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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (44): a última imagem do Carmen Huelva

 

escuna carmen huelva.JPG

Está muito diferente, mas certamente será fácil reconhecer aqui a avenida marginal ao rio Sado, em Alcácer do Sal, o seu contorno e, ao fundo, a conhecida Igreja de Santiago, que domina o casario. Estávamos em 1905 e a importante execução do aterro, que se tinha iniciado alguns anos antes, teria ficado menos documentada, não fosse o naufrágio do Carmen Huelva.

Esta terá sido, muito provavelmente, a última fotografia do navio espanhol que vemos em primeiro plano e que se havia deslocado a esta vila alentejana para carregar madeira que conduziria ao país vizinho. A viagem terminou a 12 de setembro desse mesmo ano.

É que o Carmen Huelva naufragou nesse dia, após embater noutra embarcação, num acidente que tirou a vida a alguns tripulantes desta escuna.

Foi devido a essa tragédia que a imagem, captada e enviada à Illustração Portuguesa por um Thiago Silva, de Alcácer do Sal, ganha honras de publicação na revista. Sem este triste acaso, provavelmente não se conheceria este instanatâneo, que espelha a obra que deu origem à avenida João Soares Branco – em homenagem ao homem que teve a iniciativa de a levar por diante – hoje local privilegiado de passeio de alcacerenses e visitantes.


Antes desta intervenção – que terá demorado quase vinte anos e foi possível devido à pedra trazida como lastro pelos navios que ali aportavam – a zona era uma praia infecta e insegura. As águas do Sado chegavam até às casas ali existentes que, face a tal panorama, estavam estrategicamente voltadas de “costas” para o rio, que na época fervilhava com um constante entra-e-sai de embarcações de diferentes envergaduras e atividades.

 

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Já antes aqui falei do como era a marginal ribeirinha de Alcácer do Sal no século XIX.

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Fontes
Hemeroteca digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portuguesa
nº99, 25 set. 1905

 

 

Heróis do acaso (4): o pescador sem medo

antonio dos santos da benta1.JPG

 

 

 

António dos Santos da Benta, homem do mar. Pobre, miserável mesmo. Viúvo com quatro pequenas mas famintas bocas para alimentar, sem iniciativa ou possibilidade de procurar novas paragens onde o trabalho árduo e a grande coragem que muitas vezes demonstrou proporcionassem mais do que a difícil sobrevivência da família. O pescador saiu fugazmente deste anonimato vivido por tantos da sua condição, porque se fez às águas para salvar 35 vidas, quando outros se quedaram na areia, aceitando a fatalidade de ver afundar mais um barco carregado de pescadores, já chorados pelos que à tragédia antecipada assistiam.

Foi no dia 18 de setembro de 1876, na Costa Nova do Prado, a duas léguas de Aveiro, cidade onde António tinha nascido 37 anos antes e sempre havia vivido. À vista da praia, sem leme operacional, a embarcação ficou à mercê da ondulação que arremessava, alagava e desesperava quem ali se via impotente.
Em terra, António da Benta pega na ponta de uma corda e, intrepidamente, enfrenta as vagas, arrisca a vida e não hesita em mergulhar para prender o gancho do cabo que levava à argola submersa na proa do barco em apuros, o que permitiu depois puxá-lo em segurança até à margem, por entre uma incrível borrasca e um clamor de gritos aflitos que o mar não calava.

Esta ação heroica mereceu uma medalha de ouro, como distinção pelo mérito, filantropia e generosidade, atribuída pelo rei D. Luís I a António da Benta que, na mesma época, recebeu diploma de sócio benemérito da Associação de Instrução Popular de Coimbra e uma recompensa de 25$000 reis, entregue pelo filantropo Simeão Pinto de Mesquita.

António da Benta de nada estava à espera, chegou a confessá-lo a um companheiro de faina, até porque não era novato em ações heroicas. Simplesmente estava-lhe no sangue não ficar de braços cruzados quando os seus atos podiam fazer a diferença, já chegava quando nada podia fazer, como quando perdeu a mulher e um dos filhos – o único menino – mercê da tuberculose que os minou.

