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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Construção enguiçada demora 30 anos a concluir

correios alcacer 1.GIF

 

 

Foi Salazar, já depois de ter caído da célebre cadeira, que autorizou a conclusão da empreitada e o culminar desta história de erros, atrasos e intempéries.

avenida aviadores gago coutinho e sacadura cabral.

Muito se fala de atrasos e derrapagens nas obras públicas, mas esta tendência vem de longe e é, aparentemente, transversal a todas as épocas e geografias. Em Alcácer do Sal, por exemplo, foram precisas três décadas para que se concluísse a Estação de Correios, Telefones e Telégrafos, num processo cheio de atribulações, erros e até desastres naturais. Curiosamente, a contrato adicional para a conclusão da empreitada foi assinado pelo punho de António de Oliveira Salazar e terá sido um dos últimos atos formais por si firmados, já depois de ter caído da célebre cadeira e seis dias antes de dar entrada no hospital, de onde não mais regressaria para a presidência do Conselho.
Esta história de descontrolo de custos e muita demora começou nos anos 40 do século XX, pois já nessa época o espaço ocupado pelo serviço de correios – na “rua Direita” daquela vila alentejana* - não se adequava às necessidades e o Estado desenvolvia por aqueles anos um Plano Geral das Construções e Redes Telefónicas e Telegráficas, que pretendia dotar todo o País daquelas estruturas.
Aproveitando o ensejo, em 1944, o Município adquire um terreno na avenida dos Aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral (na imagem 2, antes da construção do edifício) . Acontece que aquele espaço não tinha capacidade para suportar as cargas verticais da construção projetada, muito provavelmente por ser terreno de aluvião.
Embora tal seja referido pelo jornal local, Voz do Sado, este é um facto estranho, pois já antes ali se tinham erigido edifícios de maior porte e até mais próximos do rio.
Facto é que se abandonou a obra, ficando esta suspensa, nada mais, nada menos, que por vinte anos!
Só em 1962 se faz nova tentativa de dotar Alcácer do Sal com uma estação de correios e telégrafos moderna, adjudicando-se a obra à firma Joaquim F. Rócio e Cª, que dispunha de dois anos para a concluir, não fosse o Sado pregar nova partida.

cheia 1969.JPG

 

Efetivamente, em fevereiro de 1963, grandes cheias deixaram toda a área submersa e provocaram estragos irreparáveis na construção já de pé, obrigando à reformulação do projeto para prevenir novas inundações.
Só foi dada luz verde ao retomar dos trabalhos em 31 de agosto de 1968. A Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais a autoriza a celebração de contrato adicional para as alterações na empreitada de construção. Assinam, Américo Thomaz; Ulisses Cortez (ministro das Finanças); José Albino Machado Vaz (ministro das Obras Públicas) e, claro, António de Oliveira Salazar.
Não se pense que isto sanou todos os males, porque novos atrasos se verificaram, resultantes da tardia instalação de energia elétrica no edifício.

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A inauguração só se concretizaria em 31 de maio de 1971, na presença de elementos da administração dos CTT, diversas entidades locais e regionais e do então presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal, Carlos Xavier do Amaral, por coincidência, filho do homem que, quase trinta anos antes, esteve ligado à aquisição do terreno, quando era administrador do mesmo concelho, António Xavier do Amaral.

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Oficialmente, a estação de correios e telégrafos de Alcácer do Sal custou 3.640 contos. Quando abriu ao público, tinha capacidade para 400 linhas telefónicas automáticas.
Ainda hoje lá está, tem uma área de 530 metros quadrados e foi a 460ª realização do Plano de Instalação e Reinstalação de Estações de Correios, traçado décadas antes pelo Estado Novo.

À Margem

cineteatro alcacer do sal.GIF

 

Não consegui confirmar a autoria do projeto do edifício dos Correios, embora existam fortes possibilidades de pertencer ao arquiteto Adelino Nunes - que na época desenhou numerosas estações por Portugal fora - ou a Amílcar Pinto, o mesmo autor do Cineteatro de Alcácer do Sal, hoje em ruínas, que se ergue do lado oposto da mesma avenida e que também trabalhou para o Estado nesta área. Amílcar Pinto, aliás, é apontado como um dos mais bem-sucedidos percursores da Arte Nova em Portugal. A sala de espetáculos foi uma iniciativa de Francisco Serra de Sousa Lynce, advogado, delegado do procurador da República junto da Comarca de Alcácer do Sal e lavrador, herdeiro de uma grande casa agrícola do concelho. A sala, que abriu portas em 1950, tinha capacidade para 710 pessoas e assistiu a numerosos e diversificados espetáculos musicais e teatrais, bem como concorridas sessões de cinema. Os últimos tempos, nos anos 90 do século XX, foram de lenta agonia, como aliás aconteceu em muitos espaços idênticos por todo o País.
Mas isso é outra história...


