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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (39): pelotiqueiros, entre o cientista e o ilusionista

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Misto de prestidigitador e de cientista; de ilusionista e de médico; de mago e charlatão; vendedor de sonhos e facilitador de soluções. Assim eram os pelotiqueiros, que montavam as suas bancas em zonas estratégicas da cidade de Lisboa, por vezes mais do que um disputando a mesma praça. A “atuação” começava sempre da mesma forma: o retinir de uma campainha despertava o interesse dos passantes, que se reuniam em torno de quem assim se anunciava. Depois, a rua transformava-se em palco e tudo podia acontecer.

pelotiqueiros2-3.jpgO homem – eram maioritariamente homens, estes “profetas” do início do século XX, mas também havia mulheres (na imagem) – começava invariavelmente a sua exibição com um número de “magia”, que deixava a assistência presa aos seus movimentos: jogos com cartas, desaparição, malabarismo e “levitação” de objetos ou qualquer outro truque que a imaginação fosse capaz de conceber.


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Se, na etapa anterior, o êxito dependia da agilidade de mãos, na seguinte, tudo se jogava nos dons de oratória.

Fisgada a atenção da potencial clientela – mas também de muitos mirones de palmo e meio - o senhor dava a conhecer a sua faceta de “vendedor da banha da cobra”.

Ele garantia-se detentor de conhecimentos preciosos sobre a saúde humana e as doenças que podem atacar o cidadão comum, vendendo a cura para essas maleitas e, em alguns casos, propondo-se a extirpá-las pela raiz, logo ali, como se faz a um dente cariado. Sim, também havia entre estes “clínicos” ambulantes os versados em arrancar dentes, verrugas, calos…

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As suas pequenas "secretárias" desmontáveis, autênticos consultórios portáteis, tinham frascos e frasquinhos, caixas, saquetas, cadinhos e medidores, servindo de apoio ao púlpito imaginário de onde estes verdadeiros conhecedores dos males da humanidade botavam discurso sobre os seus dotes para curar os incómodos alheios.

Habitualmente, tão doutas pessoas tinham adquirido esse saber em locais longínquos, de onde também vieram os estranhos mas infalíveis produtos que cediam mediante pagamento.


O objetivo era impingir essa pomada que trata desde reumatismo a problemas de pele; esse elixir que até ressuscitaria os mortos - se estes pudessem ressuscitar - o xarope que tanto sana os desaires do estômago, como os do coração; ou o pozinhos de perlimpimpim que servem tanto para as dores, como para lavar o dentes.

E, quem não acredita nestes verdadeiros portentos, é porque é ignorante e ainda não viu “a luz”.


Findas as transações, os pelotiqueiros levantam o aparato e vão procurar fregueses para outro lado, de preferência sem concorrência de obreiros do mesmo “ofício”.

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
Illustração Portugueza
Nº224; 6 junho 1910
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

Imagens
Arquivo Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/
Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000133
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002568
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000132
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000788
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001135

 

 

 

 

 

 

Renascido das cinzas há meio século

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A reconstrução do edifício, que um incêndio tinha destruído quatro anos antes, custou três vezes mais do que o previsto e consumiu boa parte dos parcos recursos do município alentejano, que só acabou de pagar a conta já em 1982. A memória nunca se recuperará.

 

24 de junho de 1969. Há meio século, Alcácer do Sal inaugurava uns Paços do Concelho totalmente novos, mantendo-se no geral a traça do antigo edifício, erguido no final do século XIX e destruído na quase totalidade por um incêndio, na primavera de 1965. Perdera-se muito da memória daquela terra alentejana – já que o arquivo desapareceu para sempre – mas ganhara-se um espaço moderno e adaptado às novas exigências do serviço público.


Exteriormente, as únicas diferenças aparentes eram a nova escadaria e a claraboia (ver imagem 2), mas, no interior , o imóvel nada tinha que ver com aquele que ardera.

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Os festejos prolongaram-se por vários dias. O presidente da República, Américo Thomaz, esteve presente na cerimónia inaugural, onde seria condecorado com a primeira medalha de ouro outorgada pelo Conselho Municipal e nomeado cidadão honorário de Alcácer do Sal. Retribuiu, entregando ao então presidente da Câmara, Carlos Xavier do Amaral, as insígnias da Ordem de Benemerência.

