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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Pela imprensa (14): dinheiro, empresta-se!

 

 

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Capturardinheiro 1.GIFPrecisa de dinheiro? A pergunta é a mesma hoje ou há cem anos. É eterna a necessidade de ter mais do que o salário mensal nos oferece, mais do que a herança nos trouxe ou os nossos investimentos nos rendem. De sempre, mas não eternas, já se vê, são as entidades que emprestam dinheiro, sejam casas de penhores, agiotas ou instituições de crédito legais e respeitadas. Os métodos, o juro ou mais-valias para quem empresta é que variam.

Hoje pedem-se, nomeadamente, casas ou rendimentos fixos como caução, mas estes anúncios do jornal A Capital, de 1925, apregoavam empréstimos de dinheiro sobre qualquer bem, sobre “tudo” o que pudesse “oferecer garantia”, fosse qual fosse a importância em causa, assegurava “A Comercial”, estabelecida na travessa da Trindade e que declarava um juro a partir de 4 por cento. Nada mais simples.

Tudo dependia da avaliação, que se afiançava ser “boa”, dos bens e do montante pretendido.


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Assim, pode ler-se, emprestava-se sobre “ouro, prata, joias e brilhantes”, obviamente, mas também sobre “roupas brancas e de cor, calçado, fazendas em peça, louças, quadros, fatos, sobretudos, impermeáveis, máquinas de escrever e de costura, pianos, etc., etc”. “A Fenix”, situada junto ao elevador do Lavra, abria assim ao máximo o leque de ofertas, garantindo-se juro módico, “muito segredo e seriedade”.

Já José Mayer, com escritório na rua do Loreto, é menos “mãos largas”. Aceita os tradicionais metais preciosos e antiguidades, referindo ainda “outros objetos”, sem especificar, mantendo, é certo, o “máximo sigilo e reserva”.

Agora, é só escolher!

 

 

 

 

 

 

 

 

Fontes:

Hemeroteca Digital de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

 

Jornal A Capital

Quando a bela Comporta era uma espécie de “África metropolitana”

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Em pouco mais de um século, passou de antecâmara do inferno a paraíso na terra. Os escravos e degredados foram substituídos pela nata da sociedade, rendida a paragens tão desejadas hoje como o foram temidas e desprezadas num passado não muito distante.

Huuummm, Comporta: praias maravilhosas, areais e mar azul a perder de vista; gente bonita, festas de verão...Huuummm, Comporta: terra de degredados e outros condenados, uma espécie de “antecâmara do inferno”, onde a vida era de extrema dureza e nem a morte era pacífica, porque não havia sequer cemitério onde se pudesse descansar em paz.


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Era esta a imagem, quiçá exagerada, que os portugueses tinham daquela que é hoje uma das mais badaladas e concorridas áreas turísticas do País. Até aos anos 20 do século passado, efetivamente, a Comporta era constituída sobretudo por areais estéreis, terrenos incultos e pantanosos, só frequentados por quem a isso era obrigado, como os escravos da Guiné, para ali enviados por se supor serem mais resistentes à malária, mas que “caíram que nem tordos”, porque aos mosquitos pouco interessa a cor da pele; ou os degredados deixados a cumprir pena antes deste tipo de condenação passar a ter como destino preferencial as colónias ultramarinas*.

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Efetivamente, a Comporta chegou a ser denominada de “África metropolitana”, tão difícil era considerada a vivência naquela zona do concelho de Alcácer do Sal, “onde se entrava já contaminado de sezões em companhia de milhões de mosquitos traiçoeiros e venenosos”.
Estradas não havia, o trajeto de barco a Setúbal demorava hora e meia e, no Inverno, a zona chegava a estar isolada durante semanas.

Não admira que os poderes públicos ali nada investissem e que até os representantes do Estado se recusassem a efetuar diligências em tão remotas e esquecidas paragens.

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Os poucos habitantes viviam em cubatas miseráveis e nem depois de mortos podiam descansar em paz, pois não existia – ainda hoje não existe – sequer um cemitério onde pudessem ser enterrados, ou caixões para uma “transição” mais digna. Os que ali pereciam eram invariavelmente enrolados em serapilheira e atados ao dorso de um burro, levado pela arreata ao cemitério mais próximo, a 15 quilómetros de distância, em Montevil, onde, finalmente, podiam ser depositados em campo sagrado.
Não havia médico, correio ou outra força de segurança para além os guardas dos serviços florestais.