……


* Os correios e telégrafos funcionavam no primeiro andar de um edifício ainda hoje existente na confluência da rua das Douradas com a rua da República, junto ao largo da farmácia Alcacerense.

 


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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/EXTERNO/03/007
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/04/02/0021
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/04/02/0022
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/05/002
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/342
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/343

Biblioteca Municipal de Alcácer do sal
Jornal Voz do Sado
Ano VI, nº81 – agosto 1966
Ano XII,nº137 – junho 1971

Vencer a distância – Cinco séculos dos correios em Portugal, Museu das Comunicações – Fundação Portuguesa das Comunicações
https://dre.tretas.org/dre/264449/decreto-44527-de-21-de-agosto
https://dre.tretas.org/dre/250681/decreto-48560-de-31-de-agosto
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Agradecimentos a Baltasar Flávio da Silva

 

 

 

António escolhia as vítimas entre a fina flor da sociedade lisboeta

antonio braz monteiro.JPG

 

 


Todos os dias, António Braz Monteiro apanhava o barco das 9 horas, em Cacilhas. Ao contrário dos outros passageiros, não se deslocava em busca de trabalho em Lisboa... se bem que isso de arrombar e assaltar as casas das famílias mais colunáveis da Capital já se tinha tornado um modo de vida.

 

 

ponte de embarque em cacilhas1.jpgHá larápios que têm o condão de conseguir granjear a simpatia e até a admiração da opinião pública. Foi assim com António Braz Monteiro, antigo funileiro transformado em "ladrão fino", como ficou conhecido em finais do século XIX.

Durante anos, conseguiu trocar as voltas à polícia. Usava os jornais como cardápio para escolher as vítimas - quanto mais ricas e viajadas melhor - e conseguiu sair da vulgaridade dos rapinantes que infestavam a cidade nesse longínquo ano de 1886.

cacilheiro3.jpg

 

Não era analfabeto, algo de raro na época para alguém na sua condição: simples trabalhador de uma fábrica de conservas em Cacilhas, na Margem Sul do Tejo, onde dava nas vistas pela forma de falar e de se apresentar, mais cuidada e sofisticada do que os outros operários, mas especialmente porque gostava de ler o jornal, prazer incompreensível para os demais, mas de grande utilidade na atividade que, lentamente, começou a preencher a maior parte dos seus dias.
Progressivamente foi aparecendo cada vez menos no cais do Ginjal. Apanhava o cacilheiro e desaparecia. Curiosamente, não denotava falta de rendimentos, como seria de esperar de quem assim procedia, pelo contrário, apresentava sinais exteriores de riqueza que ninguém entendia, nem a amante que com ele partilhava o leito, na travessa do Açougue, em Almada, nem a menina sua filha, encantada com os presentes que o pai lhe oferecia.
As ausências passaram a ser diárias, dando a entender que tinha nova ocupação em Lisboa.

Era verdade, António Braz Monteiro apanhava o barco das 9 e dedicava o percurso a folhear o Diário Ilustrado, dando sua especial atenção à coluna High Life, o que suscitava as chacota de quem disso se apercebia.
Riam por ignorância, não sabendo que dessa leitura dependia o desenrolar do resto do dia e também os seus proventos.

rua do arsenal2.jpg

 

Procurava avidamente saber quem, dos ilustres ali mencionados, se encontrava fora da sua casa lisboeta, em trabalho ou prazer, tendo especial interesse nas ausências prolongadas, na província natal, em vilegiatura marítima* ou termal. Depois, deslocava-se a uma casa que tinha por sua conta, na rua do Arsenal,  onde guardava as ferramentas do ofício.