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Convidados foram mais de 550.

Empresas e escolas foram instadas a encerrar, para que o povo pudesse receber quem vinha de fora para a festa.

Houve espetáculos musicais, lautos repastos, corrida de touros e uma grande azáfama para que tudo corresse como planeado: Laura d’ Assunção Fernandes Carraça de Castro e Maria Emanuel Núncio Cecílio foram as senhoras da mais fina sociedade alcacerense encarregues do protocolo, da iluminação e decoração de ruas e edifícios.

A praça Pedro Nunes – ainda sem a estátua do grande matemático – foi também remodelada, depois de quatro anos em que funcionou como estaleiro. (na imagem 5 ainda por concluir)


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Mas, nem tudo foram rosas neste processo. Alcácer era, ainda é, um município com parcos recursos.

Existem dezenas de cartas do então presidente da edilidade praticamente esmolando apoios governamentais para a obra, que custou três vezes mais que o previsto, foi morosa e desgastante, gerando muito falatório, pelo suposto luxo dos acabamentos.

As últimas contas saldaram-se só em 1971 e o empréstimo contraído arrastou-se até 1982.

Figura1.JPGO projeto, da autoria de Nereus Fernandes, foi executado pela empresa Socel-Sociedade de Construções Cetóbriga Lda.

O arquiteto foi ao requinte de desenhar os pormenores para aos delicados trabalhos de marcenaria, lustres, lanternas, ferragens das portas e, claro, a atual imponente escada interior e respetiva balaustrada (imagem 6).

 

 

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Coube à firma Teixeira Duarte o estudo geotécnico ao terreno e fundações – tarefa especialmente complexa devido à proximidade do rio - bem como o projeto da nova estrutura, à base de betão armado e elementos pré-esforçados. As velhas paredes em tabique também tinham desaparecido para sempre.


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A Seldex, equipou os espaços de serviço com mobiliário metálico, entretanto substituído, e a empresa Soares e Barbosa Lda. (Braga), forneceu gabinetes e salão nobre com móveis que ainda ali estão, copiando o estilo do mobiliário antigo que existia antes do fogo.

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Os quadros do salão nobre, também inspirados em obras pré-existentes – imagens alegóricas da história de Alcácer, referidamente da sua tomada aos mouros – foram pintados por João Reis, a preço de saldo.

Os custos foram, aliás, uma preocupação sempre presente: a pintura, foi escolhida em detrimento dos azulejos inicialmente previstos porque era menos dispendiosa e regateou-se o valor com o artista.

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A documentação, no entanto, mostra que se tentou apetrechar o edifício com o que de melhor existia na época – tapetes, cortinados, pinturas, azulejos, papel de parede adamascado - comparável às câmaras de Lisboa ou Porto, dizia-se.

Curiosa é a existência de uma carta de um especialista em segurança expressando a sua incredulidade por, ao visitar a obra, não ter visto qualquer rede de prevenção contra incêndios. Prioridades...

À margem
Foi a meio da tarde do dia 21 de abril de 1965, todos os serviços estavam a funcionar e abertos ao público.

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Em apenas uma hora, o edifício dos a Paços do Concelho de Alcácer do Sal ficou reduzido a escombros e toda a documentação histórica existente no sótão, onde um curto-circuito terá estado na origem do sinistro, transformou-se em cinzas, criando um vazio difícil de imaginar. A reconstrução começou a ser planeada logo no mesmo dia, bem como a forma de por a funcionar, em outros espaços, todas as valências que antes ocupavam o edifício destruído. Durante este complexo período, à frente dos destinos da autarquia esteve Carlos Alberto Cartaxana Xavier do Amaral*, muito homenageado na época pelo papel desempenhado enquanto presidente de Câmara. Saiu de funções “pelo seu próprio pé” ainda antes de 1974, dedicando-se à sua profissão de sempre, na medicina.

O povo estimava-o, mas não se coibia de, rimando mas com uma ponta de maldade, dizer que as consultas e tratamentos Dr Amaral “não faziam bem, nem faziam mal”.
Mas isso é outra história...

