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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O polémico padre de Santiago

Padre-caminhando-de-batina.jpg

 

Piadas e ditos picantes, participação em festas pouco recomendáveis e, no geral, uma atitude desbragada e desbocada são algumas das críticas ao padre alcacerense que encheram páginas de jornal há cerca de 125 anos.


Alcácer do Sal teve, no final do século XIX, um padre que deu muito que falar pelos seus costumes e modos, eventualmente considerados mais «livres» que o esperado para a época e em alguém da sua posição. Mas, os padres são apenas homens, embora embuídos de uma missão, e também se sabe que as terras pequenas como esta são pródigas em mexericos. Para a posteridade ficaram as críticas nos jornais da altura, especialmente sobre o sentido de humor e a linguagem usada por António Inácio de Carvalho e Silva, o vigário que gostava de cantar o fado.
A troca de «mimos» terá começado quando o padre mostrou desagrado pela forma como o diretor do jornal, Leopoldo Mera, se comportou numa missa, tendo «propalado por toda a parte» o seu descontentamento. O jornalista não se fez rogado e dedicou vários artigos a contar alguns feitos do prior, «deveras cómico», que dizia: «não honra a terra que o viu nascer e muito menos a religião que professa».
Apontava-lhe o dedo por ser vaidoso e caprichoso, mas ilustrava sobretudo com episódios nos quais António Inácio Carvalho e Silva terá mostrado a sua faceta mais desbragada, como aquela ocasião em que, durante um jantar para solenizar um batizado, se lançou em "remoques ao belo sexo por causa de uma banana", ou aquela outra, num estabelecimento comercial da então vila, onde terá dito que, se Deus quisesse cera, então que fosse trabalhar, que assim fazia ele. Recordou também uma homilia em que o padre, como que a preparar os paroquianos para o que ia dizer, terá começado o sermão anunciando: "preparem-se que lá vai estopa!".
Mas, não era só na linguagem do padre que o diretor do jornal punha defeitos. Segundo revelava, António Inácio não tinha pejo de esquecer o seu augusto ministério e "descer às camadas mais inferiores, mesclando-se e confundindo-se, não lhe faltando os esgares afadistados e os ditos picantes mais próprios de um frequentados das vielas de Alfama", nomeadamente, enquanto paroquiava em São Romão do Sado, e permitia-se «a liberdade de bater o fado de chulipa*» com os trabalhadores e criados de lavoura“, na Herdade de Porto Carro.
Enfim, «um pagode», considerava, não sem deixar de denunciar que o padre alegadamente vendia «pedaços de jornal por bulas da Santa Cruzada», isto é, recebia dinheiro em troca de perdoar os pecados dos seus «incautos“ paroquianos, fornecendo-lhes documentos que não eram as indulgências que eles pensavam ter pago, mas que aceitavam como tal, muito provavelmente por não saberem ler.
Entre tantas censuras, no entanto, o diretor do jornal reconhecia «fino tato» e «poderoso cérebro» no padre, bem como «inúmeros predicados, que longe de o tornarem odioso, pelo contrário», o tornavam «simpático, venerando e – hesitava - não sei se popular!». Bem, pelo menos não entre os outros padres do concelho, aos quais teria «movido guerra surda».
Será que entre as alegadas vítimas desta contenda estaria o conhecido Francisco Matos Galamba**, que por esta altura era pároco de Santa Maria do Castelo e certamente muito terá privado com o companheiro de missão?


À margem

António Inácio de Carvalho e Silva, o padre que tanto exasperava o diretor do então jornal Voz do Sado, era filho da alcacerense Faustina Maria, com um professor de instrução primária e procurador de causas nascido em Moura. Veio ao mundo em Alcácer (Santa Maria do Castelo), em 27 de abril de 1851. Seria nomeado vigário da Vara de Alcácer do Sal e prior de Santiago por volta de 1893.
Antes, tinha feito a sua instrução no Seminário de Évora. Do processo de admissão destinado a tomar a prima tonsura e os quatro graus de ordens menores consta a inquirição de testemunhas, «pessoas antigas, desinteressadas e idôneas» da vila, bem como colegas do seminário, para atestar do bom comportamento moral e religioso do proponente e de toda a sua família, Unanimemente, asseguraram a boa indole pública e privada.

Anos depois, Leopoldo Mera, diretor do Jornal Voz do Sado não lhe poupa críticas.

