas, manterão o encanto?


Fontes
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000146
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000145
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000144

 

Instantâneos (33): a viscondessa, o marido e o administrador da Caixa Geral de Depósitos que era artista

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Leve, fresca, deslumbrante. Uma beleza aparentemente ingénua, numa pose estudada para parecer despreocupada, espontânea. Assim é Carlota, qual Scarlet O’Hara de E tudo o vento levou, parece hipnotizar-nos, seduzir-nos. O seu colo delicado, que o vestido branco desnuda, prende-nos o olhar. A figura é alva, imaculada, colorida apenas pelo xaile, o adorno no cabelo negro e a flor, vermelho-pecado. O seu rosto, inocente, quase nos convence que não sabe estar a ser contemplada, mas uma observação mais astuciosa revela-nos que tudo ali é intencional. A Viscondessa de Menezes sabe o efeito que provoca em quem a vê. E quem assim a retrata conhece bem o resultado do seu fascínio, porque casou com ela.
Ela é Carlota Emília Mac-Mahon Pereira Guimarães, uma das mais elegantes senhoras da crème de la crème da sociedade lisboeta da segunda metade do século XIX. As suas vestes sumptuosas e a postura irrepreensível eram sempre das mais badaladas em tudo o que era soirée ou recital a que assistia. Com 20 anos (1858) festejou o enlace com Luís de Miranda Pereira de Menezes (Visconde de Menezes).
Portuense, 17 anos mais velho, nobre, rico, corajoso e cosmopolita. Em jovem bateu-se pelos liberais no cerco do Porto e, desiludido com o ensino das belas artes que cursou no nosso País, partiu para conhecer novos mundos e experiências artísticas. De regresso, especializa-se em retratos, nos quais demonstra especial talento...mas não só.

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O 2º Visconde de Menezes, para além de casar com esta radiante donzela, com quem teve pelo menos uma filha, torna-se o primeiro administrador da Caixa Geral de Depósitos.

A função, que não estava ainda conspurcada com o peso da suspeita que as recentes notícias têm trazido à praça pública, era já de grande responsabilidade, porque se tratava o arranque do banco público.


É de sua autoria, por exemplo, o primeiro regulamento da instituição.

Quem sabe o que poderia ter sido diferente, se os últimos administradores fossem versados em artes plásticas e não nas artes do crédito fácil?

 


Carlota, sempre a mais elegante e formosa nos numerosos convívios que frequentava, acabou da pior maneira para quem é assim tão belo: sucumbiu a um violento ataque de bexigas negras, pouco antes de completar 40 anos.

Ou então, não. Morreu da melhor maneira para quem é assim tão magnífico, não chegando a envelhecer.
Será, por isso, recordada jovem e esplendorosa.

O funeral foi em grande, claro. Contaram-se mais de 50 carruagens e estava presente tudo o que era gente importante, como nas muito requintadas festas a que a viscondessa comparecia.
O visconde, artista e banqueiro, morreu um ano depois.
…....
O quadro pode ser apreciado no Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea. Foi doado pela filha do casal, em 1919.

O auto-retrato do Visconde encontra-se no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto.
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Fontes
Textos de Maria Aires Silveira e Carlos Silveira
http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/ArtistPieces/view/46/artist

http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=200706

https://www.cgd.pt/Institucional/Patrimonio-Historico-CGD/Presidentes-Caixa/Pages/Primeiro-Administrador-Geral-CGD.aspx

https://en.wikipedia.org/wiki/Luís_de_Meneses,_2nd_Viscount_of_Meneses#/media/File:Auto-retrato_do_Visconde_de_Meneses_(1869),_Museu_Nacional_Soares_dos_Reis.png

Biblioteca Nacional Digital
www.purl.pt

Diário Illustrado
6º ano, nº 1533, 3 mai. 1977
6º ano, nº 1534, 4 mai. 1977

A misteriosa princesa de olhos tristes e alma de arquiteto

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A capela, em honra do rei mártir, ainda lá está, lembrando a sua passagem pelo Porto, mas nunca se cumpriu a vontade de Frederica de Montléart, a enigmática aristocrata que, contra tudo e contra todos, teimou em construi-la.