Assim munido, rumava a uma das moradas que sabia vazia, forçava a entrada e abastecia-se com dinheiro e os bens de maior valor ou, enfim, o que mais maior cobiça lhe despertava.
Os objetos de fácil comercialização eram rapidamente transformados em dinheiro numa das muitas casas de penhores que na época tinham porta aberta em Lisboa. Depois era só gastar.


penhores.jpg

 

Com muito engenho, mas também uma grande dose de sorte, em tantas incursões, este nosso amigo nunca encontrou ninguém em casa, nunca foi visto nem usou de violência para com quem quer que fosse. Como trabalhava por conta própria, também não foi alvo de delação.
Este circuito, de tão simples e eficaz, demorou a ser percebido pelas autoridades, que se viram confrontadas com uma vaga de arrombamentos de que não havia memória. Por vezes eram duas casas por dia e só da nata da sociedade lisboeta, o que agravava a pressão sobre a polícia. Pouco a pouco, conseguiram seguir o rasto dos objetos “no prego” e assim chegar ao “nosso” larápio.
A sua história depressa correu de boca e boca e foi explorada pelos jornais.

Não se sabe quem foi o primeiro a chamar “ladrão fino” a António Braz Monteiro, mas foi com esse título que ficou para a história, pois não escapou a ninguém o delicado trato do antigo funileiro, a forma como trajava bem, expressava-se com facilidade e educação e até a alta qualidade da sua ferramentaria – dois valentes**, um escopro e uma gazua.

O facto de só roubar aos ricos fê-lo merecer o apreço da “arraia miúda” e o vasto leque de produtos roubados foi alvo de ampla discussão e prolongado pasmo: entre as expectáveis joias e talheres de prata, havia até livros, vestidos, sinetes, boquilhas, uma guitarra, um "hábito de Cristo" e uma apólice de seguro. Tudo junto, dizia a imprensa, formava um extraordinário bazar, capaz de encher a futura filial do Grand Magasin du Louvre.
Foi tanta a simpatia despertada que a imprensa até o tentou desculpar, atribcadeia do limoeiro fotografia.jpguindo tão intensa atividade de gatunagem a um apelo irresistível a que o ladrão fino não conseguia resistir. Uma doença, enfim, que explicaria a incursão deste homem no reino do crime, quando nada nele encaixava no que era a imagem rude, boçal e até feia que na época era entendida como a que deveria ser a apresentação de um criminoso.
Quer a atividade fosse inadvertida ou intencional, como parecem demonstrar todos os cuidados e sofisticação na forma de agir de António Braz Monteiro, o certo é que acabaria, como tantos outros, fechado na cadeia do Limoeiro, que é onde terminam as pistas sobre a sua vida, dez anos depois destes factos.

À margem

cacilhas.GIF

 

Entre Cacilhas e o cais do Ginjal ergue-se hoje um triste conjunto de edifícios que outrora albergavam armazéns e unidades fabris - tanoaria, têxteis, cortiça, construção naval, destilaria e conservas, como aquela em que trabalhava António Braz Monteiro. Cacilhas*** era pouco mais do que a rua central, quintas e o aglomerado junto ao Tejo, que fervilhava de atividade.

cais cacilhas4.jpg


A La Paloma seria, já no século XX, a maior das fábricas de conservas de peixe ali localizadas, empregando sobretudo mulheres contratadas em Peniche e no Algarve. Viviam à dezenas num armazém que o proprietário adaptou para o efeito. Ali eram igualmente produzidas as latas, com folha metálica que chegava de fragata, em fardos.
O trabalho era sobretudo sazonal. Quando os grandes carregamentos de peixe chegavam, quem não tinha ocupação, acorria em busca de poder ser útil na empreitada e assim ganhar para o pão.
Nada se perdia. O azeite sobrante seguia para o fabrico de sabão e as entranhas do peixe eram secas para servir de adubo na agricultura. O produto exalava um cheiro nauseabundo e era levado em carroças puxadas por burros.
A construção da Ponte 25 de Abril ditou o abandono de muito do tráfego fluvial e também desta zona de cais. Poucos anos depois, no entanto, no extremo oposto de Cacilhas, preparava-se a instalação do que viria a ser um dos maiores estaleiros navais da Europa. Nada voltaria a ser igual.

Mas isso é outra história...

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*Já aqui falei da vilegiatura marítima em Setúbal e de como a indústria conserveira acabou com ela.

** Pequena alavanca de ferro.

"valente", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/valente [consultado em 25-07-2019].