Antes de ter salvo as 35 vidas na Costa Nova do Prado, já ele havia demonstrado temeridade e conhecimento suficientes para conduzir fora da barra de Aveiro um navio em condições extremamente difíceis. Menos de dois meses após a proeza relatada, salvou mais cinco tripulantes do Rosina, conseguindo levar-lhe um cabo vaivém que resgatou aquela embarcação em risco.

António da Benta vivia com grandes dificuldades, sem ajuda para criar a prole numerosa; entre os verões numa companhia de pesca de mar de 200 homens e os invernos pescando no rio.

Não sabemos se estes salvamentos e o consequente interesse público modificaram a vida deste homem e das suas filhas. Se a tornaram mais fácil e leve, menos sofrida, com mais futuro...porque nunca mais se ouviu falar de António dos Santos da Benta.

 

Fontes
Biblioteca Nacional Digital
www.purl.pt
Diário Illustrado
Ano 5º; nº1343 – 21 set. 1876

Ano 5º; nº1356 – 06 out. 1876

Ano 5º; nº1378 – 01 nov. 1876

Promessas e sinais não salvaram os órfãos da roda

 

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Mais de metade das milhares de crianças abandonadas à guarda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa traziam consigo um bilhete ou outro sinal para que se distinguissem das demais. De pouco valeram promessas e explicações, porque a esmagadora maioria morreu antes de qualquer tentativa de resgate.

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Durante o século XIX*, cerca de 160 mil crianças, maioritariamente recém-nascidos e bebés pequenos, foram abandonadas às portas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, cumprindo uma assombrosa cadência de cinco por dia, duas mil por ano. Metade destas, trazia consigo um bilhete, um colar ou pulseira, uma medalha pendurada num fio de retrós ou uma fita de cor particular, um amuleto..., enfim, um sinal que as distinguisse entre os demais órfãos a cargo da instituição.

Muitas carregavam consigo um bilhete com a promessa, tão firme quanto raramente cumprida, de um dia serem resgatadas. A maioria morreu antes de qualquer tentativa.

 


A “Roda dos Expostos” foi criada para salvar as crianças, que antes eram deixadas na rua, à mercê de todos os perigos. Mas não cumpriu o seu desígnio. Terá, antes, contribuído para facilitar a vida de famílias numerosas, preservar intacta a honra das mães, bem como o prestígio dos pais ilegítimos. Terão os sinais que acompanhavam os enjeitados atenuado a consciência de quem assim se descartava de filhos indesejados ou inconvenientes?

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Os bilhetes que chegaram até aos nossos dias mostram habitualmente uma escrita atabalhoada, espelho da fraca escolarização de quem os escreveu, mas também os há em papel caro e com caligrafia e ortografia cuidadas. Forneciam informações sobre as crianças, o nome pretendido ou com o qual haviam sido batizadas; a data do nascimento e até, estranhamente, em alguns casos, a identidade dos progenitores que, pelas mais variadas razões, nem sempre claras nas missivas, não os podiam manter.
Avançavam com a proveniência da família – a cidade de Lisboa, mas também toda a região, de Almada a Alcochete; de Cascais a Setúbal; da Moita a Oeiras... até alguns estrangeiros. Pediam que os bebés fossem tratados com cuidado, entregues a amas carinhosas e saudáveis.

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Algumas destas missivas prestavam informação sobre a realidade do País, os conflitos armados, como as invasões francesas ou a guerra civil entre liberais e absolutistas; outros tentavam justificar o abandono. A doença ou morte da mãe; a falta de leite; uma casa cheia de bocas para alimentar e sem recursos para a sobrevivência; a pobreza extrema; a ausência do pai... a bastardia. Por vezes, as razões não eram ditas, mas adivinhavam-se nas entrelinhas. Dramas pessoais e coletivos que nunca serão completamente entendidos.


Prometiam pagar as despesas uma vez fossem recuperar os filhos e asseguravam recompensas às amas zelosas.


Certos enjeitados traziam enxoval, mais ou menos composto, outras foram deixados sem qualquer proteção.


