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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (53): um barquinho, ligeiro andava...*

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Que lindas crianças loiras, com as cabeças cheias de caracolinhos, brincando como se navegassem à vela! Na popa está hasteada a bandeira que ostenta o escudo português do tempo da monarquia, o que nos leva a pensar que estes meninos vestidos de marujo devem ser importantes. Abastados já tínhamos percebido que seriam, porque raras crianças teriam, em épocas recuadas, possibilidade de ter à sua disposição tal aparato aqui retido para a posteridade.
Pois, nesta imagem, captada em 1868, estão os dois herdeiros da coroa portuguesa, o príncipe real D. Carlos e o infante D. Afonso, respetivamente com cinco e com três anos de idade. D. Carlos, o nosso penúltimo rei, olha fixamente a câmara, agarrado ao mastro, enquanto D. Afonso parece pouco à vontade.
O tempo viria a mostrar que, enquanto o primeiro devotou parte da sua vida ao mar, possuindo várias embarcações, de meros botes a navios de investigação; o segundo viria a sentir-se mais à vontade ao volante de um automóvel.
A imagem foi captada no Palácio da Ajuda, residência da família real durante este período e berço de ambos.

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D. Carlos (ao lado, remando na sua baleeira, em Cascais) foi rei durante 18 tumultuosos anos. Era um navegador entusiasta e competente; investigador pioneiro na área da oceanografia – fundou o Aquário Vasco da Gama - atirador exímio, diplomata eficaz, culto e artista ...mas não conseguiu governar com a competência exigida por tempos tão conturbados e exigentes dos pontos de vista económico e político.

O seu reinado terminou da pior maneira, ao ser assassinado em 1 de fevereiro de 1908.

 

 

 

D. Afonso seguiu a vida destinada aos que não são herdeiros diretos do trono. Por inerência, Duque do Porto, Condestável de Portugal, governador e vice-rei (o último) da Índia, seguiu a carreira militar, na arma de artilharia. Barcos, nem vê-los!

 

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*O barquinho
Um barquinho ligeiro andava,
ligeirinho andava no mar,
A nuvem passou,
O mar se agitou

E o vento a soprar
E os barcos a virar
Vem a onda baloiça o barquinho
e o barquinho faz chape no mar 
Faz chape no mar!

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Já aqui antes falei dos atributos de D. Carlos:
Instantâneos (48): à martelada
Instantâneos (35): o ténis real

 

Todas as peripécias da visita de Eduardo VII a Portugal

Quando o príncipe português casou


E de D. Afonso

(29) Instantâneos: a visita marítima de D. Afonso e suas borboletas

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Fontes

Museu de Marinha – Arquivo
https://museudigital.marinha.pt/pesquisa

FundoHenrique Maufroy de Seixas
PT/MM/CF/056-002/08598
PT/MM/CF/056-002/08484

http://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/carlos1.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_de_Bragança,_Duque_do_Porto


http://cantosdaterra.net/ct/site/letras/letra.asp?id=1108

Quiseram domesticar o Carnaval

desfile de carnaval.JPG

 

Proibiram-se as máscaras e, quando estas voltaram, eliminaram-se os ovos, os baldes de água, os cartuchos de pó e as saraivadas de grão e tremoço... Por cada limitação, surgiram momentos de rebelião, nas ruas e nos salões; entre o povo e os fidalgos, cometendo-se excessos a que até os reis não conseguiram resistir.

 

mascarados.JPG

Tempos houve em que as máscaras eram proibidas. Tentava-se, assim, evitar assaltos, assassinatos e todo o tipo de tropelias graves cometidas na época do Carnaval por indivíduos com as caras tapadas, nas ruelas e becos dos bairros mais populares de Lisboa. Muitos e em diversas épocas, foram os governantes que tentaram domesticar o Entrudo, mas não menos foram os momentos de rebeldia. E não se pense que estes desobedientes pululavam apenas entre as classes mais baixas, porque a história dá conta dos devaneios do rei D. Miguel, de festas à margem da lei organizadas pela alta nobreza e até de autênticas batalhas de comida em pleno teatro de São Carlos. Pelas ruas andavam os xexés, teimosamente lembrando tempos de maior abertura e liberdade, quando o povo não se contentava com desfiles ordeiros e bailes tão concorridos quanto sensaborões, que se tornaram a norma a partir do início do século XX.

bailes do Carnaval romantico.JPG

 

O veto ao uso de máscaras foi tão interiorizado que levou ao ridículo de toda a corte nacional comparecer vestida de gala com uma máscara presa ao ombro com uma fita. Foi a interpretação possível de um baile de máscaras, esse que festejou a negociação do casamento entre o nosso príncipe D. João e a princesa Carlota Joaquina e que muito deve ter surpreendido o embaixador espanhol, que o organizou.

