A apoteótica estreia da "divina" em Portugal
Nunca uma atriz tinha alcançado tal fama universal, mas Sarah Bernhardt era diferente. Todo o mundo conhecia o seu talento em palco, as excentricidades e os amores. Portugal recebeu-a em delírio, numa visita cheia de momentos caricatos e muita emoção, naquele longínquo abril de 1882.
Dizer que foi apoteótica é pouco se quisermos descrever a visita de estreia a Portugal daquela que foi a primeira atriz a alcançar uma aclamação verdadeiramente planetária.
Se fosse hoje, centenas de paparazzi teriam ido no seu encalço e as redes sociais viriam abaixo com likes e comentários, mas naquele tempo apenas multidões em delírio foram arrastadas pela "divina", que deslumbrou os públicos de Lisboa e Porto e levou milhares a acompanharem todos os seus percursos, inundando-a de aplausos e flores, tentando invadir o palco e os seus aposentos e não lhe regateando elogios.
Loura, com uma magreza lendária, quase transparente, etérea - a um momento gélida e arrebatadora - a sublime Sarah Bernhardt tornou inesquecível aquela longinqua Primavera de 1882.
Quando a maior atriz de teatro de todos os tempos chegou ao nosso País, tinha apenas 38 anos, mas a sua fama já tinha feito correr muita tinta nos jornais.
A forma como deslumbrava plateias a cada apresentação, com uma postura de tal espontaneidade que as suas mortes em palco provocavam momentos de verdadeiro assombro a quem assistia; a sua voz inconfundível, marcante e única; os olhos azuis penetrantes; as indumentárias de uma sofisticação nunca vista; a forma como inspirou grandes dramaturgos a escreverem textos especificamente para a sua interpretação; as suas excentricidades e os amantes, abundantes e diversificados. Numa época em que a promiscuidade nas mulheres, mesmo as artistas, era motivo de forte censura, em Sarah era aceite e constituía até mais um motivo de curiosidade e admiração.
Vindos de Madrid, a diva e a sua trupe, escaparam à abordagem surpresa que alguns jornalistas e fãs planearam à passagem do comboio pelo Entroncamento. Um atraso acabaria por resultar numa grande desilusão para os atrevidos e na receção atabalhoada quando finalmente se deu a chegada a Santa Apolónia. As frases em francês, tantas vezes ensaiadas pelos diversos dignitários que esperavam a artista, acabaram por sucumbir à emoção e soaram pífias. O momento acabaria por ser salvo pelo muito público que a recebeu em triunfo, nas ruas e à entrada do Bragança-Hotel.
Contrariamente ao que se poderia pensar, a atuação inaugural da grande atriz francesa em Portugal foi promovida pelo modesto empresário do Teatro do Gymnásio (na imagem), José Joaquim Pinto, e foi naquele espaço pouco habituado a grandes aparatos, mas devidamente engalanado para o efeito, que a companhia de Sarah Bernhardt se mostrou, nos dias 19, 20 e 21 de abril, com a muito emblemática Dama das Camélias, a comédia trágica Frou-Frou e Princesa George.
De repente, a despretensiosa sala da rua Nova da Trindade era o centro do universo. Ali convergiu "toute Lisbonne", numa "concorrência de espetadores verdadeiramente excecional", "brilhantíssima e luxuosa", com tudo o que era importante "na literatura, na arte, na aristocracia do dinheiro e do sangue, na representação e na política", a começar pela família real e pelo Governo.
O espetáculo agradou muitíssimo, tantos foram os aplausos e as chamadas à cena (um total de 15) após as récitas. O público – que havia pago quantias absolutamente fabulosas pelos mais esconsos lugares – parecia enlouquecido, arremessando flores e quase "engolindo" a atriz com o seu entusiasmo frenético.
Na Invicta, a receção foi ainda mais arrebatada e extasiada. Magotes de pessoas esperavam a vedeta em Campanhã e à porta do Grande Hotel do Porto. Dezenas de carruagens seguiam-na por onde quer que fosse e, no final das duas apresentações no Teatro do Príncipe Real (atual teatro Sá de Bandeira - na imagem), a casa quase sucumbiu à força das ovações.