 

*** Também já falei da importante batalha a que Cacilhas assistiu, a propósito do tenebroso carrasco da torre


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Fontes
Biblioteca Nacional Digital
www.purl.pt
Diário Illustrado
15º ano; nº4:636 – 23 mar. 1886
15º ano; nº4:637 – 24 mar. 1886
15º ano; nº4:640 – 27 mar. 1886
15º ano; nº4:642 – 29 mar. 1886

25º ano; nº8:237 – 25 fev. 1896

Infâmia e fama – o mistério dos primeiros retratos judiciários em Portugal (1869-1895), de Leonor Sá, Edições 70, maio de 2018

https://canthecan.net/collectible/memorias-do-ginjal-%e2%80%a2-elisabete-goncalves/

https://uf-acppc.pt/jf-cacilhas/index.php/a-freguesia


Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LSM/000875


Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001220
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000875

José Chaves Cruz
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000524


Cadeia do Limoeiro
José Artur Leitão Barcia

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000629

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000297


https://almada-virtual-museum.blogspot.com/2016/06/crescimento-do-largo-de-cacilhas.html
postal Edição Martins

 

 

 

Instantâneos (40): a educação física regenera a raça

 

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Um, dois. Um, dois. Insiste, insiste! Ufa...esta moda de fazer exercício não tem metade da piada de correr pelos campos, saltar muros, trepar as árvores ou nadar na ribeira...mas tem de ser, os professores mandam. É preciso obedecer.

Parece ser este o pensamento que invade os cérebros ginasticados destas crianças, posando para o fotógrafo a meio de tanto sacrifício.

As imagens foram captadas em 1913, na escola de S. Miguel, em Viseu, mas poderiam ter sido em qualquer outro concelho do País, pois muita foi a propaganda para que o ensino passasse a chegar a mais gente e, em simultâneo, formasse o carácter, impusesse hábitos de disciplina e ideais patrióticos.

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Estávamos nos primeiros anos da jovem República Portuguesa e era preciso regenerar a "raça" – a expressão haveria de ser especialmente cara ao regime seguinte...

 

Diziam as novas correntes da educação – curiosamente, já por aqui iniciadas nos últimos anos da monarquia - que a criança tinha que ser olhada como um todo, valorizando-se a educação física, artística e cívica, os trabalhos manuais e as visitas de estudo – excursões pedagógicas, como então se denominavam.

 

Muitas destas intenções ficaram pelo caminho, como tantas vezes acontece, devido à falta de meios e vontade política para uma reforma mais profunda.

 

Eram tempos muito anteriores àqueles que hoje vivemos. Quase já esquecidos, numa época em que os miúdos têm todo o equipamento disponível para a prática de desporto e é essa a atividade que menos praticam - pelo menos de forma espontânea - pois o apelo dos "desportos" virtuais soa mais alto e impõe-se, como antes se impunha a voz dos professores.

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

Illustração Portuguesa

nº391, 18 agos. 1913

Imagens do fotógrafo amador J. Batalha

 

A República e a Educação – dos projetos, às realizações, de Joaquim Pintassilgo; Universidade de Lisboa – Instituto de Educação. Disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/8313/1/A%20república%20e%20a%20educação.pdf

 

 

 

Heróis do acaso (2): a prostituta que ajudou a República

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Justina Maria da Silva, meretriz.  Era julho de 1912. Em Chaves, travava-se uma luta fratricida entre monárquicos e republicanos. As balas zuniam nos ares; homens tombavam feridos; outros tentavam manter-se nos seus postos, com muita fome e uma secura que penetrava nas suas gargantas e os fazia sufocar. No meio de todo aquele caos, uma mulher – uma desgraçada, como lhe chamou um jornal – transformou-se em heroína.
Justina Maria da Silva, conhecida na terra como "Maria dos Garotos" - calcula-se porquê quando se sabe que era prostituta - foi o alento dos soldados republicanos.
Com um cântaro que enchia numa fonte próxima, matou-lhes a sede, levou-lhes comida e ainda lhes levantou a moral, mas não com as artes da sua profissão, embora para essa também seja necessária uma boa dose de psicologia…
Arriscando a vida na frente de batalha, a mulher incitava-os, se estes esmoreciam; alegrava-os, dançando, se a tristeza lhes despontava no peito; instigava-lhes coragem, se o medo os vinha espreitar; estimulava-os a continuar, a não desistir, enfim, a lutar.
De tal forma a sua participação foi decisiva, que aquela a quem também chamavam "Maria dos Rapazes" ou "Maria do Rasgão", foi condecorada com a Medalha de Mérito, Filantropia e Generosidade do Estado Português, acrescida de recompensa pecuniária de 50 escudos. A homenagem foi extensiva a outra flaviense, Gloria dos Anjos Alves Carneiro, que talvez por ter uma profissão menos peculiar não mereceu relato na imprensa.
Quanto a Justina, recompôs a vida e a reputação.