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O denominado Paul da Comporta era uma região inóspita e “quase inabitável”, onde, no entanto, em finais do século XIX já se extraía junco, palha, turfa e sobreiros, produtos para reduzir a cinza, usados como combustível. E, claro, já se pescava, num mar sempre rico mas que pouco atenuava a vida numa região onde, por ser tão “primitiva e desértica”, “só se podia contar com o auxílio divino”.

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Em 1925 tudo mudaria. A Atlantic Company Limited** adquiriu os 15.700 hectares incultos de Pera e Comporta, encravados entre os concelhos de Alcácer do Sal e Grândola, que haviam sido da Casa do Infantado e depois da Companhia das Lezírias do Tejo e do Sado, transformado-os, progressivamente, numa das mais importantes produtoras orízicolas do país.

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Mesmo antes da chegada das preciosas águas da barragem Pego do Altar, a empresa com capitais portugueses e ingleses tratou de introduzir novas técnicas de cultivo que ali tiveram sucesso.

Transformou os pântanos em arrozais, derrubou as cubatas e substituiu-as por casas para os trabalhadores, construiu celeiros, oficinas, silos, cantina, padaria e escola. Mandou plantar pinheiros e outras árvores que amenizassem a paisagem e o ar.

Nos anos 40, a beleza da praia, talvez “a maior e mais serena” do País, era já admirada pelos poucos que a visitavam, vaticinando-se que, num futuro próximo, pudesse originar “um desenvolvimento extraordinário” também no turismo.
Assim foi.

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A família Espírito Santo, que desde 1958 passou a deter a totalidade da herdade - embora com um interregno durante a época em que esta foi nacionalizada, no pós 25 de abril – seria mentora de outra grande transformação.


A partir de 2003, este portento agrícola é convertido em poiso do jet set e, embora os arrozais se mantivessem, aliados à vinha e aos hortícolas, passaram a ser outro tipo de “culturas”, mais urbanas, a dar nas vistas.
Com o descalabro do Grupo e a venda das terras, antes tão desprezadas e hoje tão desejadas, abre-se novo capítulo e fazem-se apostas sobre o que se segue.

À Margem
Noudar, no atual concelho de Barrancos, no Alentejo; Lagos, Sagres, Silves, Tavira, Alcoutim e Castro Marim, no Algarve; mas também, ainda que de forma menos constante, Linhares, Pinhel, Castelo Branco, Guarda, Trancoso, Moncorvo e Bragança gozaram, em diferentes épocas da história de Portugal, de estatuto especial que as transformou em terras sem lei, onde fugidos da justiça encontravam “asilo”, ou colónias penais, onde os condenados cumpriam as suas penas e, em simultâneo, contribuíam para o repovoamento de áreas pouco atrativas para o português comum. Nos denominados “coutos de homiziados”, podia-se comutar as penas de prisão ou degredo para o Ultramar em exílio forçado em território da metrópole, o que acabava por ser vantajoso para o Estado e para os degredados, que fugiam à morte certa em África ou no Oriente, à mercê de climas extremos e doenças exóticas. A coroa beneficiava da colonização interna, ao sabor das necessidades de povoamento ou defesa, mas também, por exemplo, suprindo a falta de indivíduos de uma determinada atividade para a qual a terra tinha natural vocação. Foi o que aconteceu em Portimão, por exemplo, que serviu para acolher os pescadores condenados por praticamente todos os crimes, que ali colmatavam a escassez de mareantes “indígenas”.
Mas isso é outra história...

…...
*Li haver memória oral da Comporta ter sido uma colónia penal, mas não encontrei fontes que o confirmassem efetivamente.
** Os diretores William A. Tait, Franck Jeatrunes e Jorge Nunes de Matos; o administrador delegado João José Soares e, depois da morte deste, Manuel José Soares Mendes, são apontados como principais impulsionadores desta mudança.

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Fontes
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
Jornal «O Setubalense», suplemento de 4 de Agosto de 1934.