Sobretudo, os "recados" rogavam que os bebés não fossem trocados. E por isso se multiplicavam os sinais. Um número considerável assumindo formas curiosas, engenhosas, como senha e contra-senha infalível para quando se procedesse à tentativa de recuperar as crianças.


Até porque garantiam, vezes sem conta, que a passagem pela Santa Casa seria breve, que os menores seriam resgatados à orfandade, chegando a apontar uma data certa para cumprir. Daí o medo da troca.


Os registos provaram que não importou a riqueza dos cueiros; o valor do amuleto; a elegância da escrita; a devoção à santa cuja imagem servia de base ao bilhete; a complexidade do sinal criado para alegadamente não perder o rasto ao filho assim entregue; a esperança dada pela firmeza das juras de um reencontro futuro, tantas vezes repetidas.

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Em perto de uma século, com 160 mil crianças documentadas como entregues na roda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, apenas um quinto sobreviveu à orfandade e à passagem pela instituição, embora lhes estivesse destinado, muito provavelmente, um destino de miséria e vagabundagem. Com sorte, teriam engrossado a grande massa de criadagem que pululava pelas casas da capital ou, eventualmente, poderiam ter aprendido algum ofício lhes desse mais ferramentas para acudir à sobrevivência.
Só há notícia de 53 expostos terem regressado à companhia dos pais.

À margem

orfaos arquiivo municipal lisboa 3.jpgEm Portugal, a legislação sobre o abandono de crianças e o encargo pela sua criação passou por várias fases, apontando para uma responsabilização dos municípios para com os menores nestas condições nas suas áreas geográficas, o que muitas vezes era rejeitado por estas instituições, por falta de meios e/ou vocação para tal. Só no século XVIII são formalizadas as “Casas da Roda**” como entidades às quais cabia a recolha e assistência aos expostos em cada concelho, à exceção de Lisboa, onde a Santa Casa da Misericórdia era responsável. Genericamente, as crianças eram recebidas pela ama rodeira, limpas, alimentadas e os seus dados e características, bem como dos bens que as acompanhavam, eram registados ao pormenor. No dia seguinte, eram batizadas (se não houvesse informação de o haverem sido antes) e enviadas para amas externas, que as criavam até aos sete anos de idade. Isto teoricamente, porque as taxas de sobrevivência eram muitíssimo baixas. Todo o processo tinha inúmeras exceções e perversidades, desde mães que abandonavam os filhos e depois se iam oferecer como amas com o intuito de receber dinheiro para os criar; a municípios que patrocinavam a entrega de crianças em rodas de outros concelhos, de forma a evitar despesas...
Em Portugal não há conhecimento de tão inominável prática, mas em algumas regiões de Espanha e Itália, os expostos eram marcados com um ferro em brasa, recebendo assim uma marca indelével e medonha que os condicionaria para o resto da vida.
Mas isso é outra história...
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Os bilhetes que acompanham as crianças, tristes missivas do abandono, são todos diferentes, mas também apresentam muitas semelhanças entre si.
Seguem alguns exemplos.

sinal 311 de 1803 + texto.JPG

sinal 1208 de 1820.JPG

sinal 1320 de 1860.JPG

sinal 1365 de 1845+texto.JPG

sinal 1458 de 1872 +texto.JPG

 


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*O estudo consultado tem o horizonte temporal de 1790-1870 e analisou uma amostra de 7589 sinais, pertencentes a 7610 crianças.
**Na origem, as rodas eram um sistema existente nos conventos e que permitia a troca de objetos com o exterior sem que houvesse contacto com as religiosas. Este anonimato fez com que as rodas fossem usadas para abandonar crianças, assim entregues à caridade das ordens religiosas.

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As imagens de crianças são meramente ilustrativas, não correspondendo aos órfãos a cargo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

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Fontes

Ler sinais: os sinais dos expostos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (1790-1870), de Maria José da Cunha Porém Reis - Tese elaborada para a obtenção do grau de Doutor em História especialidade em Sociedades e Poderes – Programa Interuniversitário de Doutoramento em História - Universidade de Lisboa; ISCTE Instituto Universitário de Lisboa; Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Évora - 2016


Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000725

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001772

Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001538

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001808


José Artur Leitão Bárcia
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000043

Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000874

Pela imprensa (15): alguém tem um fósforo?