Tornou-se patroa de uma taberna com muita freguesia, onde aquelas que se dedicavam à atividade que outrora fora a sua eram sempre eram bem recebidas. Elas e os mancebos que ali iam afogar as mágoas e acabavam brindando à bravura de Maria. Mostrava-lhes orgulhosamente a condecoração, guardada com carinho numa velha caixa já muito gasta pelo uso, lembrando o tempo em que ela, imitando a samaritana da Biblia, matou a sede aos que poderiam ser seus inimigos.

E depois...nunca mais se ouviu falar desta heroína do acaso.

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Nota: a imagem é meramente simbólica.

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Fontes
Hemeroteca digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt
Jornal A Capital
Nº745, 3º ano – 24 ago. 1912

Coleção oficial da legislação portuguesa – 1912, Imprensa Nacional, Lisboa, 1915. Disponível em
https://books.google.pt/books?id=2JgvAQAAMAAJ&pg=PA850&lpg=PA850&dq=%22justina+maria+da+silva%22+chaves&source=bl&ots=f5cTeEhQS7&sig=ACfU3U3L0eRXAe3kQ1r_1N6guZhx4uQn7g&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwiPy-uPhKrjAhXb6OAKHThcCY4Q6AEwCXoECAkQAQ#v=onepage&q=%22justina%20maria%20da%20silva%22%20chaves&f=false

https://chaves.blogs.sapo.pt/chaves-daurora-1467344

https://www.ernanileiloeiro.com.br/destaques.asp?Num=175&pag=2&tipo=5

 

O poeta que saiu do armário nunca foi perdoado

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Foi o primeiro à escala global a assumir-se abertamente e sem rodeios. A sua obra, largamente elogiada pelo genial Fernando Pessoa, não mais seria olhada da mesma forma. Há quase cem anos, António Botto chocou a pudica sociedade portuguesa.

 

António Botto teve, em 1921, o arrojo de, com a sua arte, expor de forma despudorada, descomplexada e clara uma preferência pela estética do amor homossexual. Foi o primeiro no mundo a ter tal ousadia, logo perseguida pela “moral e bons costumes”, no que ficou conhecido como “o maior escândalo erótico-social do século XX"*. De pouco lhe valeu a defesa artística de Fernando Pessoa ou José Régio, porque a sua obra nunca mais seria avaliada de forma isenta. Mas, quem foi este homem que conseguiu escrever “literatura de Sodoma” e, em simultâneo, livros aprovados pelo Cardeal Cerejeira e até aconselhados para o ensino?

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Até mesmo para os estudiosos de Botto é difícil perceber onde termina a realidade e começa o mito, porque o escritor criou uma imagem desejada de si próprio, mais favorável ao seu reconhecimento público, que avidamente procurava.

Nasceu no concelho de Abrantes, em 17 de agosto de 1897 e cedo veio com a humilde família viver para Lisboa. O pai era fragateiro e Botto cresceu no ambiente popular e boémio de Alfama, não se lhe conhecendo instrução formal aprofundada.

 

 

 

 

É pois um autodidata que, em 1921, publica o “escandaloso” livro

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de poesia “Canções” (com prefácio de Teixeira de Pascoaes). Com a greve dos jornais que nesse abril vigorava, a obra quase passaria despercebida, não fosse pelo menos um texto violento n’A Capital, em que o jornalista Armando Ferreira chega a defender o uso de “pau de marmeleiro” para “escorraçar” o artista, cuja fotografia (à direita) “nuzinho até aos ombros e com os olhos em alvo” - que acompanhava o livro nos escaparates - provocou tanto melindre como as linhas que escreveu. Curiosamente, no Diário de Lisboa, o insuspeito António Ferro disse não ter visto qualquer escândalo, antes uma “sensibilidade delicada” por parte de um “poeta de gosto”.