A primavera de 1854 foi marcada pela chegada a Portugal de uma estranha mulher. Dizia-se princesa. Andava sozinha, de dia e de noite, demonstrando grande coragem e intrepidez, numa altura em que às mulheres “de bom porte” estavam vedadas certas liberdades. A sua conduta, a simpatia perante os poucos com quem se relacionou e os seus olhos, tão belos quanto tristes, impuseram respeito e até reverência entre os intrigados cidadãos que com ela privaram, em Lisboa e no Porto, onde passou grandes temporadas. Chamava-se Frederica Augusta de Montléart e queria construir uma capela onde se rezasse pela alma do seu irmão, Carlos Alberto (na imagem), nostálgico rei da Sardenha, que escolheu o nosso país como última morada. O “traço” do edifício foi firmado pela própria, já que o trabalho dos arquitetos portugueses não pareceu agradar-lhe.

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A capela, que ganhou o nome do monarca obrigado a abdicar do trono após derrotas políticas e militares, ainda lá está, aninhada nos jardins que rodeiam o Palácio de Cristal, no Porto. A sua construção, no entanto, foi tudo menos pacífica, a começar pela pomposa cerimónia de lançamento da primeira pedra, onde, como é da praxe, tudo o que era gente importante, sobretudo políticos portuenses, quis marcar presença.
Não importou que, quer a câmara, quer o governo civil, ainda não tivessem aprovado o projeto ou a cedência do terreno, um espaço com 70 por 107 palmos (sim, palmos) no campo da antiga Torre da Marca, na época um descampado muito próximo da casa onde morreu Carlos Alberto.
Frederica Augusta encomendou projetos a um arquiteto de Lisboa e dois do Porto, mas já tinha uns esboços feitos pelo seu próprio punho e foram esses que vingaram.

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A situação gerou natural polémica, que se amplificou nos jornais, para além de terem surgido suspeitas que a princesa não era quem dizia ser – pois é filha de um segundo casamento da mãe, pertencente a uma linhagem menos badalada.
Em Itália, tal empreendimento foi repudiado pelo governo e pelo resto da família Saboia, enquanto, que em Portugal, se legava que o “risco” não era característico da nossa tradição arquitetónica, que a construção e fazia sem rumo ou fiscalização, ficando todas as importantes decisões a cargo do mestre pedreiro, António Lopes Ferreira, que se tornou, assim, coautor do projeto

capela princesa porto 6.GIFCom a princesa frequentemente ausente de Portugal, não admira que a obra tenha decorrido a um ritmo irritantemente lento, o que exasperava a promotora. A primeira missa só foi rezada em 1861, depois de muitas peripécias e da chegada das esculturas que adornam a fachada e o altar-mor, talhadas em Paris por Alexandre Oliva.
A utilização da capela também não foi menos conturbada. Frederica tinha firme intenção de aquela servir exclusivamente para orar pelo "mártir" seu meio-irmão, mas tal não foi o que aconteceu, logo a começar pela visita do sobrinho-neto Humberto, futuro rei de Itália, durante a qual se fizeram grandes festas, mas não se homenageou o desditoso avô.
Desgostosa com tanto abuso, a princesa entregou a gestão do espaço à Irmandade do Carmo, incumbida de levar por diante missas pela alma de Carlos Alberto e, mais tarde, doou-a ao nosso rei D. Luís. A esta oferta não terá sido estranho o facto de este ter anunciado, meses antes, que iria casar com Maria Pia, também ela uma Saboia, neta de Carlos Alberto e filha do homem que unificou a Itália, Vitor Emanuel II, por sua vez filho do rei deposto.capela princesa porto 8.GIF


Por ironia do destino, essa mesma rainha de Portugal também terminaria a sua vida exilada, como o avô, forçada a regressar à sua Piemonte natal pela implantação da república em Portugal.