*Já aqui antes falei da curiosa história do líder republicano avô deste presidente de câmara: António Paulo Cartaxana.

Fontes
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/12/05A/01/006
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/10/04/91/001
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0164
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0166
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0167
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0264
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0265
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/074
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0161

A contrabandista dos mares do sul

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Numa atividade lucrativa, mas muito arriscada e dominada por homens, Joana conseguiu impor-se. Saiu-se tão bem que chegaram a duvidar que fosse mulher. Pina Manique desconfiava que fosse espia a mando dos franceses.

 

Extraordinário tino para o negócio, inteligência acima da média e um charme irresistível. Estas são características apontadas a um dos protagonistas do lucrativo contrabando que enxameava o Atlântico Sul em finais do século XVIII e tantas dores de cabeça provocava às autoridades portuguesas. “Pequeno” pormenor: a personagem de quem se fala é mulher, numa atividade dura, cheia de perigos, à qual se dedicavam homens de barba rija e…Joana d’Entremeuse.

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Sozinha ou associada a outros contrabandistas como os portugueses Eleutério Tavares e António Barbosa Lobo, esta francesa conseguiu durante muito tempo enganar tudo e todos. E fé-lo tão bem que chegaram a duvidar que fosse mulher.


Era alguém que, nas palavras de D. José de Castro, vice-rei do Brasil, “pela sua nação, pela sua viveza, pelo seu carácter insinuante e pelos seus projetos e indústrias, se faz merecedora de ser olhada com circunspeção”.

O alerta surgiu num momento em que a curiosa senhora se deslocava a Lisboa, depois de uma sequência de episódios com o navio Boa Viagem, acusado de vender ilegalmente mercadoria diversa na costa brasileira, em 1799.

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O esquema era sobejamente conhecido, mas continuava a dar frutos. Portugal proibira o comércio com embarcações estrangeiras nos seus territórios sul-americanos. Queria preservar a exclusividade e, ao mesmo tempo, impedir que se conhecessem as suas riquezas e defesas.

Não podia, no entanto, recusar guarida a navios em dificuldades.

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Fazendo uso desta ressalva, os contrabandistas pediam para arribar, alegando transportarem doentes ou precisarem de ir a estaleiro. Aproveitavam a ocasião para vender o que transportavam ilegalmente e sem pagar impostos, carregando com produtos locais que venderiam noutras paragens.


Joana d’Entremeuse surge envolvida em várias movimentações deste género, mas era suficientemente esperta para escapar às malhas da justiça, escondendo ou falseando os livros de carga; pedindo para navegar com pavilhão espanhol ou português, de acordo com as conveniências do momento; alegando que o barco não era seu, que a carga pereceria se não fosse vendida ou ainda que a rota tomada se devia às más condições da embarcação.

Com essas artimanhas, conseguia os favores de gente importante, chegando a ter cartas de recomendação por parte de altos negociantes do Rio de Janeiro e acesso aos armazéns da alfândega para guardar os seus bens.

A francesa, na altura com 32 anos, possuía grande corte de admiradores entre as pessoas mais qualificadas da cidade, por “ser instruída e lidar como ninguém com os negócios”. Foi assim que conseguiu igualmente ver satisfeitas algumas pretensões para comerciar, bem como um empréstimo e benefícios diplomáticos.


Foi só quando decidiu passar por Lisboa que tudo se complicou.

Para começar, o vice-rei do Brasil enviou uma carta a alertar D. Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, para o comportamento de Joana que, basicamente, lhe cheirava a esturro.


Para averiguar isso mesmo, foi mandada prender assim que pôs o pé na capital do Império, corria setembro de 1799 e era o intendente Pina Manique quem impunha a ordem por estas bandas.


Os sucessos de Joana tinham tal fama que a primeira investigação que se levou a cabo foi à sua identidade sexual. Duas mulheres e dois cirurgiões atestaram que, efetivamente, era uma fêmea e não um macho disfarçado, para espanto dos homens, iludidos que tamanha habilidade estava apenas reservada aos da sua condição.


Percebe-se a precaução das autoridades. É que Joana, era também suspeita de ser uma perigosa espia republicana. Não nos podemos esquecer que a Revolução Francesa tinha feito rolar a cabeça de reis e nobres e, por isso, a propagação de tais ideais aterrorizava as outras nações europeias (ver À Margem).