Cerca de quatro décadas depois realiza-se o primeiro baile típico de Carnaval, em Lisboa. Foi em 1823, no Pateo do Patriarca (Bairro Alto) e contrariava a interdição com mais de um século, aliando danças e máscaras.

No ano seguinte, o Entrudo teve uma conotação funesta, com a morte misteriosa do galante marquês de Loulé, convidado pela família real a passar a época em Salvaterra. Terá sido assassinado enquanto esperava pelo baile de máscaras.

 

uma elegante mascarada.JPG

 

“Todo o prestigio do Carnaval romântico” residia “na máscara, que intriga, e na dança, que excita”, mas parecia que, de cada vez que as caras tapadas se impunham, davam aso ao crime ou ao escândalo. Quem imaginaria que três ou quatro dedos de veludo e um nariz de cera pudessem ter o condão de tanto modificar comportamentos e suscitar a ira das autoridades?

Apesar da má fama, no entanto, as máscaras voltaram a tornara-se habituais. Andavam pelas ruas e nos salões, como no sarau que Francisco Lodi organizou no Teatro de São Carlos, em 1836, conseguindo passar incólume à tentação da intendência de polícia, que queria impedir os mascarados. Este evento abriu-lhes as portas de tão exclusiva sala, dando o mote para que o mesmo se fizesse um pouco por todo o lado, chegando aos festejos mais elaborados e feéricos organizados pelo Conde de Farrobo.

O forrobodó atingiu o seu auge precisamente no tumultuoso reinado de D. Miguel, que não desperdiçava uma oportunidade de cavalgar sem destino, bailes adentro, com a sua trupe, semeando a real confusão e arrancando suspiros das damas, que adoravam o rei marialva.

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Ora, com a mudança do regime, mudaram também as sensibilidades. Os ventos liberais voltaram a tolher o Carnaval, mas criaram o Xexé, essa figura que durante muito tempo foi o símbolo do Carnaval lisboeta, mas também do ridículo dos poderes políticos anteriores (ver À margem).

Até que se quis inovar e, achando o Xexé pouco digno dos novos tempos, no dealbar do século XX, toda a sua genuinidade foi substituída por figuras copiadas dos carnavais de Veneza ou Paris, com vestimentas iguais aos guarda-roupas dos teatros. O Carnaval arruaceiro, irreverente e pitoresco foi suplantado por desfiles organizados, ordeiros, bonitos, mas sem ponta de divertimento. O povo passou de ator a espectador.

carnaval a partir do inicio do seculo XX.JPG

 

Proibiram-se os cartuchos de pó, as seringas e bisnagas, os tremoços e afins. Em substituição organizara,-se batalhas de flores...


Mas, tanta proibição gera invariavelmente desobediências, Como aquele dia de 1903 em que a mais alta aristocracia, em protesto contra a repressão imposta pelo Governo Civil, inaugurou uma verdadeira “guerra do bufete” em pleno São Carlos, atirando croquetes de galinha de camarote para camarote e encharcando-se com água gasosa esguichada de finos sifões, enquanto a família real assistia ao inusitado tumulto. E quando se acabaram os croquetes, foram as fatias de queijo Gruyere e pão que voaram de nobres mãos, fazendo pontaria aos decotes das senhoras.

baile de mascaras.JPG

 


De pouco adiantou. O Carnaval civilizado tinha vindo para ficar e, ainda hoje, já com uma incontornável e pouco compreensível influência brasileira, pouco mais se mostra que desfiles pacatos, com poucas exceções de insubordinação na sátira social e política que pontua os escassos festejos verdadeiramente portugueses.