Carlos Alberto, por outro lado, foi muito acarinhado no Porto. Ainda hoje é recordado, dando nome a uma praça e a um teatro, para além da capela desenhada pela saudosa irmã.

 

 

À margem

Frédérique Auguste Marie Xavérine Cunégonde Julie de Montléart viveu 70 anos (1814-1885) cheios de aventuras e tristezas, mas foi, a vários títulos, uma mulher excecional para a sua época. Em vez de se acomodar à vivência que a posição social lhe conferia, empenhou-se em causas, como a homenagem ao seu meio irmão Carlos Alberto da Sardenha, a defesa dos direitos dos animais ou o apoio aos desfavorecidos.
Era filha do segundo casamento de Maria Christina Albertina Carolina van Saksen-Koerland, princesa de Saxe-Curlândia, com Júlio Maximiliano Thibault, príncipe de Montléart.
Das suas longas estadias em Portugal contam-se alguns episódios, como aquele em que acolheu, no seu quarto, altas horas da noite, um homem ferido e embriagado. Só o deixou sair quando já estava sóbrio, tal como se tinha comprometido com o militar que o trouxe.

De resto, albergava-se em locais pouco luxuosos e sempre em quartos com porta para o exterior. Não queria dar satisfações sobre entradas e saídas.

O seu porte altivo contrastava com a sobriedade das indumentárias – modestas para alguém do seu estatuto. A sua pertinácia manifestou-se em numerosas ocasiões, não só quando conseguiu, com tantas dificuldades, erguer a capela no Porto, como quando frequentou as aulas de hebraico em Portugal. Fizesse chuva, sol ou vento, nunca faltava. Aliás, dominava pelo menos cinco línguas, entre as quais, o português.
Viveu em vários países e passou os seus derradeiros anos na Polónia, onde fundou várias escolas e, na grande mansão que habitava, criou um hospital onde tratava de desvalidos.
Casou com Karl Kurt von Wernitz, duque de San Simon e teve pelo menos um filho.
Foi encontrada morta no seu quarto na manhã do dia 30 de março de 1885. Dizem que se suicidou.

Mas isso é outra história...
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Fontes
A princesa Frederica Augusta de Montléart, de J. A. Pinto Ferreira. in Boletim Cultural, Câmara Municipal do Porto, ano XI, mar.-jun 1948; fascs. 1 e 2, Edições Marânus – Empresa Industrial Gráfica do Porto. Disponível em https://bmp.cm-porto.pt/Boletim_Cultural_da_CMP

http://www.dinastias.com/cgi-bin/gwd.exe?b=dinastias_tnnvspgmb;lang=en;i=19958

citando Manuscrit de Dominique de La Barre de Raillicourt, de l'Académie National d'Histoire, Lauréat de l'Académie Française et de l'Institut


https://www.findagrave.com/memorial/162269330/auguste-de_montl_art


https://aportanobre.blogs.sapo.pt/como-nasceu-a-capela-do-rei-carlos-14007


http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=15545


Arquivo Municipal do Porto
http://gisaweb.cm-porto.pt/

Reprodução de uma litografia da autoria de G. Cartagnola, retratando o rei Carlos Alberto da Sardenha.

Fotografias de Eduardo Pires de Oliveira

Instantâneos (32): pedras com alma

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“Provavelmente, não há no mundo qualquer outro monumento em torno do qual existam mais lendas, maior aura de romantismo ou de poesia”.
“Se acreditarmos que uma pilha de pedras pode ser possuidora de alma, então pode afirmar-se que esta alma assistiu a toda a multiplicidade de paixões de que o Homem é capaz, durante quase mil anos”*.
Testemunhou a ascensão e queda de dinastias. Presenciou muitos momentos de júbilo e glória; devassidão e ruína.