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Estes tempos de incerteza quanto à disponibilidade de combustíveis, nomeadamente de gasolina, talvez não sejam os melhores para experimentar esta que era a “última invenção norte-americana” em termos energéticos, corria o ano de 1913. O aparelho, que parece não ter tido muito sucesso, seria uma espécie de gerador primitivo, aparentemente portátil, que permitia facilmente que se obtivesse luz equivalente à emanada de 500 velas. Um estrondo!
Esta iluminação a gasolina pretenderia ser uma concorrente da iluminação a gás, que naqueles tempos era o mais comum em espaços públicos, e da energia elétrica, que começava então a apresentar-se como melhor opção sobre a anterior, embora essas modernisses se limitassem às grandes cidades e o resto da paisagem continuasse genericamente às escuras.
A tecnologia não deve ter vingado, apesar das vantagens aparentes: facilidade de utilização - apenas com um fósforo - e economia - consumia só um litro de gasolina em 24 horas. O nome, em inglês, também era sugestivo: Wizard, o que, para os (poucos) que entendessem a língua, remeteria para algo mágico e, portanto, fascinante.
O representante em poprtugal era a grande casa A Paraizo, Pereira e Cª, que ocupava os números 72 a 82 na avenida Sá da Bandeira, em Coimbra. Na época, a empresa procurava vendedores em todos os concelhos, como forma de divulgar e assim melhor vender a ideia e o produto. Dada a escassez de informação, não terá tido muita sorte nesses planos. 
Em Portugal, no início do século XX, não existia, nem sequer estava em projeto, uma rede nacional de fornecimento de energia elétrica. Paulatinamente, foram surgindo pequenas explorações, sobretudo termoelétricas, a nível local. Em 1926 são dados os primeiros passos na eletrificação do País, com a Lei dos Aproveitamentos Hidráulicos e subsequente criação da Administração Geral dos Serviços Hidráulicos e Elétricos. Uma década depois, é criada a Junta de Eletrificação Nacional, no âmbito do Ministério das Obras Públicas e Comunicações. Entre as metas a atingir com este organismo estava a execução de uma rede elétrica nacional, que começou a ser concretizada com base na construção de grandes barragens, que marcaram o rumo do país em termos de energia elétrica até aos anos 60.

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portugueza
Nº 319, 11 ago. 1913

Para uma análise do tema eletricidade
na revista da Associação dos Engenheiros Civis Portugueses (1870-1945), de Cláudio Amaral; CEM nº2 – Cultura Espaço e memória. Disponível em https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/10426.pdf

Instantâneos (43): não há festa como esta

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Abram alas! Toda a “melhor” Lisboa e arredores quer marcar presença. Afinal, nos primeiros anos do século XX, poucos são já os encontros sociais em que há verdadeiro brilho, distinção e luxo. E, embora as fortunas antigas olhem de soslaio para a riqueza aqui ostentada e as fortunas malbaratadas sejam devedoras ao dono da casa, todos ali vêm ao beija-mão do homem mais assumidamente rico daquele tempo: Henry Burnay (ao centro, na primeira imagem)

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Não há área em que não tenha negócios: tabaco, banca, transportes, minas, vinhos, hotelaria...e, portanto, não há sector que seja alheio ao seu poder e influência. Daí a importância de ser convidado.

 


Cavalheiros de casaca, copa alta.

Senhoras pavoneando vestidos elaborados, generosamente adornados com folhos, refegos vibrantes, plissados milimetricamente engomados e bordados delicados. Longos o suficiente para roçagar o chão, num frufru imparável.

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Na cabeça, um gracioso adorno onde desabrocham flores ou esvoaçam as mais vistosas plumas. Luvas, sempre! Pescoços aconchegados em rendas finas. Um laço aqui, um reluzente broche acolá, um camafeu de família que pende sobre o peito, arfante com tanta excitação e orgulhosamente empinado sobre a cintura meticulosamente ajustada.