Pedro Muralha, Monografias alentejanas, Imprensa Beleza, Lisboa, 1945

Património Orizícola e Turismo na Herdade da Comporta, de Rafael Alexandre Carvalho Ferreira; dissertação para a obtenção do grau de mestre em Empreendedorismo e Estudos da Cultura; ISCTE – IUL Instituto Universitário de Lisboa, outubro 2017.


Controlo populacional e erradicação da malária; de Vítor Faustino, citando Dias 2001, 90. Disponível em https://epdf.pub/a-circulaao-do-conhecimento-medicina-redes-e-imperios.html


Coutos e terras de degredo no Algarve - Castro Marim, Lagos e Sagres, subsistiram até ao séc. XIX como locais de refúgio e de exílio, de José Carlos Vilhena Mesquita; Universidade do Algarve – Faculdade de Economia

Imagens
Arquivo Municipal de alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/01/02/02/002
Álbum Alentejano - Apêndice do Baixo Alentejo; Pedro Muralha; 1937

Arquivo Pessoal de Fernando Horta em:
https://www.sabado.pt/vida/detalhe/a-incrivel-historia-da-proprietaria-do-restaurante-dona-bia-na-comporta
 
http://www.herdadedacomporta.pt/pt/gca/index.php?id=14

http://maiscomporta.blogspot.com

Instantâneos (42): quem não vê caras...

 

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Sem rosto nem identidade. Fantasmagóricos, quase ridículos de tão toscos. Encapuzados, apartados de olhares indiscretos e de qualquer outro contacto com os seus pares. Longe da vista e do coração. Era esta a realidade dos prisioneiros assim que davam entrada na Cadeia Penitenciária de Lisboa. À luz das teorias seguidas na época, o capuz era essencial no processo de regeneração e o seu uso obrigatório na presença de outros reclusos, como nesta imagem, de reunião no anfiteatro do estabelecimento.

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À entrada na penitenciária, os homens eram lavados – depois havia banhos quinzenais – despiam as suas roupas mundanas e recebiam a farda que os acompanharia durante o tempo de prisão e da qual fazia parte o “infamante capuz”, como foi apelidado pelos seus detratores.
Só era permitido descobrir a cara perante os guardas prisionais e restante pessoal da cadeia, para que não fosse possível o reconhecimento por parte de outros presos. Assim, entendia-se dificultar qualquer tipo de comunicação tendente a negócios, agregações criminosas ou chantagens numa fase posterior da vida.
Os anfiteatros, como o que aqui vemos. faziam parte desta estratégia de isolamento, pois permitiam que centenas de homens estivessem reunidos no mesmo espaço, mas sem convívio algum entre si, porque os detidos era fechados em cubículos de onde apenas avistavam o orador. As aulas ou a missa, obrigatória até à instauração da República, eram assistidas em silêncio.
Os republicanos, aliás, nunca foram defensores da Cadeia Penitenciária de Lisboa, inaugurada em 1885. Apontavam-na como instituição do antigo regime, rejeitavam o seu funcionamento e os métodos ali aplicados no encarceramento e regeneração dos homens. Não admira pois que, em 6 de fevereiro de 1913, se tenha dado a denominada “cerimónia de abolição do capuz”, precisamente neste anfiteatro, onde também já não existia o antigo altar central.
O ato foi muito concorrido por membros do governo e usado como veículo de propaganda política dos ideias e princípios republicanos, anunciando-se mais alterações no sistema de reclusão, como a introdução de automóveis celulares em substituição dos carros puxados por mulas; a construção de oficinas onde os presos iriam trabalhar em conjunto e a instalação de iluminação elétrica, já que a então existente era ainda a gás.

prisioneiros capuz 4.JPGAo som do apito de um guarda, todos os presos foram instados a remover os capuzes, para nunca mais os colocarem. Também os “camarotes” que isolavam os homens reunidos tiveram ali o seu fim, pois foram destruídos logo após a cerimónia.

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Fontes
Penitenciária Central de Lisboa – A casa do silêncio e o despontar da arquitetura penitenciária em Portugal - Tese de mestrado, Arte, Património e Teoria do Restauro de Paulo Jorge Antunes dos Santos Adriano; Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Lisboa 2010. Parcialmente disponível em:
https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:oWPyPeonNjoJ:https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3660/4/ulfl059517_tm_04_capit_4_5_conclus%25C3%25A3o_bibliografia.pdf+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=pt

Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portuguesa
nº365, 17 fev. 1913

Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002423

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002421

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002424

 

A condessa de Cascais e a jornalista inglesa encontraram-se na cadeia

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Como poderiam aquelas senhoras estar envolvidas em conspirações para derrubar a República? As detenções fizeram correr muita tinta e o julgamento mais parecia uma “tragédia chique”.