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Ao longo dos séculos, ouviu o juramento de monarcas; deixou que depositassem a seus pés os despojos dos inimigos derrotados; escutou preces em todas as línguas; viu túmulos, arcos e vitrais serem eliminados, substituídos por elementos artísticos ao gosto de cada época; observou estátuas serem decapitadas, tesouros roubados, o seu ventre profanado e transformado em armazém. Sentiu a voracidade do fogo em outras eras… e a tudo assistiu impávida, altiva, como as gárgulas.

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Notre Dame voltará a erguer-se, qual Fénix renascida.

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Já antes falei de monumentos incendiados por incúria, ganância ou maldade. Pode ler O homem que roubou e incendiou a Patriarcal.

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*Os dois primeiros parágrafos deste texto são uma tradução livre do inglês. Texto pertencente a um postal de 1901.

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Diário Illustrado
20º ano; nº6:392 – 17 jan. 1891

Arquivo Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/
H.C. White Co. ; H.C. White CO., Publishers, J.J. Killelea & Co., London & Paris-The "Perfect" Stereograph. (Trade Mark)

Arquivo Municipal do Porto
http://gisaweb.cm-porto.pt/
Foto Guedes
F-NV/FG-M/4/12(10)
F-NV/FG-M/4/12(4)

 

 

Pela imprensa (10): quem tem uma Clement tem tudo

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Desista das marcas brancas das grandes superfícies comerciais de desporto! Esqueça os veículos de duas rodas partilhados nas ruas das grandes cidades. Compre hoje mesmo uma Clement. Uma bicicleta de verdade, premiada desde o século XIX e a preferida de todas as classes sociais – clero, nobreza e povo. Já agora, abandone os calções de ciclista, mesmo os almofadados, e também não precisa de capacete. Para quê, se pode usar um belo conjunto de casaco com peplum – aquele folhinho abaixo da cintura - e saia comprida, tendo como cereja no topo do bolo um gracioso chapéu adornado com flores ou um vistoso laço? É natural que, assim engalanada, não consiga alcançar velocidades alucinantes, mas quem quer de acelerar, quando pode passear pachorrentamente?

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Afinal, não é todos os dias que se conduz uma bicicleta com reputação universal de nenhuma outra lhe chegar às rodas em termos de elegância, perfeição, leveza, rolamentos e preço. Para além do mais, é um veículo de confiança, capaz de suportar ciclistas de 140 quilos – que os há, muitos, por aí…!!! A juntar a todas estas vantagens, o representante – a Santos Beirão & Henrique, situada no Rossio – conserta gratuitamente as bicicletas que vende – o que me parece redundante, uma vez que raramente devem avariar – e facilita a aquisição com prestações mensais, que se supõe serem suaves.


A Clement é uma marca francesa que deu cartas no sector das bicicletas no inicio do século XX, mas este será até um dos menos vistosos dos seus anúncios, pois, para além da qualidade dos velocípedes, a Clement ficou conhecida pela sua espampanante publicidade.

Fundada por Adolphe Clement, com o dinheiro ganho como ciclista, passou de mera oficina de reparação (1876), em Bordéus, a loja e, posteriormente, fabricante de múltiplos modelos, em Marselha e depois Paris, atividade complementada com uma escola de condução e participação em competições.

O empreendedor Clement, que detinha os direitos dos pneus Dunlop em França, acabaria por se unir àquela marca para expandir o seu negócio, produzindo triciclos, quadriciclos e, mais tarde, até bicicletas motorizadas, motas e automóveis.

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Quanto à representante da marca, a Santos Beirão & Henriques Lda, conhecida como Casa Memória, foi, no nosso país, o terceiro estabelecimento e vender automóveis, ainda no final do século XIX e também comercializou as chamadas “bicicletas a vapor”. O primeiro exemplar chegou em 1895, para espanto da clientela que se aglomerava para assistir às demonstrações. Em 1902 já vendia automóveis Clement.