 

À margem...

o xexe.JPG

Saía à rua com a sua casaca verde, cabeleira de estopa com laçarote no rabicho, bicorne napoleónico, luneta, bengala ou bastão ameaçador, sapatos de fivela. O Xexé ou “salsa”, pela cor da indumentária, era “a síntese ridícula, comicamente vingativa da época do intendente, da inquisição e da forca”, mas também dos peraltas “amigos” de Pombal e dos excessos dos miguelistas. Era uma personagem que afrontava todos os que estavam ligados ao “tempo da outra senhora” e não se coibia de criticar os exageros do regime em vigor. Desfilava ousado por entre a sua corte de velhotas de capote e lenço na cabeça, enfrentando e instigando saraivadas de tremoços, nuvens de pó e esguichos de água de origem duvidosa, acolhidos com gargalhadas, gritos e urros. Era o louco escape de um ano inteiro de trabalho e bom comportamento, Era o resumo estapafúrdio do passado cuja memória foi passada de boca em boca. Como os desvarios atribuídos a D. Miguel, que adorava diversões à sua maneira e, conta-se, “largava toiros às saloias de Queluz ou metia-os nos corredores do Paço da Bemposta” para estupefação da corte. 
Mas isso é outra história...

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Fontes
Belle Époque – A Lisboa romântica do séc. XIX e início do século XX; de Paula Gomes Magalhães; Esfera dos Livros – 2014

Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portugu

2º ano, nº70 – 06 mar. 1905

II série, nº51 – 11 fev. 1907


Biblioteca Nacional de Portugal em linha
www.purl.pt
Diário Illustrado
31ºano; nº10.395 – 11 fev. 1903
31ºano; nº10.396 – 13 fev. 1903
32ºano; nº10.768 – 22 fev. 1903
32ºano; nº10.760 – 23 fev. 1903

Sua Magestade Imperial o Senhor D. Miguel I, Rei de Portugal e dos Algarves..., litografia de Pedro António José dos Santos
CDU 929.7Miguel I, Rei de Portugal(084.1)

Correio Nacional – Jornal da tarde
XI ano; nº 2.989 – 22 fev, 1903

 

O Caramelo tinha vocação para moedeiro

 

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O Pera de Satanás passou os ensinamentos ao Caramelo, que os partilhou com o Batata. Em conjunto, produziram muitos contos de reis, que lhes permitiram uma vida folgada...até serem apanhados.

A maioria trabalha para ganhar a vida. Depois, há os que possuem arte e saber para fabricar o seu próprio dinheiro. José Maria da Silva pertencia a essa categoria extraordinária. Parecia um cavalheiro, bem falante e melhor vestido, mas essa apresentação era tão falsa como as moedas de 500 reis que fabricava com as colheres que a amante comprava numa loja da praça da Figueira. Enganou meia Lisboa e também parte do Alentejo e nunca desistiu, mesmo tendo sido apanhado e preso diversas vezes. Nos meandros do crime dos finais do século XIX, ficou conhecido como "o Caramelo".

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José Maria da Silva, filho de pais incógnitos, alentejano de Elvas que a ambição levou para a grande cidade, tinha profissão e até estabelecimento de venda de vassouras montado lá para os lados da rua dos Remédios, em Alfama (na imagem). Mas, digamos, que uma ocupação tão simples e modesta não combinava com a alta opinião que este indivíduo tinha de si próprio. Terá sido o celebrado Pera de Satanás (ver À margem, nesta página) a dar-lhe as dicas para o hobby que iria abraçar até ao resto da vida, fazendo jus à vocação que, sem dúvida, era parte integrante da sua complexa personalidade.

Decidiu ser moedeiro!

O estratagema era o seguinte: a namorada comprava dúzias de colheres que dizia serem para revenda, justificando a assiduidade das encomendas. A liga de estanho Britannia, em que os talheres tinham sido concebidos era a matéria-prima ideal para o Caramelo derreter e transformar em dinheiro, pois assemelhava-se na cor, no toque e no peso ao "vil metal". Para tal, usava moldes de gesso, que substituía após algumas utilizações, para não fazer perigar a qualidade do resultado final.

Quando terminava o "trabalho", que desenvolvia no maior secretismo, nem a própria companheira deixando ver como procedia, destruía todos os utensílios. Terá sido Alfredo Alves Mendes, o célebre falsário Pera de Satanás em pessoa que assim o instruiu no "ofício".