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“Canções” sai verdadeiramente do anonimato dois anos depois, quando é reeditado por Fernando Pessoa, que elogia amplamente o talento de António Botto, o que fará até ao fim da vida, em numerosos escritos, considerando-o o único esteta português.

O alarde social, no entanto, é aumentado pelo movimento lançado pela Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, apostada em calar a “literatura de Sodoma”, em que incluíam o trabalho de António Botto e que culminaria com os livros apreendidos e queimados.

 

antonio botto4.JPGO escritor não se calaria, nem se conteria. Continuou a escrever, poesia e prosa, teatro, crítica… Publicou também literatura infantil, nomeadamente O Livro das Crianças, aprovado pelo Cardeal Patriarca de Lisboa e posteriormente traduzido para inglês e irlandês, tendo esta última versão sido homologada para o ensino naquele país.

E prosseguiu, igualmente, destacando-se, exibindo-se a provocando. Altivo, exuberante, narcísico, Botto não deixava ninguém indiferente e marcava a sua cor numa sociedade mais dada a cinzentismos. Foi sempre um outsider, nunca aceite pelo snob mundo intelectual a que pertenceria por mérito dos seus escritos, mas no qual não se enquadrava, nem pelas modestas origens, nem pela postura exibicionista.

 

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Esta exclusão, com raras exceções, revelar-se-ia igualmente com a sua demissão do humilde emprego público que ocupava, por alegadamente não saber manter o decoro no local de trabalho e, anos depois, com um exílio voluntário no Brasil, onde revelaria a sua veia de desenhista e “arquiteto”, mas acabaria por viver na miséria, consumido pela doença – presumivelmente sífilis – e a decadência criativa e estética.

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A morte chegaria de forma abrupta, mas quiçá benéfica, quando foi atropelado numa avenida do Rio de Janeiro, Tinha 61 anos.

Contraditório – assumidamente homossexual, mas casado com uma mulher - controverso, polémico, desconcertante e muitas vezes esquecido. António Botto tem a sua obra dispersa. O reconhecimento tem vindo tarde e aos poucos: foi elogiado por muitos vultos e faz parte de algumas grandes antologias da poesia portuguesa (mas está omisso noutras). Mais recentemente, a sua relação com Fernando Pessoa “deu” um filme e Anna M. Klobucka publicou «O Mundo Gay de António Botto». Também a sua obra Histórias do Arco-da-velha está presentemente recomendada para o ensino, em Portugal.

 

Pode a crítica vir com seus tambores,
Seus clarins ou punhais envenenados,
Que eu fico tal e qual como essas couves
Que há nos grandes jardins civilizados

António Botto
Inédito retirado do livro O Mundo Gay de António Botto, de Anna M. Klobucka


À margem

 

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Canções, de António Botto, não foi o único visado pela Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, que, naquele ano de 1923, jurou acossar o que apelidou de “literatura de Sodoma”. Entre os alvos desta iniciativa moralizadora estavam igualmente “Sodoma divinizada”, de Raúl Leal, e “Decadência”, da escritora Judite Teixeira. Todas estas obras acabariam por ser retiradas das livrarias e reduzidas a cinzas. A perseguição, que foi secundada pela Igreja Católica, geraria respostas e contrarrespostas, nomeadamente por parte de Fernando Pessoa. Depois de, numa primeira fase, pedir aos meninos estudantes que fizessem o que era esperado deles, ou seja, estudar e divertir-se com mulheres, se gostassem de mulheres e divertir-se de outra maneira, se essa fosse a sua preferência, porque “tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte”; acaba por ser mais assertivo, considerando os elementos daquele movimento estudantil “estúpidos e sórdidos, por não conseguirem “conceder a possibilidade de um talento alheio que não compreendem” e classificando como “entristecedora” aquela posição, tanto mais que derivava de jovens, cuja inteligência deveria ser “álacre e desperta” e, em vez disso, “rastejam na imbecilidade". A Ação dos Estudantes de Lisboa era liderada por Pedro Teotónio Pereira, que anos depois viria a ser um dos homens fortes na diplomacia do Estado Novo e chegou a ser apontado como o sucessor natural de Salazar.