 

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
O tiro civil – Ano VI, nº180 – 15 fev. 1900

A implantação do automóvel em Portugal 1895-1910, de José Carlos Barros Rodrigues, Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2012. Disponível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/9676/1/Rodrigues_2012.pdf


https://en.wikipedia.org/wiki/Cl%C3%A9ment_Cycles
Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=11229973 Image proveniente trabalho gráfico sobre Adolphe Clément-Bayard, (French). Original presente no Museu Automóvel de Reims

E todos a pneumónica levou

 

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A epidemia matou 580 pessoas na pequena vila de Alcácer do Sal e marcou toda uma geração, deixando numerosos órfãos e muitas famílias sem sustento. Entre tamanha desgraça, destacaram-se alguns “heróis”.

 

O último trimestre de 1918 foi mortífero para a Europa em geral e para Portugal em particular. A gripe pneumónica sucedeu à I Grande Guerra e não deixou qualquer família a salvo. Em Alcácer do Sal, a morte não se fez rogada, levando consigo 580 pessoas, um número dramático numa população tão escassa, até porque foram sobretudo jovens adultos os que pereceram. No meio de tanta desgraça, destacaram-se alguns heróis, ajudando a combater o flagelo que passou por aquela localidade alentejana durante esse negro mês de outubro.

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A epidemia, vinda do país vizinho e por isso também chamada de gripe espanhola, terá dado entrada por Montalvo, na época zona de grande aglomeração de cabanas onde viviam sem as mínimas condições centenas de trabalhadores rurais. Terão sido as suas migrações que aceleraram o contagio e fizeram em Alcácer do Sal “um número de vítimas superior ao de outros concelhos”.
À então vila acorreram muitos em busca de auxilio para o seu padecimento. Em dez dias, o Hospital da Misericórdia, o único que existia então, já não comportava mais doentes, pelo que se adaptou a antiga escola Conde Ferreira (na imagem 3), junto à qual se construíram anexos; ocupando-se para o mesmo fim a escola na época existente no largo da Ribeira Velha.

Capturar.GIFNa casa de Adelaide Zacarias, improvisou-se um hospital para crianças desvalidas.

Mesmo assim, houve gente deitada pelos corredores, até porque não havia quem quisesse tratar dos que já evidenciavam sinais da doença.
Neste cenário de pavor, destacam-se os poucos que se apresentaram como voluntários, casos de Maria Lucinda Seixas, Maria Fortunata Gagueija e Carlota da Silveira, que a pneumónica converteu em enfermeiras dedicadas.

Os médicos Joaquim Maria Dias de Vasconcelos, já idoso e coadjuvado por um clínico enviado pelo Estado, deu todo o apoio na vila, enquanto Joaquim José Alegre e Augusto Martins Gonçalves se desdobraram nas freguesias rurais, sem dormir nem descansar durante dias.
As farmácias tiveram que limitar a entrada de pessoas, para evitar tumultos. O farmacêutico José Fernandes de Carvalho e o seu irmão foram dos primeiros a sucumbir e tiveram que ser substituídos por outros, como Vítor Branco, que tinha vindo de férias e acabou atrás do balcão da farmácia da Misericórdia, onde já estava Manuel Augusto de Matos, que também adoeceu. João de Lara Alegre, deixou funções como secretário da câmara municipal e fez de farmacêutico durante semanas. O mesmo para Luís António Carraça, grande auxilio para o farmacêutico Jaime Romano Batista, extenuado e com a família doente.

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Os serviços paralisaram. Deixou de haver água para consumo na vila e faltaram bens de maior necessidade, o que acabaria por ser colmatado com a ajuda de alcacerenses mais abastados, que doaram géneros e emprestaram embarcações e animais para que se fosse buscar o que fazia falta, estabelecendo-se um sistema de assistência aos mais pobres que, não podendo trabalhar, também não tinham o que comer.
Não se sabia bem como se efetuava o contágio e, por isso, tentou-se atenuar possíveis focos da praga: criou-se uma brigada de limpeza e desinfeção de ruas e vielas, mictórios, pias de despejo e sarjetas. Imitando os grandes centros, fizeram-se fogueiras com eucalipto e alcatrão que, diga-se, deviam fazer mais mal do que bem, mas transmitiam às pessoas a ideia de se estar a afastar o mal.
As consequências da pneumónica, no entanto, não se ficaram pelos que faleceram naqueles meses de 1918. A epidemia marcou toda uma geração, porque deixou “muitíssimas crianças” na orfandade e “grande numero de mães e pais que ficaram com três, quatro ou cinco filhos menores, alguns ainda de peito, sem meios para poderem prover à sua sustentação e criação”.