Ainda assim, mercê do desaparecimento dos documentos que a incriminavam e do empenho do embaixador francês, a investigação sobre Joana d’Entremeuse acabaria por não ir adiante.

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Posta em liberdade, perde-se-lhe o rasto. Fica por saber se regressou a França*, se rumou às ilhas Maurícias, onde antes se havia estabelecido como “comerciante”, ou se, quem sabe, retornou à sua antiga atividade de forma tão refinada que nunca mais foi apanhada.

A margem


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As autoridades portuguesas tinham muitas razões para suspeitar de estrangeiros. A história recente tinha provado que o conhecimento sobre as defesas do território podia ser nefasto para os interesses nacionais. Em 1711, o Rio de Janeiro foi invadido, saqueado e sequestrado pelo famoso corsário francês René Duguay-Trouin, tendo por base um extenso relatório sobre as capitanias do sul do Brasil, elaborado por outro indivíduo da mesma nacionalidade – Ambrozio Jauffet, que ali viveu durante trinta anos.


O terror pelo ataque perdurou todo o século XVIII e agravou-se com a Revolução Francesa, que fez os oriundos daquela nação serem vistos como potenciais espiões e mensageiros de ideais que apavoravam as casas reais da Europa. As desconfianças sobre Joana tinham razão de ser, tanto mais que, na sua posse, se encontraram manuscritos de obras de Rosseau e Alexander Pope, entre outros autores vistos como “abomináveis” para as monarquias.


Por coincidência ou não, no mesmo navio em que Joana d'Entremeusse chegou ao Rio de Janeiro antes das peripécias relatadas, viajava José Pedro de Azevedo Sousa da Câmara, “o mais importante tradutor de escritos de Voltaire” para a nossa língua. A coberto do desempenho das suas funções de desembargador na Baía, conseguiu durante anos ludibriar a censura portuguesa, publicando clandestinamente diversas obras do filósofo francês.


Mas isso é outra história...
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* Joana ou Jeanne d'Entremeuse era viúva. Teve pelo menos duas filhas, uma das quais viveria com o avô em França. Instalou-se nas ilhas Maurícias em 1792 e terá sido a partir dessa localização que iniciou a sua vida de contrabandista.

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Fontes

Ministério da Educação e Saúde, Documentos históricos, Consultas do Conselho Ultramarino; Rio de Janeiro – Bahía 1758-1803- Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), Divisão de Obras Raras e Publicações – 1952; Gráfica Tupy Lda Editora. Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/094536/per094536_1952_00095.pdf

O Arquivo nacional e a história luso-brasileira – Joana d'Entremeuse. Disponível em: http://historiacolonial.an.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4072:joana-dentremeuse&catid=202&Itemid=215

O Arquivo nacional e a história luso-brasileira - Temor, cumplicidade e sedução: relações entre franceses e portugueses no Brasil colonial, por Maria Fernanda Bicalho, profª adjunta do Departamento de História – UFF, disponível em http://historialuso.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5259&Itemid=393

O tradutor dos abomináveis princípios: José Pedro de Azevedo Sousa da Câmara, in História (São Paulo), de Pablo Iglesias Magalhães, Universidade Federal do Oeste da Bahía; 2016. Disponível em : http://www.scielo.br/pdf/his/v35/0101-9074-his-35-00101.pdf

Women in Port: Gendering Communities, Economies, and Social Networks in Atlantic Port Cities, 1500-1800, Douglas Catterall e Jodi Campbell; Brill; Leiden-Boston; 2012. Disponível em:
https://books.google.pt/books?id=gfsyAQAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

“Can she be a woman?” Gender and contraband on the revolutionary Atlantic, de Ernst Pijning, disponível em https://brill.com/previewpdf/book/edcoll/9789004233195/B9789004233195_011.xml

Imagens (meramente indicativas do tema)
allposters.com.br
On a Sailing Ship de Caspar David Friedrich. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f9/On_a_Sailing_Ship_by_Caspar_David_Friedrich.jpg

Gravura de W.Alexander - Vista do Rio de Janeiro, final do século XVIII. Disponível em: Arca com histórias

Pinterest

Frau vor untergehender Sonne de Caspar David Friedrich. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7e/Caspar_David_Friedrich_-_Frau_vor_untergehender_Sonne.jpg

Domena publicznazobacz zasady
Duguay-Trouin, Rio de Janeiro Navy Battle 1711. Disponível em:
https://pl.wikipedia.org/wiki/Bitwa_o_Rio_de_Janeiro_(1711)#/media/File:Duguay-Trouin_Rio_de_Janeiro_Navy_Battle_1711.jpg

 

Pela imprensa (12): concretamente, brilhantina!