Mas, o que fazia em em 1895-96 em Alcácer do Sal o senhor Leopoldo Mera, proprietário e responsável por vários jornais em diferentes locais do País, para além de professor, tendo publicado um livro sobre João de Deus. Já após a implantação da República, voltamos a encontrá-lo, oferecendo-se descaradamente ao então presidente Bernardino Machado para um qualquer cargo em que aquele entendesse poder encaixar no seu perfil, de «administrador de concelho, a comissário de polícia, secretário de liceu, conservador», «oficial de bibloteca» ou até, «consul». Argumentava que tal lhe era devido pela sua dedicação à causa republicana e por ter uma família grande para alimentar. Ontem como hoje, os argumentos dos correlegionários políticos parecem surtir efeito nos governantes...Não sabemos se ocupou outra das posições pretendidas antes, mas em 1924 acabaria por ser nomeado administrador do concelho de Salvaterra de Magos.
Mas isso é outra história...

 

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* Segundo consegui perceber, a expressão diz respeito a acompanhar o fado com o batimento dos pés no chão, como no flamenco.

** Francisco Matos Galamba deixou obra feita em Alcácer do Sal, onde desempenhou vários cargos religiosos, políticos e culturais, até à sua morte, em 1913. A ele voltaremos com mais dedicação.

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Fontes

Biblioteca Nacional de Portugal
Jornal Voz do Sado
20 jul. 1895
30 no. 1895
30 abr. 1896
10 mai. 1896


Arquivo Distrital de Évora

Processo de habilitação “de genere” de António Inácio de Carvalho e Silva

PT/ADEVR/FE/DIO/CEEVR/A/012/017270001- 017270180
Cota atual
Mç. nº 203, Proc. nº 1727


Arquivo Distrital de Setúbal

Paróquia de Santa Maria do Castelo
Registos de Batismos
Sistematizados em Registos Paroquiais Portugueses para Genealogia
www.tombo.pt

Biblioteca Nacional de Portugal em linha
www.purl.pt
O futuro de Alcanena

Arquivo Nacional Torre do Tombo
Ministério do Interior
Direção-geral de Administração Política e Civil /Direção-geral da Administração Local
PT/TT/MI-DGAPC/1/1924/65

Fundação Mário Soares
http://casacomum.org/
DBG-Documentos Bernardino Machado - Correspondência

 

A terra voltou a tremer em novembro

setubal 1860.GIF

 

 

Em Setúbal, bairros inteiros foram arrasados, mas Lisboa também não escapou ilesa. Cento e três anos após o grande terramoto, os abalos sentiram-se em todo o País.


Pouco passava das sete horas da manhã do dia 11 do já antes funesto mês de novembro. A terra voltou a tremer 103 anos após o terrível sismo que devastou Lisboa e várias localidades do sul do País. Em Setúbal, a 30 quilómetros do epicentro, os efeitos dos abalos de 1858 foram ainda piores, estimando-se que tenham atingido uma magnitude de 7.1, com destruição completa de algumas áreas da cidade, mas Lisboa também não passou incólume. Morreram pelo menos oito pessoas.

setubal 4.jpg

 

Apesar dos ligeiros estremeções sentidos no dia anterior e durante a noite, ninguém queria acreditar que a catástrofe fosse repetível, pela manhã, como o grande terramoto de que todos haviam ouvido falar.


Poucos segundos bastaram. Em Setúbal, o bairro do Troino ficou praticamente arruinado, com derrocadas em praticamente todas as ruas, transformando-se numa cena «mortuária e ensanguentada». No largo da Fonte Nova, muitos edifícios ficaram danificados, havendo relato do mesmo na praça do Sapal, hoje batizada em homenagem ao poeta Bocage, onde a imponente igreja de São Julião (na imagem) sentiu os efeitos do abanão, com fendas nas paredes e ornatos caídos da fachada.
Toda a zona baixa foi afetada e, como é habitual, as moradas modestas foram as mais penalizadas, pois eram, de origem, menos firmes. Danos igualmente assinalados em alguns edifícios de maior porte, na muralha da cidade e no monumental Convento de Jesus, mais danificado do que em 1755.
Lisboa também acordou da pior maneira. A atmosfera era opressiva, as pessoas corriam desesperadas, descompostas, desprevenidas e, nas ruínas do Carmo, sobreviventes do grande terremoto, o lúgubre  e acelerado toque do sino do relógio acrescentava um som de agonia a tudo o que se passava em redor. As zonas do Rossio e Alfama foram as que sofreram mais estragos, mas felizmente não comparáveis aos infligidos pouco mais de um século antes: construções de menor relevância com fendas, derrocada de paredes, chaminés e elementos decorativos. Afetados ainda edifícios aparentemente sólidos, nomeadamente um dos reconstruídos torreões do Terreiro do Paço, a Basílica da Estrela, igrejas de São Roque e São João da Praça; o convento da Graça e a Sé, onde a torre sul e um dos arcos do claustro ficaram em risco de cair.