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As moedas, de 500 reis eram depois postas a circular misturadas com outras legítimas, tanto em Lisboa, como em outras cidades, exemplos de Évora ou Elvas, para onde José Maria da Silva teve que alargar o seu raio de ação. É que o seu porte "ajanotado", a facilidade e até correção na forma de se expressar, pouco comuns num indivíduo que não sabia ler nem escrever, já não enganavam ninguém na Capital do Reino.

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É claro que, mesmo com o esquema bem montado, a vontade que o Caramelo tinha de dar nas vistas, nomeadamente comprando produtos chiques e pouco adequados à bolsa de um mero vassoureiro, seria o seu fim. Isso, as provas que, apesar de todos os cuidados, deixou à mercê das buscas policiais na sua loja e em casa e também as informações que a amante deixou escorregar quando "apertada" pelas autoridades.

Essa nefasta conjugação de fatores levou-o à cadeia diversas vezes, pelo menos a partir do início da década de 80 do século XIX, passando longas temporadas no Limoeiro, alternadas com novas incursões na arte de produzir e passar dinheiro, que acabavam por fecha-lo novamente na "gaiola" - na imagem a prisão do Limoeiro no final do século XIX - onde, tal como o Pera de Satanás, serviria de inspiração e formação a outros aspirantes a falsificadores.

 

À margem

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Já no início do século XX, o Caramelo terá passado os seus ensinamentos a outro promissor aldrabão. O João Batata visitou-o na cadeia e, com a sua quadrilha, usou o mesmo esquema para levar uma vida desafogada, já a República tinha sido implantada neste nosso pacato País. A fábrica, que funcionava na rua das Atafonas (atual Martim Moniz), chegou a produzir 20 mil reis por dia e até a exportar para Espanha as suas reluzentes produções monetárias. Tal como o Caramelo e o João Batata, muitos falsários foram buscar os seus conhecimentos aos verdadeiros mestres. O Pera de Satanás, nascido Alfredo Alves Mendes, encaixa neste perfil, digamos, inspirador. Funileiro de profissão, fabricou bilhetes de lotaria e notas, criou receitas e métodos próprios para produzir moedas, mas foram os selos que falsificou, com grande prejuízo para o serviço de correios português, que o fizeram ascender à ribalta dos criminosos. As estampilhas que ficaram para sempre conhecidas pela alcunha "Pera de Satanás" ostentavam o perfil de D. Luís. Em 1880 começou a circular uma nova série que, por questões de custos, era apenas impressa e não com relevo, como até então se usava. Este facto e a coincidência de Alfredo Alves Mendes ter partilhado cela com um funcionário da Casa da Moeda foram meio caminho andado para que se iniciassem as contrafações, fazendo uso de clichés autênticos roubados pelo mais recente amigo. Os selos, produzidos em grandes quantidades (na imagem), eram depois introduzidos no mercado, vendidos abaixo do preço facial a empresas com grande expedição de correio. O que tramou os aldrabões foi o picotado: feito com uma máquina de costura, não tinha a regularidade ou a perfeição do original. O Caramelo, o Batata, o Pera de Satanás...todos foram presos diversas vezes e voltaram sempre à sua vocação anterior, mas o mais extraordinário caso de reincidência talvez tenha sido o dos irmãos Silveira que, condenados ao degredo em África pelo crime de produção de notas, montaram naquele continente uma verdadeira fábrica, cuja fama chegou a Lisboa...
Mas isso é outra história...


Fontes
Infâmia e Fama – O mistério dos primeiros retratos judiciários em Portugal (1869-1895), de Leonor Sá; Edições 70, maio 1918.