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brilhantina.GIFSe há produto que remete para o passado, é a brilhantina.

 

É daqueles que, há muito, já nos desabituámos de ver nas prateleiras, substituído que foi por versões mais modernas, do gel à espuma de pentear.

 


Se for então uma brilhantina denominada “Concreta”, magnífica criação da Perfumaria da Moda, aliás, a única do género fabricada em Portugal….então, dificilmente se encontra algo que “cheire” tanto a passado, a tempos que já não voltam.
Não se pode dizer que o nome seja muito feliz. Concreta remete para consistente, espesso, condensado*, embora, ao mesmo tempo, o anúncio, de 1920, prometa algo que “amacia” o cabelo, o que nos parece contraditório, mas nos leva a crer que os penteados modelados com a Concreta deveriam ser à prova de ventos ciclónicos e chuvadas diluvianas.


Tudo isto e ainda um “perfume delicioso”. Irresistível!
E só 1$20. Um verdadeiro achado!

 

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Assegura igualmente que esta substância transmite um “brilho magnífico” à cabeleira, mas não nos podemos esquecer que a questão da gordura, ou do aspeto gorduroso, era precisamente um dos inconvenientes da brilhantina que a fez perder espaço para outros produtos mais recentes. Esta imagem do ator Augusto Rosa mostra bem como era fácil passar do ar arrumadinho para o aspeto ensebado


A brilhantina, cuja composição variaria consoante o produtor, era basicamente constituída por parafina líquida, vaselina, essência e óleo mineral, que os fabricantes da Concreta resumem a “verdadeiro petróleo cristalizado”.

 

 


perfumaria da moda.GIFFoi usada em larga escala até aos anos 70, tendo até inspirado uma produção cinematográfica: o conhecido filme Grease (inglês para brilhantina), com John Travolta e Olivia Newton John.


Quanto à Perfumaria da Moda – uma das mais luxuosas de Lisboa - desapareceu para sempre com o grande incêndio do Chiado, em agosto de 1988, que pôs fim a uma história com 80 anos. O edifício, na rua do Carmo, foi reconstruído, mas reaberto com outro ramo. Curiosamente, também esteve ligada à 7ª arte, já que foi "palco" de algumas cenas do filme Pai Tirano. Era onde trabalhava a inesquecível Tatão.

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

Ilustração Portugueza
II série, nº727 – 26 jan. 1920

*https://dicionario.priberam.org/concreto

https://pt.wikipedia.org/wiki/Brilhantina

https://restosdecoleccao.blogspot.com/2011/04/perfumaria-da-moda.html

 

Instantâneos (38): o casamento mais concorrido do ano

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Se as revistas "cor-de-rosa" tivessem que fazer um balanço do ano de 1907, provavelmente o acontecimento "do social" mais marcante seria o casamento do Conde Constantin Dyem com a menina Clara de Montalvo*. Mesmo antes, já a comunicação social vaticinava algo "sensacional", tanto pela "distinção dos noivos", como pelo brilhantismo com que se estava organizando a cerimónia. Claro que, num ano em que se fundou a Academia de Ciências de Lisboa e o governo de João Franco foi surpreendido por uma greve universitária que começou em Coimbra mas teve repercussões no resto do País, é discutível a importância do enlace, mas este foi certamente o evento mais cosmopolita a que Lisboa assistiu em muito tempo, não fizesse o noivo parte do corpo diplomático e não fosse a noiva resultado da mistura de famílias estrangeiras.