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Meninas com alvos bordados, meninos com fatinho de marujo. Indumentárias pouco dadas a veleidades infantis e que terminavam o dia invariavelmente enxovalhadas. Mas que hão-se fazer as crianças assim em espaço quase aberto, com tanto adulto monótono por perto?

 

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Afinal, estamos numa garden party, que é como quem diz uma festa de jardim. Melhor: a festa de jardim!... porque nenhuma supera em estrondo, estadão e importância as oferecidas no Palácio Burnay, à Junqueira.

E que jardim! Com plantas exóticas e estatuaria vistosa. Não admira que o high life se acotovele para lá estar, porque cidadão que conta alguma coisa ali poderá ver, ser visto e comentado durante o resto da semana.


Ninguém sabe, é claro, que o “reinado” do “senhor milhão”, está prestes a terminar. Dois anos depois destas imagens, em 1909, o homem que sustentou as luxuosas aparências da Rainha Maria Pia, deixará o mundo dos vivos, assim como, logo no ano seguinte, a família real deixará o País, num exílio forçado pela implantação da República.

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Afinal, de que serve o dinheiro e a pompa assim comprada?

E o que diriam tão distintos convivas se soubessem que, meio século depois, aqueles mesmos corredores seriam percorridos por milhares de estudantes, que as veredas do mesmo jardim seriam local de namoro e gazeta às aulas e as salas seriam espaço de saber e convívio, até ao dia em que tudo ficou silencioso outra vez*.

 

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*O Palácio Burnay acolheu o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (Universidade Técnica de Lisboa) entre 1962 e 2001, altura em que este foi transferido para o Campus Universitário da Ajuda.

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aqui falei de como Henry Burnay salvou as aparências da Rainha Maria Pia.
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Fontes
Arquivo Nacional Torre do Tombo – Henry Burnay
https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4187671
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000947

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000949

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000951

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000953

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000954

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000955

Heróis do acaso (3): o engraxador pio

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Carlos Parreira Vicente, o Pio. No dia 21 de abril de 1965, um curto-circuito (versão oficial) ocorrido no sótão deu origem a um incêndio que destruiu por completo todo o recheio dos Paços do Concelho de Alcácer do Sal. Durante o sinistro, na azáfama de salvar os documentos e dinheiro à sua responsabilidade, o tesoureiro acabaria por ficar em risco de vida. Salvou-o a coragem de um jovem engraxador que todos conheciam como “o Pio”.


Foram minutos de grande aflição. Estando os trabalhadores já a salvo das chamas, alguns regressaram, tentando ainda recuperar bens no interior do edifício onde, à época, funcionava também o tribunal e a repartição de finanças. Mário José Gregório Gaspar Parra, o tesoureiro municipal, continuava no seu posto.

Pegava nos documentos à sua guarda e, por uma janela, arremessava-os para a via pública, para que não se perdesse informação essencial para o funcionamento do serviço. Nesta lufa-lufa, acaba por ficar refém das chamas num momento em que os bombeiros se encontravam a combate-las noutro lugar.


Enquanto a multidão, que entretanto se juntava na praça Pedro Nunes, gritava e gesticulava, mas nada fazia para o auxiliar, Carlos, o engraxador, encontra uma corda e atira-a ao tesoureiro. Mas a corda é velha e fraca e Mário Parra quer trazer com ele uma braçada de papéis e objetos que considera preciosos. É então que aquele a quem chamavam “o Pio” sobe pela corda levando outra presa nos dentes. Ata-a às grades da varanda e ajuda o funcionário em perigo a descer com os bens que queria resgatar.


Não fosse um zeloso inspetor da Direção-Geral da Administração Política e Civil (Ministério do Interior), que relatou este facto na inspeção administrativa sobre o incêndio, e jamais se saberia do ato heroico de Carlos Parreira Vicente.

Sobre este apenas se sabe que, passados poucos meses deste feito, iniciou o cumprimento do serviço militar num quartel de Beja e que pertencia a uma família muito numerosa, vivendo com imensas dificuldades e crescendo "à solta" pelas ruas de Alcácer, o que poderá explicar a capacidade de improviso e decisão. Seria, provavelmente, filho de Agostinho Coelho Vicente (guarda-redes do antigo Salatia Futebol Clube) e de Jacinta Custódia Parreira, batizado Carlos Pereira (e não Parreira) Vicente e nascido em novembro de 1944.