Biblioteca Nacional de Portugal em linha
www.purl.pt
Diário Illustrado
Ano 5º, nº1362 – 13 set. 1876
Ano 16º; nº4.960 – 12 fev. 1887
Ano 20º; nº6.683 – 7 nov. 1891


Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
A Illustração Portugueza – Semanário – Revista Litterária e Artística
4º ano; nº13 – 10 out. 1887

O Occidente
Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro
6º ano; Vol. VI; nº164 – 11 jul. 1883

Imagens

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:José_Maria_da_Silva,_o_Caramelo_(c._1882).png

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt
Machado & Souza
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/002181

Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000907

http://numiscor.solucoesnet.com

http://leiloes.cfportugal.pt

As mulheres de D. Manuel II

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Em Portugal ninguém pareceu ter dado por nada. Os jornais falavam de caçadas, visitas oficiais, eventos de gala e princesas pretendentes ao lugar de rainha de Portugal, mas em Paris El rei D. Manuel II só tinha olhos para a sua escandalosa mais recente amiga. O jovem monarca tinha-se apaixonado logo na primeira viagem ao estrangeiro e a culpa era da Gaby.

 

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Assim que D. Manuel II assumiu o trono, com uns tenros 18 aninhos, reuniram-se todos os alcoviteiros do reino para lhe arranjar uma mulher condicente com sua idade e condição. Nada menos que uma nobre donzela de tiara na cabeça e proveniente de uma qualquer casa real europeia. Mas o desafio era espinhoso: Portugal não estava em condições de regatear condições; o ambiente tumultuoso não era propício a histórias encantadas e o rei, para além de juventude, beleza e culta inteligência, pouco mais tinha para oferecer.
Mesmo assim, não faltaram putativas noivas a que os jornais lusos deram destaque nos escassos dois anos e meio que durou o reinado do nosso último monarca. No estrangeiro, no entanto, eram os encontros com a brilhante estrela dos palcos que dominavam as parangonas.

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Por cá, D. Manuel foi apontado como prometido a Vitória Luísa da Prússia (ao lado).

A única filha de Guilherme II da Alemanha, no entanto, sonhava com mais altos voos e acabaria por casar, em 1913, com Ernesto Augusto de Brunsvique, líder de uma casa real inimiga, o que, para além de romântico, acabaria por ser a aliança política mais conveniente. Protagonizaram uma história ao estilo de Romeu e Julieta, mas com final feliz.

 


A louríssima e gélida Alexandra de Fife (na imagem em baixo acompanhada pela irmã Maud), neta dos reis ingleses, foi outra noiva que quiseram arranjar a D. Manuel, mas o compromisso acabaria por ser rapidamente desmentido. Casaria, dois anos depois, com Artur de Connaught, curiosamente irmão de mais uma alegada pretendente a cara-metade do nosso rei.

Esta outra menina casadoira era Vitória Patrícia. Nascida no palácio de Buckingam, era também irmã da então princesa consorte da Suécia e chegou a ser apresentada na imprensa como futura rainha de Portugal.

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O facto de ter estado em Lisboa quatro anos antes dava credibilidade ao enredo, que não passou disso mesmo. É que, tal como outros elementos da sua família, Vitória Patrícia (em baixo) provaria não ter interesse em ser alteza, em Inglaterra, Portugal ou qualquer outro país, porque casou com um plebeu e abdicou de todos esses pesados títulos a que, por berço, tinha direito.

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O que os jornais portugueses pouco falavam, mas toda a gente bem informada comentava e a imprensa estrangeira alardeava, era que o reizinho recentemente aclamado demonstrava mais curiosidade por artistas do que por cabeças coroadas ou assuntos de Estado.


No final de 1909, na sua primeira viagem ao estrangeiro – com passagem por Espanha, Inglaterra e França - conheceu a bela e espampanante Gaby Deslys e não mais a largou.

 

 


Para os inimigos da monarquia, que tinham primeiro tentado fazer passar a imagem de um D. Manuel frouxo, política e sexualmente, o romance com a vedeta, conhecida pela beleza, as atuações atrevidas e os chapéus exuberantes, era o pretexto ideal para apontar o jovem rei como um playboy, que gasta o seu dinheiro e o do País em presentes para a sua amante dominadora e suspeita de ser uma perigosa espia a mando de quem queria o mal de Portugal.

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Efetivamente, a atriz francesa era a personagem perfeita para uma história que se queria sórdida e sumarenta. Tinha mais oito anos que o monarca, eram-lhe conhecidas diversas e aventuras e fazia questão de se apresentar sempre carregada de aparatosas joias, que rapidamente se disse terem sido oferecidas pelo real namorado.

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Este, acossado pelos opositores políticos, gerindo dificilmente as quedas dos "seus" governos – seis durante o reinado - criticado até pela própria mãe – a quem tinha chegado um libertino na família: o seu próprio marido - viu nos braços da artista o alívio celestial para tanto stress.