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Toda a festa deve ter sido uma enorme babel, tal a confusão de idiomas, a julgar pelas diferentes nacionalidades dos participantes, a começar pelos nubentes, ele austríaco e ela hispânica. Ele "distinto e ilustrado”, filho “de uma das mais importantes famílias” da sua nação, era chambelan – moço de câmara - de sua Majestade Imperial e Real Apostólica e secretário da legação austríaca na corte portuguesa. Ela, de ascendência cubana mas nascida em França, primava pela formosura, "superior educação", "primorosos dotes de coração" e "grande nome de família", pois o pai era conde de Macurijes, descendente de um dos mais ilustres gentis homens da Rainha Isabel II de Espanha.

O clérigo que formalizou o ato, era, nada mais, nada menos, que o Núncio Apostólico.

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Aliás, pelo que se percebe, os "pergaminhos" impecáveis de noivos e convidados davam, em si, para encher várias páginas, com "comboios" de títulos de que cada um e as suas respetivas famílias eram portadores. O mesmo para os requintados e luxuosos objetos oferecidos pelos convidados e pelos nubentes entre si, descritos aos pormenor nos jornais.

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E que dizer do lunch servido pelo Rendez-vous des Gourmets** nas instalações da legação da Áustria? Um longo e sofisticado cardápio em francês – claro! -, para um total de 140 talheres. Deve ter sido simplesmente délicieux !

A imprensa deu igualmente destaque ao que hoje os entendidos destas coisas chamariam de looks dos ministros*** e de todas as "damas e cavalheiros da mais elegante posição social", esmiuçando as indumentárias, desde os vistosos uniformes dos senhores embaixadores e afins; às “toilettes lindíssimas" das senhoras. Abundavam cetins, veludos, crepes de Chine, sedas, bordados, guipure e rendas.


Mas, obviamente, só alguém com muito pedrigree como a duquesa de Palmela poderia usar "rendas antigas" de Chantilly e um simples mas precioso colar de pérolas.
Efetivamente, para quê complicar?

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*Os nomes completos dos noivos eram:
Clara de Montalvo y Soler e Constantin Stanislaus Wilhelm Maria Wenzel Deym, Conde de Stritez

** Rendez-vous des Gourmets situava-se na rua do Ouro, 135-137, em Lisboa.
*** ministros era como então se designavam os embaixadores estrangeiros junto de uma corte estrangeira.

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Fontes
Hemeroteca Municipal de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

Illustração Portugueza
II série, nº64 - 13 maio 1907

Biblioteca Nacional Digital
www.purl.pt
Diário Illustrado
37ºano, nº 12:220 - 5 maio 1907
37ºano, nº 12:221 - 7 maio 1907

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001597

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001112

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001113

Tentaram matar o jornalista incómodo

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Um dos mais antigos jornais do País poderia não ter durado mais que um mês. Pouco habituados a serem confrontados com os seus erros, os políticos tentaram cortar o mal pela raiz, matando o fundador e fechando a gráfica.

 

1855 foi um ano decisivo para João Carlos d’Almeida Carvalho. Aos 38 anos, tornou-se advogado encartado, fundou uma associação mutualista e liderou a criação do primeiro jornal da sua terra – um dos mais antigos do País. No mesmo ano, uma vingança por pouco não lhe tirou a vida. Os seus escritos começaram a incomodar o poder instalado e o jornalista tornou-se um alvo a abater.

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Passava cerca de meia hora das 9 da noite do dia 31 de agosto, quando o redator e diretor d’O Setubalense foi atacado por dois homens, um dos quais lhe desferiu uma facada no abdómen. Sentiu a lâmina entrar pouco acima do umbigo e gritou, mais de espanto que de dor.

Os sujeitos desapareceram a correr na noite e logo um grande número de pessoas acudiu, pois tudo aconteceu naquela que era, já em meados do século XIX, uma das mais movimentadas artérias de Setúbal, a rua da praia, atual avenida Luísa Todi. Cabos de polícia ou outra autoridade, habitualmente abundantes naquela zona, muito próxima do antigo edifício da Alfândega, não foram vistos no local.


Os dias seguintes foram de incerteza e indignação. Almeida Carvalho lutava pela vida. Jornais e jornalistas de todo o País clamavam por justiça contra o que logo foi visto como um crime contra a liberdade de imprensa, não havendo pejo em apontar o dedo a quem, na época, desempenhava as funções de administrador do município e de presidente de Câmara em Setúbal.