Os primeiros anos da República foram, em Portugal, de grande instabilidade política e social. Foi um período marcado diariamente por tumultos, atentados e explosões. Em suma, vivia-se um clima de violência que instigava as inseguras autoridades a farejar conspirações a cada esquina. Este ambiente de desconfiança levou muita gente à cadeia por suspeita de participar em movimentos pró-monárquicos ou contrarrevolucionários da mais variada sorte. De entre as centenas de detidos, duas mulheres se destacaram*. Une-as o interesse que despertaram na opinião pública e os rios de tinta que fizeram os jornais gastar. De resto, não poderiam ser mais diferentes.
Era verão, estávamos em 1912, mas os espíritos ainda não tinham sossegado nessa Lisboa recente e oficialmente republicana. Choviam notícias de ataques e complots protagonizados por cidadãos aparentemente insuspeitos, bons trabalhadores, pais de família, militares. Mas, foram as prisões de Constança Teles da Gama e de Alice Lawrence Oram que mais empolgaram a opinião pública.

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Como podiam aquelas duas respeitáveis senhoras estar envolvidas em intrigas para derrubar o novo regime?
Alice (imagem 2), jornalista, mulher moderna, cosmopolita, independente, foi acusada de promover reuniões políticas tendentes a repor a monarquia no nosso País. Constança, aristocrata, filha do conde de Cascais e descendente de Vasco da Gama, reconhecida por inúmeros atos de caridade, viu-se atrás das grades por socorrer os muitos desvalidos presos à ordem do Estado e suspeitos de atentarem contra a República, incitando-os nessa luta.

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As detenções tiveram lugar com uma semana de intervalo, mas enquanto Alice Lawrence Oram andou num vaivém entre o Aljube, o Arsenal do Exército e a sua casa (na rua da Escola Politécnica), sendo chamada diversas vezes para interrogatório e igual número de vezes recambiada para o lar, no que os jornais chegaram a classificar de “espetáculo extravagante”; Constança permaneceu encarcerada durante cerca de nove meses e chegou a ir a tribunal de guerra, para escândalo da velha aristocracia e gáudio da imprensa.

 

A audiência decorreu no campo de Santa Clara e foi extremamente concorrida, predominando “senhoras vestidas com singela elegância”, num “luto aliviado” condizente com a ocasião, mas deveras contrastante com a normal “fauna” daquele local em dia de Feira da Ladra, como foi o caso.

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A sala estava “cheia como um ovo”. Pelo aspeto da audiência e o seu entusiasmo – alguns dos presentes até treparam para os bancos, para melhor ver o “espetáculo” - poderia pensar-se que se preparava uma “tragédia chique” e não um julgamento. Até os contínuos do tribunal estavam contagiados por tão seleta assistência, moderando os modos para uma inusitada delicadeza que não lhes era habitual.


Constança, de negro, “com o seu ar fidalgo e pisando admiravelmente”, manteve-se serena e altiva. Somente os seus olhos verdes, faiscantes, denunciavam indignação quando respondia a algumas perguntas mais “impertinentes”.

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Numa descrição que comoveu o público, a neta de Vasco da Gama garantiu que se limitava a ajudar os presos políticos, famintos e doentes, que encontrou por prisões em todo o País e lhe escreviam, pedindo auxílio para si e suas famílias, tantas vezes numerosas. Levava-lhes comida, sapatos, agasalhos, medicamentos, promovia-lhes uma defesa mais eficaz ou arranjava-lhes trabalho, uma vez soltos. Só aos presos políticos, frisou, porque considerava os criminosos comuns “repugnantes”.

 

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A acusação pedia uma pena de 18 meses de prisão – não degredo, como seria de esperar, por se tratar de uma senhora - mas as testemunhas ouvidas acabaram por não confirmar nada do que inicialmente se apontava à ilustre ré.