À margem

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A devastação que a gripe pneumónica provocou em Alcácer do Sal espelha o que aconteceu à escala global – 20 milhões de mortos. Em Portugal, por exemplo, a epidemia foi o fenómeno que mais matou durante todo o século XX: cerca de 60 mil pessoas, especialmente jovens, grupo mais vulnerável a este mal. Ninguém estava preparado para algo assim, até porque as primeiras vagas da doença não foram especialmente fatais. Entre outubro e novembro de 1918 o panorama já foi bem diferente, com cerca de 5 mil óbitos só em Lisboa. Em poucas semanas, improvisaram-se três novos hospitais com capacidade para 1200 doentes, em estabelecimentos de ensino e antigos conventos. Médicos, enfermeiros e farmacêuticos não foram poupados e, num quadro de grande escassez, dificuldades de abastecimento de bens de primeira necessidade e instabilidade de preços, a que o esforço de guerra não era, de forma alguma, alheio – faltaram até caixões para tantos enterramentos,  mas, sobretudo, escassearam medicamentos e comida.


francisco e jacinta.JPGMorreu muito povo “sem rosto ou nome”, mas também pereceram artistas com carreiras promissoras, como o pintor Amadeo de Souza-Cardoso ou o pianista António Fragoso, e os pastorinhos Jacinta e Francisco, arrancados do anonimato por terem testemunhado, pouco tempo antes, as aparições na Cova da Iria.


Mas isso é outra história...

 

 


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Já aqui falei de outras epidemias, como a peste bubónica no Porto.

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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
Relatório e contas da Comissão de Socorros em Alcácer do Sal durante a epidemia bronco-pneumónica, outubro-novembro 1918, Coimbra -Imprensa Académica – 1919 – PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/10/01/002

Responder à epidemia: estado e sociedade civil no combate à gripe pneumónica (1918-1919), de Paulo Silveira e Sousa; Paula Castro; Maria Luísa Lima; José Manuel Sobral; Imprensa da Universidade de Coimbra. Disponível em http://hdl.handle.net/10316.2/41576


https://www.dn.pt/portugal/interior/a-epidemia-que-veio-de-espanha-e-matou-mais-de-60-mil-portugueses-9195035.html, texto de João Céu e Silva.


Imagens
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0018

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0041

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0013

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0038

 

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:CampFunstonKS-InfluenzaHospital.jpg

https://pt.aleteia.org/2018/06/28/dom-antonio-marto-o-novo-cardeal-de-fatima-e-parente-dos-pastorinhos/

O palácio onde aconteceu a história de Portugal

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Ao longo de mais de 500 anos, os jardins, as paredes e o largo fronteiro a este edifício assistiram a todo o tipo de acontecimentos que, para o bem e para o mal, marcaram a história do País.

 

palacio almada 8.jpgConspirações, tumultos, ocupações, greves, manifestações, rendições, tiroteios, cerimónias oficiais…Dificilmente um outro edifício assistiu a mais movimento e animação durante tantos séculos. Não admira também que, ao longo dos tempos, vários tenham sido os nomes pelos quais foi conhecido: palácio Almada; do Rossio, de São domingos; da Independência ou da Restauração, epíteto este último com que foi batizado para as grandes comemorações de 1940, mas que não pegou. Pretendia-se que aquele espaço fosse símbolo dos festejos, mas, curiosamente, nem pertencia ao Estado, pelo que, uns anos antes, foi lançada uma subscrição pública – hoje chamar-se-ia, muito modernamente, crowdfunding – para adquirir este verdadeiro catálogo do passado do nosso País.


palacio almada 12.jpgA Sociedade Histórica da Independência de Portugal, que ali tem a sua casa desde 1861, tentou por diversas formas angariar dinheiro para a aquisição, conseguindo uma verba considerável com a receita de venda de selos e com a tal subscrição lançada a nível nacional, nomeadamente junto das autarquias locais.