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Severiano Silvestre Lapa, o administrador, foi visitar o jornalista ferido, mas tal não apaziguou os ânimos. Muitos lembravam-se de o ter ouvido bramar contra os artigos publicados no novo jornal, dizendo: “Ou O Setubalense ou eu!”, ameaçando que o semanário e a sua tipografia seriam encerrados.


Já depois do crime, o ambiente intimidatório continuou.


Misteriosos pasquins impressos em “cartas de enterro”, nos quais se pedia um Padre-Nosso e uma Ave Maria pela alma do diretor esfaqueado, foram afixados por Setúbal; cabos de polícia – dependentes do poder local – apregoaram publicamente ameaças contra o jornal e nas páginas deste deu-se amplo eco de tudo isto: “os bicos das nossas penas não se cortam com a ponta do punhal!”, afirmou-se num clamor repetido em páginas e páginas dos mais importantes periódicos do país, de Norte a Sul.

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Agostinho Rodrigues Albino, o presidente da Câmara de Setúbal, era um dos principais alvos, até porque Almeida Carvalho teria afirmado que o homem que o feriu se assemelhava a um familiar do autarca, mas também tendo em conta que a sua gestão tinha sido especialmente visada nos textos do redator que, embora nunca ultrapassando os “limites da decência” e usando sempre de “honestidade e prudência”, denunciara “compadrio na gerência dos negócios públicos”, assegurando que nunca como então os “comedores puderam prevaricar tão desassombrados”.


A imprensa defendia Almeida Carvalho, que até pugnava pelo mesmo partido que estava no Governo e na Câmara – o Regenerador – e aproveitava para atirar pedras ao ministro Rodrigo da Fonseca Magalhães, por alegadamente não intervir nem envidar esforços para apurar quem era responsável pelo ataque ao jornalista. Dizia-se que o punho do assassino estava “protegido pela autoridade administrativa”, já que a investigação para o deter não passou de uma “balofa, vã e ostensiva patuscada local”.


Efetivamente, não há memória de alguém ter sido punido pelo ato, mas até ao final de 1855, a pretexto de integrar os concelhos de Palmela e Azeitão no de Setúbal, tanto Severiano Silvestre Lapa, como Agostinho Rodrigues Albino seriam substituídos e afastados daquele município.


Quanto a João Carlos d’Almeida Carvalho, em 21 de outubro já estava restabelecido e escrevendo no “seu” O Setubalense. Para além desta atividade, foi historiador amador, o primeiro oficial-taquígrafo da secretaria da Câmara dos Pares e político, mas devemos-lhe sobretudo um amplo espólio de documentação reunida ao longo da vida, sobre Setúbal e toda a região, e que constitui um importante recurso de estudo hoje à guarda do Arquivo Distrital.

À margem
O Setubalense foi criado em 1 de julho de 1855, antes dos grandes jornais de Lisboa, como o Diário deNotícias, o Diário Ilustrado ou O Século. A sua história, intimamente ligada à da cidade de Setúbal, teve percalços e interrupções mas ainda hoje persiste. Ao longo destes últimos 164 anos, consoante o regime em vigor, quem o detinha e quem nele escrevia, foi, à vez, regenerador e conservador, oposicionista e situacionista; semanário, diário e trissemanário; matutino e vespertino. Teve vários subtítulos, foi suspenso e ocupado, recriado e vendido, mas nunca perdeu o seu espírito original, de defensor dos interesses de Setúbal e da região em que se insere. Entre proprietários, diretores e redatores principais contam-se nomes como António Rodrigues Manito, José Sérgio de Capeto Barradas e José Groot Pombo (na primeira fase); João Regala; Guilherme Faria; Luís Faria Trindade; Domingos Tavares Roque, Dinis e Carlos Bordalo Pinheiro.

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Curiosamente, já nos anos 80 do século XX, um outro João Carlos, neste caso João Carlos Pepe de Sousa Fidalgo, passa a deter o jornal, dá-lhe uma nova vida e acompanha-o, até que morre prematuramente, em 2011. Seguiram-se mais tempos difíceis e conturbados.
Mas isso é outra história...