Mas isso é outra história…

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* O título é do historiador Jesué Pinharanda Gomes

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Fontes
O Mundo Gay de António Botto, de Anna M. Klobucka; Sistema Solar - 2018, parcialmente disponível em: https://issuu.com/sistemasolar/docs/excerto_o_mundo_gay_de_anto_nio_bot

 

António Botto – Poesia; edição, cronologia e edição, Eduardo Pitta; Assírio&Alvim


Fundação Mário Soares
http://casacomum.org
Jornal Diário de Lisboa

Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Jornal A Capital

 

https://observador.pt/especiais/a-maior-felicidade-e-ser-se-compreendido-sete-poemas-para-recordar-antonio-botto/


https://observador.pt/especiais/antonio-botto-nao-foi-so-amigo-de-fernando-pessoa-foi-o-primeiro-do-mundo-a-escrever-poesia-homoerotica-sem-veus/

Trabalhos de Rita Cipriano


https://modernismo.pt/index.php/p/708-pedro-teotonio-pereira

 

imagens

 

https://www.flickr.com/photos/biblarte/36515303426

https://www.sabado.pt/gps/palco-plateia/livros/detalhe/poesia-completa-de-antonio-botto-reunida-e-com-versos-politicos


https://oportunityleiloes.auctionserver.net/view-auctions/catalog/id/2086/lot/771449/?url=%2Fview-auctions%2Findividual-lots%2F%3Fpage%3D1undefinedort%3D50ir%3D1%26items%3D580


https://pt.wikipedia.org/wiki/Can%C3%A7%C3%B5es#/media/Ficheiro:António_Botto,_Canções,_2nd_edition.jpg

http://geneall.net/images/names/pes_182441.jpg

A terra mais doentia do País

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Os pobres aguentavam como podiam os ares supostamente enfermiços desta vila à beira Sado. Os funcionários do Estado aqui colocados tentavam fugir a tal sorte e queixavam-se amargamente aos superiores.


A terra mais doentia do País. É nestes termos que, em meados do século XIX, um deputado da nação se refere a Alcácer do Sal, acusando o governo de castigar funcionários públicos "deportando-os" para uma comarca com estas características tão negativas. A má fama destes ares, associada à existência de extensos terrenos pantanosos e à cultura do arroz, manteve-se pelo menos até aos anos 30 do século XX e, justamente, porque o sezonismo chegou a ser principal causa de morte. Só que o problema não estava nos ares, mas nas picadas dos mosquitos que, por aqui, tinham propagado a malária a 95 em cada centena de alcacerenses.

Os parlamentares argumentavam que a esperança média de vida nas terras junto aos arrozais, como Alcácer, mas também Santiago do Cacém e Alhos Vedros (concelho da Moita, na margem sul do Tejo) era de pouco mais que 20 anos (!), metade da média nacional de então e que nem era preciso ser médico para ver que estas gentes andavam doentes, pois apresentavam a fraqueza pintada nos olhos, pele de cor terrosa e abdomen dilatado, assemelhando-se aos "peixes sapos".

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A população "comum" suportava as agruras de uma vida humilde e exposta a estes perigos, até porque não conhecia outra realidade.

 

 

Os mais afortunados passavam grandes temporadas fora da terra*, em especial nos meses de maior calor.

Depois havia os que tentavam "fugir" de tal sorte. Neste grupo enquadram-se os funcionários públicos destacados para Alcácer do Sal.

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De facto, os livros de registo da correspondência enviada ao Procurador da República mas também ao juiz presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, estão cheios de queixas quanto ao clima que se vivia nesta localidade à beira Sado.

 

Os diversos delegados do Ministério Público que por aqui passaram diziam que o ambiente era enfermiço, afetando sobremaneira o bem-estar e o humor, especialmente dos nortenhos – habituados a atmosferas mais temperadas - e igualmente dos juízes e dos próprios funcionários, que viam a “saúde gravemente prejudicada por longa permanência nesta terra", onde o paludismo continuava "a perseguir incansavelmente toda a população”, lamenta-se o juiz Alberto Nogueira de Lemos, que aqui esteve colocado nos anos 30.

Esta realidade, a somar ao facto de esta ser, no início do século XX, apenas uma comarca de 3ª classe, não terá sido alheia à ansiedade com que os magistrados aguardavam a promoção que lhes permitia passar a uma colocação de superior categoria. Mesmo durante os períodos em que se encontravam em Alcácer do Sal, eram frequentes as licenças solicitadas, quer para férias, quer por doença, mas invariavelmente passadas longe deste concelho.