Os jornais fizeram muito eco do êxito total e absoluto mas também de todos os pormenores fúteis da passagem daquela estrela de primeira grandeza por Portugal: os aposentos que ocupou; as recusas aos convites para finíssimos saraus organizados pela "primeira sociedade" desta nação à beira-mar plantada; a tourada em que foi homenageada, os objetos que lhe ofereceram e os que em sua honra foram publicitados e comercializados; a passagem por Coimbra, onde o comboio em que viajava foi invadido por dezenas de capas negras de estudantes, havendo até lugar a beija-mão... e outros tantos fait divers.
De resto, Sarah Bernhardt voltou a Portugal diversas vezes, sempre com muita atenção e entusiasmo do público e da imprensa.
Todos se rendiam ao seu talento, mesmo quando, em 1899, se notava com alguma maldade, que já ostentava os seus 58 anos "na fala...na gordura...e em outras miudezas", embora nunca se visse mulher a envelhecer tão devagarinho e com tamanha elegância.
À margem
O Teatro do Ginásio, onde Sarah Bernhardt se estreou, em 1882, teve origem num barracão destinado às artes circenses, que abriu as portas em 1845. Com o passar dos anos, o espaço sofreu muitas alterações e melhoramentos, tendo sido praticamente construído de novo ainda no século XIX. Embora diversos géneros teatrais tenham passado por aquele palco, a comédia seria, durante muito tempo, a imagem de marca da casa, frequentada por um público mais popular e "colorido" que as salas mais conceituadas de Lisboa. Mas, nem tudo foram risos: a madrugada do dia 6 de novembro de 1921 ficaria marcada da forma mais triste, já que um incêndio destruiu todo o edifício, que só reabriria, numa construção totalmente nova, em 1925, acolhendo, nesta nova vida, também sessões de cinema. Em 1952, o "Ginásio" encerrou para dar lugar a um espaço comercial.
Ao longo da história muitos terão sido os teatros desaparecidos ou muito danificados pela ação do fogo, resultado de mão criminosa ou acidente. Em 1964, o Teatro Nacional D. Maria II, no Rossio, em Lisboa, foi pasto das chamas que só deixaram as paredes exteriores. Mas realmente trágico foi o incêndio no Teatro Banquet, na cidade do Porto. No dia 20 de março de 1888, uma desajeitada troca de panos de fundo em contacto com uma gambiarra deu origem a um fogo onde pereceram 120 pessoas.
Mas isso é outra história...
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Fontes
Biblioteca Nacional de Portugal em linha
www.purl.pt
Diário Illustrado
11ºano; nº 3:207 – 15 abril 1882
11ºano; nº 3:208 – 16 abril 1882
11ºano; nº 3:210 – 18 abril 1882
11ºano; nº 3:211 – 19 abril 1882
11ºano; nº 3:212 –20 abril 1882
11ºano; nº 3:213 –21 abril 1882
11ºano; nº 3:214 – 22 abril 1882
11ºano; nº 3:215 – 23 abril 1882
11ºano; nº 3:216 – 24 abril 1882
11ºano; nº 3:217 – 25 abril 1882
11ºano; nº 3:218 – 26 abril 1882
28º ano; nº9:580 - 1 novembro 1899
Hemeroteca Digital de Lisboa
Jornal A Capital – Diário Republicano da noite
12º ano; nº 3921 – 7 nov. 1921
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-43982977
http://cvc.instituto-camoes.pt/teatro-em-portugal-espacos/teatro-do-ginasio-dp2.html#.XfujjstLHWM
https://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_Baquet
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/incendio-no-teatro-dona-maria-ii/
https://dicionario.priberam.org
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
PT/AMLSB/CMLSBAH-TMSL/16/000056
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001117
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/002679 (Alberto Carlos Lima – palco do Teatro Gimnásio)
Arquivo Municipal do Porto
Teatro do Príncipe Real
Foto Guedes
F-NV/FG-M/11/187
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sarah_Bernhardt,_Froufrou,_3695,_Photo_W._%26_D._Downey.jpg
W. & D. Downey
https://www.pinterest.pt