Não perdia qualquer oportunidade de a visitar e chegou a recebê-la em Portugal. Gaby terá acompanhado D. Manuel num retiro terapêutico que este fez no Buçaco e as más línguas dizem mesmo que chegou a pernoitar diversas vezes no Paço das Necessidades, residência oficial do soberano.


Apesar do escândalo, que contribuiu para o sucesso mundial da "favorita" do rei e para a ruína deste, a verdade é que Gaby Deslys não precisava dos favores de um monarca pelintra como D. Manuel, pois os seus rendimentos seriam bem mais folgados do que os do homem com quem partilhou o leito entre o final de 1909 e meados de 1911.

 

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Quando o rei já tinha sido derrubado e dos Estados Unidos surgiram contratos milionários para as suas apresentações, a diva não hesitou, virando as costas à Europa e ao seu amante, destronado e falido.

Mesmo no exílio e dando algum alento aos que ainda acreditavam no regresso da monarquia, D. Manuel acabaria por casar com uma "quase" princesa. Augusta Vitória de Hohenzollern-Sigmaringen não chegaria efetivamente a ser rainha, como o marido não voltaria a governar.

 

 

 

 

 

 

 

 


À margem

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O casamento de D. Manuel II com Augusta Vitória de Hohenzollern-Sigmaringen, celebrado em setembro de 1913, foi tudo menos um conto de fadas,

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Logo na lua-de-mel a noiva adoeceu e teve de receber tratamento hospitalar em Munique. O secretismo em torno da doença – que não terá passado de uma gripe – gerou logo o boato que se teria arrependido do enlace e queria abandonar o marido. No ano seguinte, a pressão sobre o casal intensificou-se com o eclodir da I Grande Guerra. Como seria de esperar, Augusta Vitória, uma germânica Hohenzollem de origem, era a favor das pretensões alemãs, enquanto que Manuel, pelas suas fortes ligações familiares e afetivas a Inglaterra e pela posição de Portugal no conflito, estava claramente do lado dos aliados, tendo até oferecido os seus préstimos aos exércitos deste eixo. Imagine-se como terá sido o ambiente caseiro durante os quatro anos de guerra...Anos depois, outro revés: a casa de Fulwell Park, onde viviam, foi assaltada, tendo os gatunos levado consigo pinturas, antiguidades, pratas e joias, no valor de milhares de dólares.
Apesar da vida relativamente confortável que, no conjunto dos anos, terão levado, confraternizando com a sociedade local e um grupo restrito de amigos fiéis, duas nuvens pairaram sempre sobre o casal real: a frequente falta de liquidez financeira que o rei deposto teve que enfrentar e, mais grave que tudo, o maior infortúnio nas uniões destinadas a assegurar dinastias: nunca tiveram filhos.

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Quanto a Gaby, a estrela do cinema, dos palcos e dos cabarés, registaria um estrondoso sucesso por terras americanas, nomeadamente com o "mérito" de introduzir o streaptease na Broadway. No entanto, também não viveu feliz para sempre: morreu ainda mais jovem que D. Manuel. Complicações derivadas da Gripe Espanhola mataram-na há 100 anos (em 11 de fevereiro de 1920).

 

 


Mas isso é outra história...

 

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

Illustração Portugueza
II série; nº197 – 29 nov. 1909
II série; nº198 – 6 dez. 1909
II série; nº199 – 13 dez. 1909
II série; nº223 – 13 jun. 1910
II série; nº312 – 12 dez. 1912
II série; nº731 – 23 fev. 1920

Biblioteca de Portugal em linha
www.purl.pt

Diário Illustrado
39º ano; nº13.020 – 30 nov. 1909

39º ano; nº13.022 – 2 dez. 1909
39º ano; nº13.025 – 5 dez. 1909


The Downfall of a King: Dom Manuel II of Portugal, de Russell Earl Benton;
Louisiana State University and Agricultural & Mechanical College, disponível em https://digitalcommons.lsu.edu/gradschool_disstheses/2818

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Gaby_Deslys

https://pt.wikipedia.org/wiki/Vitória_Luísa_da_Prússia

https://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandra,_2.ª_Duquesa_de_Fife

https://pt.wikipedia.org/wiki/Patrícia_de_Connaught

https://pt.wikipedia.org/wiki/Augusta_Vitória_de_Hohenzollern-Sigmaringen

https://bucaco.blogs.sapo.pt/9852.html

https://www.imdb.com/name/nm0221352/bio?ref_=nm_ov_bio_sm

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt

José Artur Leitão Barcia
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/001253

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PT/AMLSB/POR/053916
PT/AMLSB/BEK/001/000136

Pela imprensa (17): vício sem malefício, nem vício é

 

tabaco sem nicotina ilustracao portug marco 1905.J

 


Café sem cafeína; leite sem lactose, nem gordura; bolachas sem glúten; tabaco sem nicotina...Intolerâncias à parte, esta mania de manobrar os produtos de forma a que possam ser consumidos já limpos dos seus componentes inimigos da saúde parece algo dos tempos modernos, mas vem de longe. É velha esta vontade de querer pecar sem culpa ou castigo. Tabaco sem nicotina soa a grande novidade, mas há muito que se apregoava ter descoberto tal milagre.
Este anúncio de 1905 divulgava isso mesmo. O depósito de J.J. Marques Júnior, na rua da Prata, 35,* vendia estes "misteriosos" tabacos que, pela imagem do senhor meio esvoaçante, poderíamos pensar que, não contendo nicotina, conteriam, quiçá, substâncias mais dadas a devaneios, "ervinhas" para rir; pozinhos destinados a inebriar os sentidos e provocar essa sensação de leveza que o sujeito do anúncio nos apresenta.
Efetivamente, não sei que tipo de tabacos disponibilizava este estabelecimento, mas prometiam, pelo menos, deixar o consumidor com ar de ter sido apanhado num grande vendaval...ou numa grande pândega.
O tabaco propriamente dito entrou na Europa pela mão dos espanhóis. Esta planta originária do continente americano foi rapidamente difundida porque se pensava ter benefícios terapêuticos. As folhas podiam ser mascadas, inaladas (depois de moídas) e fumadas, em cachimbo ou enroladas – parece que esta última modalidade, que se generalizou a partir da I Grande Guerra, foi "inventada" pelos marinheiros dos navios de transporte de tabaco, que começaram por enrolar em papel os fragmentos que se libertavam dos fardos.
Só em meados do século XX surgiram as primeiras investigações científicas que relacionavam o tabaco com determinadas doenças, como o cancro no pulmão.

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Como muito do que apazigua as nossas ansiedades e stresses – do café, ao açúcar – este é um negócio altamente lucrativo e isso explica que, a par de campanhas para que se abandone o vício, tão nocivo quanto dispendioso, se somem experiências para tornar o tabaco menos mau para a saúde, dos cigarros sem fumo, aos light, das modificações genéticas na planta, ao tabaco aquecido...
Nada de espantar: já nos anos 60 se anunciava ter encontrado a resposta para fumar sem perigo. A descoberta passava por um enxerto da planta do tabaco em tomateiros, que produziam folhas sem nicotina...Não pegou, mas percebe-se: um vício sem malefício, nem pode ser considerado um vício. Perde o encanto. O melhor mesmo é deixar o tabaco para quem quer morrer cedo e dedicar-se a outras atividades, como...roer as unhas???

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*Situava-se no quarteirão em frente à atual 2ª Esquadra da Baixa Pombalina da PSP.

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portugueza
2º ano; nº71 – 13 mar. 1905

http://memoria.bn.br/DocReader
Jornal A noite
Ano LII, edição nº17637 - 26 jun 1964

 

http://www.iasaude.pt/ucad/index.php/substancias-psicoactivas/tabaco

https://pt.wikipedia.org/wiki/Tabaco

http://lounge.obviousmag.org/entre_outras_coisas/2012/12/o-glamour-nas-antigas-propagandas-de-cigarro.html

https://www.google.com/maps

Instantâneos (52): a desolação feita obra de arte

Adriano_Sousa_Lopes_-_Rendicao_nas_Trincheiras.jpg

 

Quanto desânimo e sacrifício. Homens curvados sob o peso da derrota e dos despojos das suas vidas. Manchas difusas no meio da neve suja de lama e desesperança. Enregelados, exaustos, famintos, arrastando-se, mas caminhando sempre, rumo à redenção. É difícil, para quem sabe o que foi a participação portuguesa na I Grande Guerra, não ser invadido pela emoção vendo esta pintura monumental de Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944) – a Rendição - que domina uma das salas do Museu Militar, em Lisboa. Os soldados são enormes e, no entanto, parecem frágeis, indefesos. Quase temos vontade de os ajudar, de os abraçar e chorar com eles. Não há ali qualquer glória, antes uma imensa solidão.

Sousa Lopes Museu Militar Lisboa.jpg

 

 

Arrebatados das suas aldeias, onde viviam uma existência pacata e sã, foram arremessados contra a trágica realidade de matar ou morrer. Têm frio e fome, sentem saudades de casa, rezam para que o pesadelo termine e, apesar de tudo, lutam, se não por Portugal, pelo menos pela suas almas. Nunca mais serão os mesmos.

Sousa Lopes_ destruicao de um obus.GIF

 


Muitos não regressarão, como o soldado José Alves, artilheiro da 5ª bateria de Le Touret, retratado momentos antes de ser abatido. Tinha ficado para trás, desesperadamente tentando destruir a sua arma com uma tosca picareta, para que não fosse usada pelo inimigo (na imagem 3).

 

 

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Adriano de Sousa Lopes partilhou as trincheiras da Flandres com o Corpo Expedicionário Português. No nosso País, foi o único a fazê-lo e por sua iniciativa. É que o Estado lusitano, ao contrário dos outros participantes no conflito, que enviaram vários artistas registar o esforço de guerra, não tinha intenção de mandatar quem quer que fosse para fazer esse trabalho.

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Talvez receasse o resultado, porque conhecia seguramente o gigantesco esforço exigido aos homens na frente de batalha, pela falta de meios e a desadequação dos existentes, materiais e humanos.
O artista consegue impor a sua presença, anota o que vê e, nos anos seguintes, transporá para a tela e o papel, um conjunto de trabalhos que resumem a participação do nosso País nessa guerra ingrata.

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Afirmando o seu talento, até então desconhecido, consegue a fama desejada expondo a quem quisesse ver a verdadeira dimensão da desgraça, só testemunhada por quem lá esteve ou pelos que vivenciaram a tragédia de não ter os seus jovens de regresso a casa.

Sousa Lopes_funeral do soldado desconhecido.GIF

 

Esse luto infinito está, aliás, patente no funeral do soldado desconhecido (na imagem ao lado), onde as figuras de negro são todas as mães da nação que não voltaram a ver os seus filhos e para sempre ficaram reféns desse vazio.

 

 

 


Depois, há a ausência de cor que, nas numerosas águas-fortes* (imagens 4 a 8), que produziu sobre o envolvimento de Portugal na I Grande Guerra, Sousa Lopes, compensou com um traço impaciente, de quem quer documentar tudo o que viu ou pressentiu, antes que a poeira dos dias o faça esquecer. Nada deveria temer. Porque nada poderia fazer esquecer tal desolação.
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Já aqui antes falei da participação de Portugal na I Grande Guerra:


A tragicomédia do soldado João Ninguém na I Grande Guerra

Instantâneos: O “Cristo das trincheiras” e a abóbada

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*água-forte é uma gravura obtida a partir de uma chapa onde se grava uma imagem/desenho com a utilização de ácido azótico ou nítrico.


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Fontes
Um pintor nas trincheiras, por Carlos Silveira, in 25 olhares sobre a I República – do republicanismo ao 28 de maio; Edição Público, Comunicação Social, SA; Lisboa, outubro 2010.
http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/artistas/ver/48/artists
https://dicionario.priberam.org/%C3%A1gua-forte [consultado em 25-01-2020].

Imagens
http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/artistas/ver/48/artists
https://zassu.blogs.sapo.pt/grande-guerra-1914-1918-28604
http://arepublicano.blogspot.com/2012/11/adriano-sousa-lopes-um-pintor-na-grande.html
https://institutodehistoriadaarte.wordpress.com/2017/11/20/mencao-honrosa-premio-de-defesa-nacional-2016-carlos-silveira/
http://www.arqnet.pt/portal/imagemsemanal/abril0201.html