Sabe-se também que, enquanto o tesoureiro, o chefe da secretaria e outros funcionários foram homenageados pelo executivo municipal, sobre “o Pio” nada se disse.

Porque...nunca mais se ouviu falar deste herói do acaso...

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Nota: a imagem aqui presente é meramente indicativa da profissão, não da pessoa a que alude o texto.

aqui falei desse terrível incêndio que obrigou à reconstrução do edifício dos Paços do Concelho de Alcácer do Sal.

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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/08/01/04/001
Relatório de inspeção administrativa realizada à Câmara Municipal de Alcácer do Sal

 

A faina maior dos portugueses

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Mais de meio século antes do simbólico esforço de pesca mobilizado durante o Estado Novo e quando outros países já usavam arrastões a vapor, os portugueses ainda navegavam à vela e à força de braços, os mesmos que puxavam a linha carregada de bacalhaus.


Absolutamente só. O homem e o seu pequeno barco, vagueando na neblina pegajosa e traiçoeira, que confunde os sentidos e atemoriza a alma. Sozinho, mas com uma árdua tarefa pela frente que só termina quando o casco está cheio e consegue, à força de braços, regressar ao navio-mãe... para, no dia seguinte, tudo recomeçar. Muito antes do emblemático esforço de pesca do bacalhau lançado durante o Estado Novo, já os portugueses rumavam ao gélido Atlântico Norte, à vela, para passar seis meses de absoluto isolamento e desmedida fadiga.

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No início do século XX, a “faina maior” - como ficaria conhecida esta difícil labuta - empregava cerca de 800 pessoas em pouco mais de duas dezenas de embarcações. As companhas eram recrutadas em cidades e vilas costeiras como Figueira da Foz, Setúbal, Nazaré, Lisboa, Olhão, Ovar, Aveiro e também da ilha de São Miguel, nos Açores, onde os navios chegavam a fazer escala antes de aproarem à Terra Nova.


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Eram homens acostumados às agruras de uma vida dependente de ventos e marés, rijos de corpo e com coração curtido pelas perdas de amigos e familiares dedicados à mesma lida, mas que encontravam na pesca do bacalhau a expressão máxima desse sacrifício diário que lhes proporcionava o sustento.


Parte do pagamento – uma percentagem do produto final da incursão – ficava logo em Portugal, tal a euforia sentida ao receber o adiantamento que lhes permitia apetrecharem-se com o que sentiam vir a precisar: agasalhos e botas, mas também tabaco para aconchego e algumas futilidades quase infantis, de quem não está habituado a ter dinheiro na mão.

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Álcool também, ingerido ainda em terras lusas, para afogar a mágoa de uma viagem que se sabia ser longa e trabalhosa: só a deslocação até à zona povoada de bacalhau mas deserta de gente podia demorar quase um mês.

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Já ao Norte, entre largas centenas de navios de várias nacionalidades – por esta época, alguns já a vapor e com redes de arrasto - disputando os melhores locais como quem pugna pela sobrevivência, o bacalhoeiro era fundeado e começava a pesca solitária.


Em pequenos botes (dóris*), os homens eram lançados à água e deixados o dia inteiro à sua sorte, munidos de grossas linhas cravejadas de anzóis onde se espetavam os iscos para atrair o “fiel amigo”, assim atraiçoado e condenado à morte, sem dar luta**.

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No momento mais movimentado do dia, já no convés da embarcação-mãe, o bacalhau era esventrado e escalado por facas conhecedoras e rápidas, que separavam línguas e fígados de outras entranhas, num aparente caos de sangue, gordura e água salgada que deixava os enormes peixes preparados para serem devidamente secos e ainda mais salgados já em Portugal.

A pesca de cada dia era trabalhada e escorrida em separado, para que não se misturassem diferentes níveis de maturação.