O mesmo aconteceu no caso de Alice Lawrence Oram, no qual se provou que a jornalista se dava com os realistas, apenas porque estes lhe forneciam importantes informações com as quais escrevia notícias para o Daily Mail, do qual era correspondente em Portugal.
Em ambos os processos se fizeram buscas às residências e, no que toca a Alice Oram, também ao hotel pertença da sua mãe e que ainda hoje é um dos mais emblemáticos de Sintra e o mais antigo da península Ibérica.**
Nada de comprometedor foi encontrado.
Não espanta pois que ambas as senhoras tenham sido ilibadas das acusações e postas em liberdade – com a família de miss Lawrence a pedir uma indemnização pelo envolvimento da sua unidade hoteleira em tal história.

Em duas semanas, Alice voltou às suas reportagens e às animadas soirées nas casas da alta sociedade lisboeta. Constança só seria absolvida em abril de 1913, mas pouco tempo depois regressava aos “seus” presos, reforçando a imagem de santa que já tinha antes de ser detida.

 

À margem


aljube 2.jpgO Aljube (a palavra significa prisão) alberga hoje um museu dedicado à resistência ao fascismo e a todos os que ali foram fechados por delitos políticos durante o “reinado” de Salazar, mas os primeiros cativos deram ali entrada 12 séculos antes, ainda durante a ocupação muçulmana de Lisboa. O espaço passou a prisão eclesiástica, depois recebeu presos comuns e durante outra época acolhia exclusivamente mulheres.
Embora o edifício não tenha sido grandemente afetado com o terramoto, a reconfiguração do traçado das ruas de Lisboa levou à sua reconstrução. No entanto, como seria de esperar em tão antigas instalações, as condições de reclusão deterioram-se horrivelmente em alguns períodos, tornando-se degradantes a todos os níveis.

Com a implantação da República chegariam os primeiros presos políticos. A problemática fez correr muita tinta e mereceu até reprovação internacional, nomeadamente dos nossos “amigos” ingleses, sempre convencidos do seu ascendente sobre Portugal. Sir Artur Conan Doyle, o autor do célebre Sherlock Holmes, foi uma das vozes críticas.


A “vocação” como prisão política prevaleceu durante o Estado Novo, período em que se refinaram as técnicas de tortura e interrogatório. Ficaram especialmente conhecidas as 13 pequenas celas de isolamento, feitas à medida de um homem deitado e que eram conhecidas como curros ou gavetas. Muitos foram os que não regressaram do Aljube ou de lá saíram transformados para sempre.

Muitos foram os que não regressaram do Aljube ou de lá saíram transformados para sempre.
Mas isso é outra história...

 

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* Muitas outras mulheres - e muitos mais homens – foram detidos nesta época. Numerosas figuras anónimas e alguns nomes sonantes - casos de Júlia de Brito e Cunha e Catarina de Sousa Coutinho - como os aqui mencionados e cujas histórias foram escolhidas num mero exercício de liberdade narrativa.

** Trata-se, obviamente, do Lawrence's Hotel, fundado em 1764 e que, ao longo da sua longa história, teve hóspedes bem famosos, como Lord Byron, William Bekcford. Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Camilo Castelo Branco e Bulhão Pato entre tantos outros. É o segundo hotel mais antigo do Mundo em funcionamento.
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Já aqui falei deste período conturbado em que havia conspirações a cada esquina e explosões diárias. Pode ler em:

Um prédio de conspiradores

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Jornal A Capital
nº722, 3º ano – 1 ago. 1912 a nº752 – 31 ago. 1912
nº958, 3º ano – 1 abr. 1913 a nº987 – 30 abr. 1913

nº1019, 3º ano – 1 jun. 1913 a nº1047 – 29 jun. 1913

O Occidente – Revista illustrada de Portugal e do estrangeiro
35º ano, XXXV volume, nº1210 – 10 ago. 1912

Illustração Portugueza

nº372, 7 abr. 1913

https://issuu.com/axiusdesigns/docs/republicabook_part1

https://geneall.net/pt/nome/41079/d-constanca-maria-teles-da-gama/

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

Autor não assinalado

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000136

O alentejano que governou o Brasil com mão de ferro

António Salema foi uma figura controversa. Considerado um bárbaro cruel, por uns, e um grande governador, por outros; tem uma rua com o seu nome no Rio de Janeiro, mas é um desconhecido em Alcácer do Sal, onde nasceu.