 

No final, o imóvel seria comprado pela comunidade portuguesa no Brasil, que o doou à “inquilina” de longa data, e os valores angariados foram aproveitados para restaurar o imóvel.

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Como seria de esperar num edifício tão disputado e em pé há mais de 500 anos, pouco resta do original, para além de quatro portas e duas monumentais chaminés, semelhantes às do Palácio da Vila, em Sintra - com a pequena grande diferença destas (na imagem) serem sobretudo decorativas, pois ficam sobre duas acanhadas divisões e não sobre enormes cozinhas.

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Muitas foram as transformações e, já no século XX, precisamente no âmbito das comemorações dos centenários da independência de Portugal (1140 – 1640), foram-lhe acrescentadas as arcadas viradas para a rua de Santo Antão, desenhadas pelo conhecido arquiteto Raul Lino.


O palácio, que é “Almada” por ter sido mandado construir por D. Fernando de Almada, lá por meados do século XV (1467). É da “Independência” porque, reza a história, foi ali que, com o apoio do então senhor da casa, D. Antão de Almada, se reuniram diversas vezes os conjurados que estiveram na base do golpe de Estado que retirou o poder aos “Filipes”, devolveu a autonomia a Portugal e o trono a um rei português, D. João IV - precisamente em 1640.

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Obviamente, é do Rossio e de São Domingos, porque se localiza entre estes dois centrais e movimentados largos da cidade, paredes meias com o local onde se alojaram reis e se instalou a Inquisição.


Mas os acontecimentos não se ficaram por aí, quer no exterior –palco de numerosas movimentações populares e militares - quer no interior do palácio.


Como é bom de ver, sobreviveu ao terramoto de 1755 e, por isso, serviu de hospital nesse período negro para Lisboa e foi ocupado noutro período tenebroso, que foi o das lutas liberais que arrastaram Portugal para uma guerra civil fratricida.

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Acolheu o supremo tribunal do reino – Casa da Suplicação – os depósitos públicos da corte e de Lisboa; o senado e o arquivo municipal, tendo servido igualmente de morada a Almeida Garrett.


Por aquelas salas passaram até estabelecimentos comerciais, como uma peixaria ou uma empresa de transportes, e múltiplos organismos, casos do centro promotor dos melhoramentos das classes laboriosas; o Museu Agrícola e Florestal de Lisboa; o Liceu Francês; uma divisão militar que se rendeu no 5 de outubro de 1910 e a Mocidade Portuguesa.

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Nova invasão deu-se no pós 25 de abril, que ali impôs a sede da Associação dos Deficientes das Forças Armadas. Ainda hoje, a Sociedade Histórica da Independência de Portugal partilha o espaço com um restaurante e com uma mão cheia de entidades, relacionadas, de alguma forma, com a história e a expansão da cultura portuguesa.

 

 

À margem

220px-Frontispiece_-_Histoire_des_Revolutions_de_POs jardins por onde os conjurados entravam para as traseiras do palácio, descendo a muralha fernandina à qual está adossado e reunindo num pequeno compartimento, foram embelezados com painéis de azulejos que relembram os acontecimentos desses dias decisivos. O problema é que a obra foi encomendada cerca de um século após a restauração e o artesão que a executou não era versado em história. As imagens têm, por isso, algumas curiosas incongruências, como as empoadas cabeleiras, roupas delicadas dos conspiradores e as cadeiras ornamentadas onde se sentam, muito ao gosto do século XVIII, mas não usadas em 1640. Também retratado está o ataque ao Paço da Ribeira, durante o qual ficou célebre a morte de Miguel de Vasconcelos. Este português, secretário de Estado da Duquesa de Mântua, que governava o nosso território em nome dos reis espanhóis, foi atirado de uma das janelas para a rua, onde a populaça o despedaçou e deixou à mercê dos cães vadios, para que se percebesse o tremendo ódio que por ele nutria. O episódio é muitas vezes erradamente referido como tendo ocorrido no Palácio da Independência. Por uma vez, a ação teve lugar noutras paragens.
Mas isso é outra história...
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Fontes