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Os juízes chegavam a estar ausentes anos a fio e adoeciam “devido à insalubridade do clima da região” e à dificuldade de tarefas como a avaliação de propriedades, frequentemente “muito distantes da sede do concelho”, o que os fazia percorrer grandes distâncias em más condições. “Os caminhos e meios de transporte são péssimos e mesmo assim nem sempre há”, queixava-se um representante do Estado.

De resto, entre 1922 e 1935, por esta comarca passaram pelo menos 13 delegados do Procurador da República que, como se compreende, não chegaram a “aquecer o lugar”. Quem efetivamente desempenhou funções foi o sub-delegado, Joaquim António Correia Júnior, que se manteve no cargo sensivelmente durante este período.
Contrariando esta aversão, no entanto, muitos foram os que, tendo vindo parar a Alcácer por acaso, por aqui ficaram, criaram raízes e família.

À Margem

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O receio que os ares de Alcácer despertava nos forasteiros não deixava de fora nenhuma classe social. Maria da Conceição da Costa Bico, hoje com 92 anos de idade, conta um episódio que mostra bem essa transversalidade. Nos anos 20 do século passado foi colocado em Alcácer do Sal o padre António Fialho Prego Calabote (na imagem). Parece que os amigos não se conformaram com esta deslocação, receando pela saúde do pároco, devido à má reputação dos ares da terra. O padre não esteve por meias medidas e, apostado em provar que em Alcácer do Sal também se podia ser saudável, chamou à igreja a paroquiana com aspeto mais sadio de que se lembrou, precisamente a menina Conceição, roliça, corada e sã menina, para demonstrar que também as havia por aqui.
Prego Calabote, de resto, permaneceu em Alcácer por muitos anos e também parece ter-se dado bem com estes ares, sendo conhecido pela grande robustez da sua pessoa. Tão corpulento se tornou, aliás, que, quando morreu, em 1944, o seu caixão era tão largo que não pôde sair pela porta, tendo sido necessário fazê-lo transportar pela janela.
Mas isso é outra história...

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*Já aqui falei a vilegiatura marítima que os alcacerenses abastados faziam, especialmente em Setúbal.

Fontes

Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal
“A malária no Vale do Sado – perspetiva histórica”, Memórias do Instituto de Malariologia de Águas de Moura, de Fernando Borges - Comunicações do simposium satélite, Palmela, 29 novembro 2001 a 7 abril 2002

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
Fundo Comarca - Correspondência/correio
Sub Fundo Delegação do Procurador-Régio/da República – Correspondência

Debates parlamentares
http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

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Pela imprensa (13): quando o Swing era só uma dança...e um perfume

 

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Um par rodopiando ao som de um animado jazz. Swing, não apregoa aromas amadeirados ou florais, frescos ou doces; não especifica se é para homem ou mulher...Swing não promete nada – o que é raro em publicidade – apenas se afirma moderno, o que quer que isso significasse nos idos anos de 40 do século passado.
Inspirado na denominada “era do Swing”, uma importação do Estados Unidos da América, este perfume da portuguesíssima Nally dá a entender que é para quem se sabe divertir, dançando pela noite fora.
Curioso é Swing apostar na sua modernidade, quando sabemos que a sua data de lançamento (1940) já corresponde ao declínio da época dourada deste tipo de música, conotada com o jazz "negro".

Tão contagiante era, que colocou os americanos a dançar, mas só tardiamente terá chegado a estas paragens.


Será que uma gota de Swing atrás da orelha tem o mesmo efeito irresistível de atrair o parceiro certo para dançar? Este senhor, por exemplo, não parece o par perfeito, com um ar afetado e rígido...será que a parceira vai conseguir que se descontraia?

Talvez seja esse o dom de Swing, fazer gingar até o mais hirto dos homens!


O fabricante deste perfume dançarino tem um nome estrangeirado, mas não podia ser mais lusitano.
A Nally nasceu em 1925, em Lisboa, e tem vindo sempre a crescer, até se instalar no Carregado, há quase uma década. Produz para terceiros e com marca própria, na área da perfumaria e cosmética.
Ao longo da sua história lançou diversos produtos icónicos, com rótulos e embalagens muito procurados no "mercado da saudade", mas também pela sua tradição de qualidade.
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Fontes
http://www.nally.pt/

https://www.perfumeintelligence.co.uk/library/perfume/n/n4/n4p1.htm

https://www.perfumebottles.org/virtual-museum/20/commercial/1274/swing