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Um alcacerense ficou na história do Brasil. António Salema, à luz dos nossos dias, considerado um bárbaro responsável pela morte de milhares de índios, é apontado como um extraordinário governador, dando nome a uma rua do Rio de Janeiro. Embora os métodos que usou para alcançar os seus objetivos tenham sido, no mínimo, pérfidos, a ele se deve a conquista da região de Cabo Frio, ganha à custa da expulsão dos nativos, abrindo espaço para os colonos se fixarem, prosperarem e fortalecerem os seus domínios.
António Salema, homem de leis, distinto professor na Universidade de Coimbra, foi inesperadamente promovido a Governador-Geral do Brasil, para onde tinha ido apenas desempenhar funções na justiça, em Pernambuco. D. Sebastião não deve ter-se arrependido deste voto de confiança, visto que durante este mandato se fizeram grandes progressos em termos territoriais.

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Na época, o Brasil encontrava-se dividido em duas áreas, cada uma com o seu governador. Salema, apontado como “homem de cultura”, “inteligente, sofisticado para a época” e “com grande visão”, ficou responsável pela área a sul de Porto Seguro, onde esteve entre 1574 e 1577. Ao contrário dos seus antecessores, com grandes ligações à terra, este novo governador não manifestava qualquer interesse nos costumes dos povos locais. Estava ali com uma missão, que iria desempenhar rápida e eficazmente para retornar a Lisboa com pretensões reforçadas. Para isso tinha que se impor perante os portugueses e os índios. Pela força, claro!


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Na equação, os nativos foram os únicos que ficaram a perder, primeiro subjugados por alterações que Salema introduziu nas leis sobre a sua escravização, depois pela expedição que levou a cabo, com 400 europeus e 700 índios tupiniquins à zona de Cabo Frio, onde os franceses tinham uma feitoria e comerciavam livremente com apoio dos indígenas. A incursão armada pôs fim a esta “pouca vergonha”, atacando ao mesmo tempo os inimigos estrangeiros, os tamoios e os tupinambás.

Os franceses fugiram e não mais regressaram aquelas paragens; a primeira tribo foi praticamente dizimada e a segunda debandou para o interior, abandonando as suas antigas terras, para gáudio dos portugueses, que ali puderam estabelecer plantações de cana de açúcar. “Da crueldade de Salema, veio a paz”.

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Esta mortandade, no entanto, foi “suave” quando comparada com as consequências da sua tenebrosa argúcia contra os índios que viviam à beira da lagoa Rodrigo de Freitas. Estes não eram especialmente agressivos, mas estavam em terrenos apetecíveis para os colonizadores, razão mais do que suficiente para o governador ter espalhado na zona peças de vestuário infetadas com varíola.

O resultado foi o extermínio da tribo, que permitiu a implantação do engenho d’El Rei, essencial para a produção de açúcar a preços mais competitivos e um atrativo extra para a fixação de povoadores nesta zona, onde hoje se localizam os elegantes bairros Ipanema e Leblon.


Não é pois de estranhar que António Salema seja considerado um homem cruel e impiedoso e, em simultâneo, “um grande governador”, pelo ponto de vista dos colonos comuns, que buscavam uma vida melhor no novo mundo e encontravam muita dureza nesse caminho. Este alentejano de Alcácer do Sal foi mentor das primeiras obras dirigidas ao bem-estar e qualidade de vida da população do Rio de Janeiro, entre as quais se destaca a união da cidade, ao mandar construir uma importante ponte sobre o rio Carioca, que perdurou até ao século XIX.
Escusado será dizer que, com tão retumbantes resultados, quando regressou à metrópole, tinha à sua espera um bom lugar: desembargador dos agravos.
Consta que registou para memória futura o relato dos seus feitos, mas tal escrito ter-se-á perdido, ficando por conhecer a sua versão dos acontecimentos, uma vez que morreu em 1586, em Lisboa.