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E havia uma incessante repetição quotidiana, mais aquele estranho nevoeiro, aquela luz baça, parda e doentia que se colava à pele e corróia o tino de gente habituada a dias de sol luminoso que só existem no seu País, tão longínquo quanto desejado naquelas horas.


Por vezes, uma tragédia vinha abalar esta estranha previsibilidade. Um dóri que se perde na bruma e não regressa; uma onda que varre um ou dois homens borda fora; um fatal incêndio a bordo – como aconteceu em 1906 com o patacho Santiago - uma tripulação inteira que se deixa atrasar e fica encurralada no outono bravio e gelado, que não os deixa retornar a casa senão na primavera seguinte.


Então, os homens não ficam só de abril a setembro sem qualquer notícia da família, mas um ano inteiro sem saber se os filhos conseguem medrar sem a sua presença ou o seu pão; se a mulher arranjou outro ou se vestiu de luto para interrogar o mar sobre o seu paradeiro...quase hibernados nesse transe inelutável.

 

 

 

À margem
As primeiras referências à pesca do bacalhau por portugueses remontam ao século XIV, na costa de Inglaterra. Com o “achamento” da Terra Nova, esta faina ganha outro fôlego, mas não resiste às longas distâncias, condições adversas e falta de pescado, que ditaram um interregno lusitano de cerca de 300 anos. O consumo desta saborosa proteína não se extinguiu durante este período, mas era alimentado por peixe importado. Em 1872, a Bensaúde & Cia e, em 1885, a Mariano & Irmão, iniciam a pesca continuada. A estas se juntam mais empresas, à medida que a legislação torna a atividade mais atrativa. Em 1913, eram 38 os bacalhoeiros portugueses em laboração, mas a I Grande Guerra e a escassez de peixe determinaram nova interrupção, que só seria quebrada nos anos 30.
Descobriram-se novos bancos de pescado na Gronelândia e compreendeu-se a importância social e política que o sector podia assumir. Assim, durante o Estado Novo, iniciou-se um grande programa de incremento da pesca do bacalhau, com navios maiores e mais bem apetrechados. No final dos anos 50, Portugal tinha finalmente uma frota de “22 arrastões”, assim como “22 navios de pesca à linha de aço, 17 navios de madeira e 17 lugres****”, só que o mundo “moderno” já tinha inventado outro tipo de embarcações, o que revolucionou a pesca do bacalhau e colocou Portugal novamente em desvantagem tecnológica, com um grande investimento que já era obsoleto. O Novos Mares foi o último bacalhoeiro de pesca à linha português. Regressou a Aveiro em agosto de 1974, sem terminar a campanha e com a tripulação em greve. Era uma nova era que se impunha.
Mas isso é outra história...

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* Doris são pequenos barcos de construção simples, fundo chato, facilmente empilháveis. Do inglês dory, que também é o nome de uma família de peixes.
** Dada a dimensão dos peixes, a pesca solitária à linha só é possível porque o bacalhau, uma vez iscado, não se debate, fica imóvel aguardando ser capturado ou solto.
*** Patacho é um navio à vela com dois mastros, tendo na proa uma vela redonda e na popa uma vela latina.
**** Embarcação de três mastros sem vergas.

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portugueza
nº65 – 20 mai. 1907
nº230 – 18 jul. 1910

Biblioteca Nacional Digital
www.purl.pt
Diário Illustrado
27º ano; nº 9:068 – 23 jun. 1898

Os arrastões do bacalhau 1909 – 1993, tese de mestrado em História Marítima, de Ricardo Lisboa da Graça Matias; Escola Naval Infante Dom Henrique; Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – 2016

https://translate.google.pt/translate?hl=pt-PT&sl=en&u=https://en.wikipedia.org/wiki/Dory_(fish)&prev=search
https://pt.wikipedia.org/wiki/Patacho
https://dicionario.priberam.org/lugre

Imagens

The fog warning, Winslow Homer (1885) – Museum if Fine Arts – Boston – Estados unidos da américa. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/The_Fog_Warning


Arquivo Municipal do Porto
http://gisaweb.cm-porto.pt/
Coleção de Postais Porto Desaparecido nº 65; edição Le temps perdu - D-PST/1660

Illustração portugueza