A restauração de 1640, de Crescêncio Ferreira, História de Portugal Moderno 2002-2003, disponível em
https://www.academia.edu/4223101/A_Restauração_de_1640

https://pt.wikipedia.org/wiki/Pal%C3%A1cio_da_Independ%C3%AAncia

http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/70366
O Brasil colonial e a Exposição do Mundo Português de 1940, de Rosana Andrade Dias do Nascimento; Universiade Fedeal da bahia – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Salvador da Bahía, 2008. Disponível em https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/11231
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Portugal Colonial – Revista de propaganda e expansão colonial
nº55, 56, 64
A Regeneração – Semanário defensor dos interesses dos concelhos do norte do Distrito de Leiria, n~385, ano XI – 30 nov. 1935
O comércio da Ajuda – Quinzenário anunciador, literário noticioso e defensor dos interesses da Freguesia da Ajuda, nº 108, ano V – 7 dez. 1935
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal - Fundo JFS – Junta de Freguesia de Santiago - Correspondência

Visita guiada ao Palácio da Independência

Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SAG/000012
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SAG/000013
José Artur Leitão Barcia -
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000182
Domingos Alvâo -
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ALV/000027
Joshua Benoliel -
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002701
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001613

Vasques -
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/VAQ/000282

PT/AMLSB/EFC/000057

Eduardo Portugal -
PT/AMLSB/POR/019113

António Novais -
PT/AMLSB/ANV/000832

Instantâneos (31):Canário, o burro sábio

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Na década de 40 do século XX, um verdadeiro fenómeno andou em digressão pelo Brasil e por Portugal, com um sucesso retumbante. Aparentemente era um asno normal, igual a tantos outros, como os mostrados nestas imagens, mas o burro Canário, garantia-se, acertava em todas as perguntas que lhe eram colocadas e causava o espanto geral.
Milhares assistiram aos espetáculos e desafiaram o animal com questões complexas, em português e até latim, às quais o Canário respondia com exatidão, batendo com a pata no local certo e o número de vezes necessário . Bem, pelo menos é o que relatam os jornais da época – até os respeitáveis -, que dão destaque a tal assombro.

 

0002_M.jpgO deslumbramento foi tal que não faltou também quem prometesse desmascarar o que assegurava ser um embuste, tendo o assunto chegado à justiça, o que fez correr ainda mais tinta, nomeadamente gozando com o denunciante – por sinal um escritor brasileiro - que perdeu a ação contra o burro Canário. Parece que, após minuciosa análise, o burro provou ser mesmo sábio!!!

 

Posto isto, organizaram-se até eventos em honra do animal, com a presença de outros escribas, detratores do colega de profissão.


Desconheço como era engendrada a forma de colocar o animal a responder corretamente, mas sabe-se que houve pelo menos um palpite que errou. Quando, em 1942, lhe perguntaram em que data acabaria a II Grande Guerra, Canário, talvez espelhando a ansiedade de todos em ver o conflito terminado, foi otimista e falhou, apontando 1943. Ninguém podia prever, nem mesmo tão brilhante jumento, que o mundo ainda iria viver tal terror durante mais três anos.

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Fontes
Revista Dom Casmurro
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=095605&pagfis=1812&url=http://memoria.bn.br/docreader#
Jornal Diário da Noite
http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=221961_02&pagfis=12626&url=http://memoria.bn.br/docreader#
Diário de Pernambuco
http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/cadernos/emfoco/2017/02/02/interna_emfoco,162628/diario-na-historia.shtml
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/
PT/AMLSB/CRU/000090
LSM0000890