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À margem
António Salema foi sepultado no Convento de São Francisco, um gigantesco conjunto de edifícios que ocupava todo o quarteirão hoje compreendido entre as ruas Capelo, Ivens, Serpa Pinto e Vítor Cordon, englobando os atuais edifícios da Escola Superior de Belas Artes e do Museu Nacional de Arte Contemporânea (Chiado). Fundado em 1217 por Frei Zacarias, munido com credenciais do próprio Francisco de Assis, em tão longa história foi palco de numerosos acontecimentos, nomeadamente diversas reuniões das cortes gerais do reino. Foi vítima de dois grandes incêndios e permaneceu de pé até ao dia 1 de novembro de 1755. O grande terramoto de Lisboa e o incêndio que o seguiu destruíram “suas riquezas, sua igreja de três naves, sua preciosa livraria, obras de arte e raridades”, sobrando apenas um cálice e um incensário. No mesmo dia, ali terão perecido 600 pessoas que, em conjunto com os restos mortais de António Salema, ficaram soterradas para sempre. Ali nasceram depois diversos edifícios, nomeadamente o que serviu de biblioteca nacional até 1965 e, no local da antiga igreja, tentou-se erguer um novo templo, tão magnífico e colossal que não chegou a estar concluído quando se extinguiram oficialmente as ordens religiosas, acabando desmontado. Daí provêm, por exemplo, as colunas jónicas integradas na fachada do Teatro Nacional D. Maria e da Escola Politécnica.
Mas isso é outra história...

 

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Fontes

Compêndio da história do Brasil; pelo general José Ignácio de Abreu e Lima; Tomo I; casa dos Editores Eduardo e Henrique Laemmert; 1843. Disponível em:
https://books.google.pt/books?id=v98FAAAAQAAJ&pg=PA85&lpg=PA85&dq=%22ant%C3%B3nio+salema%22+brasil&source=bl&ots=gKeLyZ_pxj&sig=ACfU3U0TAEOtlqRcTZWimSVF8jNN7R8STw&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwiYmILShuHgAhUM3xoKHfjJDg04ChDoATAGegQICBAB#v=onepage&q=salema&f=false


memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=9366&pesq=cache:WuCwYMSNtPsJ:memoria.bn.br/docreader/WebIndex/WIPagina/089842_07/9366&url=http://memoria.bn.br/docreader


http://copacabana.com/historia-do-leblon


1565 – Enquanto o Brasil nascia, de Pedro Doria; edição Hasper Collins; 2012; Rio de Janeiro, 2017. Disponível em:
https://books.google.pt/books?id=OzZCDwAAQBAJ&pg=PT102&lpg=PT102&dq=%22ant%C3%B3nio+salema%22+brasil&source=bl&ots=OORcZecaxg&sig=ACfU3U3fiyqzX_PvMPWkxAQnx7UDZjRv3Q&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwiO2pOJheHgAhUSx4UKHQ6qDqcQ6AEwDXoECAIQAQ#v=onepage&q=%22ant%C3%B3nio%20salema%22%20brasil&f=false

Um bárbaro e cruel da história do Brasil e.e. Antônio Salema, de Sylvio Salema Garção Ribeiro. Parcialmente disponível em

https://www.amazon.co.uk/...Brasil-Antônio-Salema/.../B00181CB...

O processo histórico da ocupação do território brasileiro, ensino fundamental, 7º ano; Governo do Estado do Pernambuco; Secretaria de Educação. Disponível em:
www1.educacao.pe.gov.br


Brasil – 500 anos de povoamento; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE Centro de Documentação e Disseminação de Informações; 2007. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv6687.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Convento_de_São_Francisco_da_Cidade

http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/74984

Imagens
biblioteca nacional digital
LEGRAND, C., fl. 1839-1847
Uma vista do rio Doce, no Brasil / C. Legrand lith.. - [S.l. : s.n., ca. 1850] (Lx.ª : : Lith. de M. L. da Ctª). - 1 gravura : litografia, p&b

Cota do exemplar digitalizado: e-3980-p


https://oglobo.globo.com/rio/um-rio-de-fatos-alem-dos-mitos-6234206

www.wikipedia.com
Capitanias na Costa Brasileira, numa organização diferente da estabelecida na primeira metade do século XVI(Joan Blaeu; domínio público.
Mapa do Brasil no Atlas Miller de 1519, Pedro Reinel; Lopo Homem; António de Holanda; domínio público.

Índios Tupinambás, autor desconhecido, domínio público.