 

 

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*quem escreve estas linhas trabalhou cerca de 15 anos no jornal O Setubalense, onde aprendeu muito do que sabe sobre jornalismo e pesquisa, mas também sobre a vida.………….
Fontes
Arquivo Distrital de Setúbal
https://digitarq.adstb.arquivos.pt/
Arquivo Pessoal de Almeida Carvalho
PT/ADSTB/PSS/APAC
PT/ADSTB/PSS/APAC/L/0045/m0003 a 0110

http://www.osetubalense.pt/historia/


https://www.jn.pt/arquivo/2005/interior/o-setubalense-faz-hoje-150-anos-de-vida--501734.html
Texto de Paulo Morais (também ele jornalista de O Setubalense e prematuramente desaparecido)

https://www.diariodaregiao.pt/2019/03/08/almeida-carvalho-e-o-jornal-o-setubalense/

Atas do encontro de homenagem a Almeida carvalho, in Musa 5 – Museus Arqueologia & outros patrimónios, coordenação de Joaquina Soares, texto de Albérico Afonso Costa e Carlos Mouro; Associação de Municípios da Região de Setúbal – 2018. Disponível em:
maeds.amrs.pt/informacao/MUSA/.../13%20Alberico%20e%20CMouro_Atentado.pdf

https://mfm-a-roda.blogspot.com/2011/06/joao-carlos-p-de-sousa-fidalgo.html

 

Instantâneos (37): de que ri Salazar?

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Salazar não era das pessoas mais sorridentes que a história de Portugal conheceu. Contudo, nesta imagem surge de sorriso aberto, quase jovial, ao lado das restantes individualidades que, no dia 29 de maio de 1949, enfrentaram o calor alentejano para inaugurar uma das maiores obras do Estado Novo: a Barragem Pego do Altar, então batizada com o nome do Presidente do Conselho. Mais curioso ainda é que o habitualmente impassível governante se manifeste desta forma efusiva num momento solene, enquanto outro dignitário usa da palavra. Lendo o discurso de João Branco Núncio - de costas, usando da palavra - que a imprensa da época resumiu, nada nele parece suscetível de merecer uma tal expressão facial de Salazar.
O conhecido cavaleiro tauromáquico falava enquanto lavrador, que sempre foi, e em nome dos cidadãos daquela classe no concelho de Alcácer do Sal. Relatava as dificuldades enfrentadas pelos agricultores, dependentes da chuva que o céu lhes dava e de como, mais do que água, a barragem representava pão para as gentes que viviam da terra.

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Aquele foi, efetivamente um dia risonho para Salazar, recebido e aclamado por milhares de pessoas que, de toda a região, ali acorreram, homenageado no local, por textos, ações e edificações – um padrão com as suas palavras e um medalhão com o seu perfil, obra do escultor Leopoldo de Almeida.

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Há 70 anos, coube ao presidente da República, Óscar Carmona, não cortar a fita, como era habitual, mas, ao som de centenas de foguetes, carregar no botão que ativou os jorros de água, ato entendido como o início do funcionamento da barragem.

 


O precioso líquido iria facilitar, como nunca, o desenvovimento agrícola da região, irrigando todo o vale do Sado, através de uma extensa e complexa rede de canais sem a qual a brutal produção de arroz dos dias de hoje não seria possível.
A obra continua lá*. O nome de Salazar há muito foi retirado, algo que, certamente, não o faria sorrir.

 

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*A rede de rega do vale do Sado tem mais de 186 quilómetros de canais e faz a água chegar a 9.614 hectares de terra com potencial agrícola.
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Fontes
Noticias e Fotografias de Alcácer do Sal Séculos XIX e XX, disponível em
www.cm-alcacerdosal.pt/.../Noticias_e_Fotografias_de_Alcácer__Séc_XIX_e_XX.pdf, citando jornal Diário de Lisboa, nº9517, ano 19 – 29 maio 1949, 1ª e 2ª edições, disponível em http://casacomum.org
Imagens
Salazar rindo – muito agradeço a Maria Antónia Lazaro que me encontrou este instantâneo invulgar. Retirada do livro João Núncio, de Maria João da Câmara, Edições Inapa, abril de 2002, isbn: 9789727970278.

Restantes: Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal