Quando S. Sebastião nos salvou da “peste grande”
O relato coletivo foi oficializado como milagre. Quem se encontrava doente ter-se-á curado e a peste desapareceu de Alcácer do Sal quase um ano antes de ser erradicada do resto do País. Há 451 anos, também estávamos em isolamento.
Corria o mês de agosto de 1569. A “peste grande” grassava em Portugal. Terá entrado por Lisboa, principal porto do País, fazendo 50 mil mortes e afastando dos grandes centros quem podia fugir para regiões menos fustigadas pela doença, como a família real. As zonas de intenso comércio com a Capital, como Alcácer do Sal, eram as mais expostas ao mal e, embora se tenha erguido uma cerca sanitária, não tardaram a surgir os primeiros doentes, até que a imagem de S. Sebastião transpirou e essa água cristalina, lavou a epidemia destas paragens.
Em Lisboa, no início de junho, começaram a perecer cerca de 50 a 60 pessoas por dia. Em pouco tempo eram 500 a 600 a cada 24 horas, o que fez despertar o alarme em outras localidades próximas.
No porto de Alcácer foi içada uma bandeira branca, que impedia a atracação de navios sem que as autoridades averiguassem a proveniência e sanidade dos ocupantes. As viagens da barca de passagem entre as margens do Sado foram limitadas ao mínimo e aqueles cuja origem fosse duvidosa eram obrigados a cumprir quarentena numas cabanas fora dos limites da vila.
Nas estradas de ligação a Grândola, Montemor ou Évora, também havia guardas para impedir a entrada de pessoas passíveis de estar contaminadas.
Quem pôde, debandou, até os notários e tabeliães, pelo que nem testamentos se podiam redigir.
Para trás ficaram os pobres, que não tinham alternativa, ou os que permaneceram devido à sua profissão ou missão, caso do alcaide e dos padres, que andavam de porta em porta dando ânimo aos crentes, ouvindo-os em confissão ou ministrando a extrema-unção aos moribundos.
As ruas estavam praticamente desertas, as pessoas protegiam-se “contra o bafo de outrem” com lenços encharcados em vinagre mas, apesar de todas as medidas de segurança, houve forasteiros que entraram e depois apresentaram sintomas, bem como alcacerenses que se encontraram nas mesmas circunstâncias e esconderam os sinais da doença, com medo de serem expulsos. Houve até multas e penas de degredo atribuídas a prevaricadores.
No dia 22 de agosto, o povo uniu-se na procissão entre as capelas de São Roque – onde então se encontrava a imagem de S. Sebastião devido a obras na capela própria - e a ermida de S. Lázaro (ver À margem). Depois do cortejo e do sermão, muitas foram as que permaneceram no espaço de culto, rogando proteção. Foi então que, segundo os relatos, se terá dado o prodígio.
A imagem de S. Sebastião terá suado abundantemente. Quer isto dizer que dela brotaram grossas gotas de água o que, imediatamente, fez alguns dos presentes saírem para as ruas gritando que se tinha operado um milagre. Tocaram os sinos a rebate e organizou-se uma segunda procissão, mas o verdadeiro assombro veio quando se deram as primeiras curas.
Segundo as testemunhas, o forasteiro João Peres, que apresentava marcas evidentes da peste e se encontrava de joelhos encomendando-se a S. Sebastião, foi o primeiro a restabelecer-se, mas muitos outros se seguiram. As pessoas pegaram em retalhos de tecido, com os quais limparam a “água claríssima” que emanava da imagem do Santo e com eles passavam nos tumores e nas feridas abertas pela moléstia, que miraculosamente secavam e desapareciam. Outras enfermidades, como paralisia, dor de cabeça e doença dos olhos foram igualmente saradas naqueles dias.
Foram 17 os depoimentos registados. Eram pessoas de diferentes origens e formação, que, cada um à sua maneira, descreveram a experiência inexplicável do que sentiram e viram no denominado “milagre das gotas de água”.
Entre as testemunhas, houve ainda quem tivesse visto a face da imagem ficar muito corada, como se de gente se tratasse, uma estrela pairar sobre a capela e, ainda, ter misteriosamente desaparecido a bandeira indicativa de que o porto de Alcácer estava fechado devido à peste, o que foi interpretado como sinal de estar a vila livre da doença, tanto mais que algumas pessoas em quarentena nas cabanas fora de portas também terão, repentinamente, ficado sãs.
Efetivamente, segundo declararam os religiosos presentes, cessou a enorme azáfama anterior e deixaram de ser chamados pelos fiéis para prestar os últimos sacramentos aos pestilentos, porque já não os havia na povoação.
O auto de 24 de agosto de 1569, que seguiu as tramitações próprias, marca o fim da “grande peste” em Alcácer. Em Lisboa começou a abrandar no mês seguinte e foi considerada erradicada em julho de 1570, cerca de um mês antes de o arcebispo de Évora ter atestado oficialmente o "milagre" aqui narrado.
Quanto à imagem de S. Sebastião, à qual são atribuídos estes prodígios, será muito provavelmente a que se encontra atualmente no Núcleo de Arte Sacra instalado na Igreja de Santa Maria do Castelo, em Alcácer do Sal (na imagem), pois corresponde à descrição que dela é feita e à sua época provável.
Cerca de meio século antes, já havia sido apontada como milagrosa, protegendo a vila durante outro surto de peste, foi venerada até à época moderna, mas hoje está praticamente caída no esquecimento.
À margem
S. Lázaro, patrono dos leprosos; S. Sebastião e S. Roque, grandes protetores dos pestilentos, possuíam capelas ou ermidas na zona baixa de Alcácer do Sal, localizadas a nascente – no denominado Cabo da Vila - na rua Direita, que então atravessava todo o casario, paralela ao rio. Destas, apenas persiste a que era dedicada a São Roque e hoje se denomina de Nossa Senhora da Graça e pertence à Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal (na imagem).
São Roque tornou-se reconhecido como protetor contra a peste no contexto do surto que atingiu Lisboa em 1505 e 1506, altura em que D. Manuel I pediu à República de Veneza uma relíquia do Santo, guardada em capela construída para o efeito. A devoção difundiu-se por todo o País, tendo sido erigidos diversos templos em sua honra, como aconteceu em Alcácer, onde sabemos que já existiria em 1534. A ermida de S. Sebastião situar-se-ia muito próximo desta, tinha um pequeno terreiro e possuía uma irmandade que, ao contrário do habitual, tinha mulheres entre os seus membros.
Tanto a ermida de S. Sebastião, como a capela de S. Lázaro remontavam pelo menos ao início do século XV. Esta já estava em ruínas em meados do século XIX, tendo sofrido obras para albergar a aula de ensino primário.
Estes espaços desapareceram e foram esquecidos, como o foi a lenda, narrada por Alberto Pimentel - que fala de os alcacerenses terem roubado a Grândola uma imagem de S. Estêvão, invejosos da imunidade que esta garantia contra a ameaça da peste. Os grandolenses não se vingaram, nem tentaram recuperar a imagem, mas substituíram-na por outra de S. Sebastião, ao qual, como já vimos, são atribuídos prodígios na mesma área.
Mas isso é outra história….
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Fontes
Texto escrito com base no trabalho “Memórias e espaços de uma devoção urbana: o culto a S. Sebastião em Alcácer do Sal (séculos XV-XVI)”, de Maria Teresa Lopes Pereira, publicado em Lusitânia Sacra 35; jan.-jun. 2017 - Instituto de Estudos Medievais (IEM FCSH/NOVA). Agradeço à autora a generosidade e a disponibilidade. As fotografias de S. Sebastião também são de sua autoria.
O relato ficou registado no "Auto dos Milagres” - Biblioteca Nacional de Portugal - Manuscritos, cx. 171, doc. 13
A Extremadura portugueza, de Alberto Pimentel; Lisboa Empreza da Historia de Portugal, 1908.
Na Biblioteca de Toronto. Disponível em https://archive.org/details/extremaduraportu02pime/page/312/mode/2up
Agradeço a Maria Antónia Lázaro, o alerta para esta história.
Imagens
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0056
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/02/01/0065
Hemeroteca Municipal Digital
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Revista Occidente
6º ano – Volume VI – nº 168 – 21 agosto 1883
6º ano – Volume VI – nº 171 – 21 setembro 1883