Índios tupinambás guerreiros; gravura do livro de Jean de Léry, Histoire d'une voyage...1578;
Gravura do livro de Hans Staden; Wahrhaftige Historia und Beschreibung, ambas em

Brasil – 500 anos de povoamento; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE Centro de Documentação e Disseminação de Informações; 2007. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv6687.pdf

 

 

 

 

 

 

Instantâneos (41): repousa junto da sua obra e vela pela sua continuidade

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Não é um faraó que descansa sob tão imponente sepulcro, mas a sua riqueza daria para encher inúmeras câmaras funerárias. Não é um imperador que ali tem a sua última morada, mas o seu poder rivalizava com o dos políticos que governavam o País. Ali jaz o maior empreendedor do seu tempo e de muitos outros tempos somados. Repousa sozinho, isolado que ficou após o levantamento do cemitério que o acolhia, mas junto daquela que foi a sua grande obra.

Será que “dá voltas no túmulo” por aquilo em que esta se tornou?

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Cumpriu-se a vontade de Alfredo da Silva – em vida, poucas foram as não respeitadas, aliás – e, dois anos após a sua morte, os seus restos mortais foram transportados do cemitério do Alto de S. João, em Lisboa, para o Barreiro.
Talvez o País achasse que um homem assim ainda lhe fazia falta, porque muitos foram os que acompanharam o féretro e o acontecimento foi amplamente seguido pela imprensa, como o seriam outras homenagens mais tardias*.

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Foi em pleno mês de agosto de 1944.

Um cortejo levou o corpo do grande industrial até à estação Sul e Sueste, onde o rebocador Estoril estava preparado para fazer o trajeto até à margem sul do Tejo. O grupo seguiu, depois, a partir do cais da Rocha do Conde de Óbidos, em outras três embarcações.
Eram empregados da CUF-Companhia União Fabril; da Sociedade Geral de Transportes, Comércio e Indústria; da Sociedade de Construções Navais e da Companhia de Seguros Império, entre outras, de tantas quantas foram as áreas em que “mão” de Alfredo da Silva se fez sentir: dos adubos, aos sabões; dos azeites e óleos, à cerâmica e navegação; da construção naval, aos produtos coloniais (nomeadamente a juta).... Tudo para ser autónomo, não depender de nada nem de ninguém e, a cada sub-produto "descoberto", criar um novo mercado, uma original fonte de aproveitamento e receita.

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Às 17 horas, na doca da CUF, o séquito vindo de Lisboa reúne-se aos que, no Barreiro, o aguardavam – câmara municipal, juntas de freguesia, grémios, sindicatos e outras associações, mais operários – muitos – bombeiros, crianças das escolas e povo local seguem, através das fábricas e dos bairros operários que Alfredo da Silva havia mandado construir, para o cemitério de Santa Bárbara – hoje desaparecido – onde finalmente encontrará a paz.

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O homem que não gostava de ostentação e até mandava colocar meias solas nas suas botas gastas e passajar os pijamas puídos, encontrou a derradeira “casa” sob um imponente projeto do conhecido arquiteto Cristino da Silva, com esculturas e relevos do não menos reputado Leopoldo de Almeida. Uma colossal obra com 12 metros de largura por sete de altura. Nas laterais, a arte do escultor criou trabalhadores da industria e agricultura em posição de veneração perante o seu “benemérito”. Ao centro, num austero granito cinzento, uma pirâmide truncada suporta a urna simbólica sobre o dorso de leões.
Se, em vida, Alfredo da Silva sobreviveu a dois atentados e outras situações de perigo, em morte, foi mais respeitado, pois tanto o mausoléu como a estátua em sua homenagem existente no centro do Barreiro resistiram incólumes ao período pós 25 de abril de 1974, que naquela zona do País foi especialmente quente e agitado.

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*ver, por exemplo, homenagem realizada em 1965 e que a RTP acompanhou. Disponível em:
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/homenagem-postuma-a-alfredo-da-silva/

 

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Fontes:
Fundação Mário Soares
http://casacomum.org/cc/diario_de_lisboa/

Ano 24º; nº7809 - 20 ago. 1944; 2ªedição

http://www.patrimoniocultural.gov.pt/static/data/patrimonio_imovel/classificacao_do_patrimonio/despachosdeaberturaearquivamento/2017/cufbarreiro/er3.pdf


http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7456/266/ulsd062806_td_inventario_252.pdf

http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7456/11/ulsd062806_td_vol1_5.pdf


https://www.cm-barreiro.pt/pages/621