setubal avenida da praia atual luia todi.PNG

 

Em Setúbal, não tardaram tentativas de pilhagens e muitos que, tendo as suas casas arruinadas, montaram arraiais na praia, abrigando-se em barracas erguidas ali mesmo, fugindo ao vento forte e cortante e à copiosa chuva que caiu durante toda a infausta jornada. Por todo o lado se viam pessoas meio perdidas, feridas, aturdidas e sem saber o que fazer.


Nos dias seguintes, o mau tempo não amainou, mas foi criada uma comissão de socorros para acudir aos mais necessitados e também se fizeram subscrições em todo o país para ajudar os desvalidos do sismo. Deram-se numerosas esmolas, criou-se uma «sopa económica» para os que não tinham o que comer.

Ao todo, durante dois anos, foram reerguidas 181 casas, nomeadamente fazendo uso de materiais provenientes do antigo convento de Palmela. Em todas se colocou um azulejo com o seguinte dizer: «Beneficência 11 de novembro de 1858»setubal pessoas e vendedor de peixe junto a conser

 

 

De resto, o sismo foi sentido em todo o território de Portugal continental, mas com efeitos mais relevantes em Estremoz, Santarém, Seixal, Barreiro, Cartaxo, Montemor-o-Novo, Sesimbra, Évora e até na Batalha, onde o grande mosteiro abanou e sofreu estragos, mas sobreviveu a mais este confronto com a natureza.

 

 

À margem

O dia 11 de novembro seria, 60 anos após este sismo, o escolhido para a assinatura do armistício que marcou o fim da I Grande Guerra. Embora tal tenha decretado o fim dos combates na frente ocidental, foram necessários quase dois anos até que o conflito terminasse oficialmente, com o tratado de Versailles, firmado em janeiro de 1920.

armisticio.jpg

 

Na imagem, os principais intervenientes no acordo inicial, nomeadamente o marechal francês Ferdinand Foch e os almirantes ingleses Hope e Rosslyn Wemyss, representando os "Aliados"; Matthias Erzberger, pelo lado alemão.


Tudo aconteceu na denominada «carruagem do armistício», que seria palco também de outro acontecimento bem menos auspicioso: a negociação da rendição da França e das condições da sua capitulação, a 22 de junho de 1940, já durante a II Grande Guerra.

Hitler fez questão de usar o mesmo vagão e, para que a vingança fosse perfeita, até derrubou as paredes do Museu onde a carruagem estava instalada, de forma a que a mesma pudesse ser transportada para o local exato, Compiègne.

Mas isso é outra história...

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As imagens presentes são meramente ilustrativas da zona afetada e da época aproximada do sismo relatado.

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Fontes
Arquivo Distrital de Setúbal
Fundo Arquivo Pessoal de Almeida Carvalho
https://digitarq.adstb.arquivos.pt
Dos tremores de terra e em especial dos que se têm sentido em Lisboa; Imprensa União-Typográphica; Lisboa – 1858


run.unl.pt › bitstream › Vicencio_2017


https://digitalis-dsp.uc.pt/html/10316.2/27367/UCSIB-10-1-8-2-1935-V21_PDF/UCSIB-10-1-8-2-1935-V21_PDF_24-C-R0120/UCSIB-10-1-8-2-1935-V21_0000_Obra_Completa_t24-C-R0120.pdf?ln=pt-pt

 

https://pt.earthquake-report.com/2011/02/07/killer-earthquakes-in-portugal-mainland/


Imagens

https://pt.wikipedia.org/wiki/Set%C3%BAbal#/media/Ficheiro:Setubal_1860.jpg
https://pt.wikipedia.org/wiki/Armistício_de_Compiègne#/media/Ficheiro:Armisticetrain.jpg


Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Artur Bensabat Benarus
PT/AMLSB/ABB/000613
PT/AMLSB/ABB/000615
PT/AMLSB/ABB/000621

Carlos Alberto Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000910

 

 

 

 

Na imprensa (18): pílulas de b(r)uxo

illustracao 5 jan 1920 purgante ideal.JPG

 


Ideais, purificadoras do sangue, refrigerantes e não irritativas. Podem umas simples pilulas reunir tantas qualidades? Podem, sim! As enigmáticas pílulas laxativas Boissy eram tudo isto e muito mais...eram também anti-biliosas, o que quer dizer que ajudavam a evacuar a bílis e a controlar as infeções do fígado e da vesicula biliar.
Este purgante ideal estava muito em voga nas primeiras décadas do século XX, tal a profusão de anúncios em que se apregoavam os seus atributos quase milagrosos, mas não encontramos qualquer referência atual à sua existência.
Quanto à designação – afrancesada, como era expectável na época para valorizar o produto - foi buscar inspiração à palavra boissy, que dá nome a várias cidades francesas e que, por sua vez, quer dizer buxo.
Ora, buxo é uma planta à qual são atribuídas propriedades medicinais pelo menos desde o século XII. Chegou a ser apontada como cura para a calvície, mas também é mencionada como depurativa, para além de colerética (estimula secreção da bílis), febrífuga (combate a febre) e sudorífica (provoca a transpiração). Portanto, tudo leva a crer que a origem do “batismo” destas extraordinárias pilulas seja este.
No entanto, o anúncio refere o uso de saponáceas, que em português de hoje, mas não menos difícil de decifrar, alude à família de plantas dicotiledóneas, lenhosas, que inclui árvores, arbustos e lianas da flora tropical.
Como a imagem que acompanha a descrição do produto parece ser um alquimista, um mago ou um bruxo de volta de um insondável caldeirão, só podemos mesmo especular.
Os fabricantes deste medicamento, no entanto, não podiam ser mais sérios.
De facto, as pílulas laxativas Boissy eram comercializadas no nº 237 da rua da Prata, em Lisboa, “casa” do laboratório Vicente Ribeiro & Carvalho da Fonseca, que terá iniciado a sua atividade na década de 20 do século XX. Coube-lhes o pioneirismo em Portugal da introdução da opoterapia, a terapêutica farmacológica baseada em drogas de origem animal. Nos anos 40 estavam entre os laboratórios nacionais produtores de medicamentos com penicilina e, na década seguinte, foram responsáveis pela edição das Farmacopeias Portuguesas, para o 2º Congresso Luso-Espanhol de Farmácia, realizado no Porto, de 11 a 17 de maio de 1952
Naquele mesmo espaço abriu, em novembro de 2018, a loja O´live, dedicada aos azeites Oliveira da Serra.
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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portugueza
Nº 724 - 5 jan 1920

http://www.cdf.pt/archeevo/details?id=1002484&ht=farm%c3%a1cia

https://pt.wikipedia.org/w/index.php?search=boissy&title=Especial:Pesquisar&go=Ir&ns0=1

https://pt.wikipedia.org/wiki/Buxo

https://www.apifarma.pt/salaimprensa/Documents/Livro%2075%20anos.pdf
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/Saponáceas

O artista mais espalhafatoso do País (e arredores)

romao goncalves no campo pequeno.JPG

 


Extravagante, escandaloso e com uma altíssima opinião de si próprio. Romão Gonçalves era cantor e artista de cinema, mas para a história ficaram sobretudo os episódios mais caricatos da sua vida, como quando se atirou ao Tejo entoando o hino belga; as filmagens que fazia seminu por Lisboa ou o licor que inventou, segundo ele, capaz de ressuscitar os mortos.

 

A vida de Romão Gonçalves dava um filme. Na verdade, deu pelo menos 9 fitas que, por mais hilariantes que sejam, não fazem jus às inúmeras e anedóticas peripécias que marcaram a existência deste artista português dos sete ofícios. Espalhafatoso, ousado, escandaloso, muito seguro de si e dos seus dotes, o “tenor supremo” - que ficou também conhecido por cantar enquanto nadava nas águas do Tejo - foi ator de cinema, empresário de casas de espetáculos e jogo, criou um licor milagroso e até arriscou pisar o ringue de boxe, não com os melhores resultados para a sua adorada face ou os seus vistosos dentes cravejados de pedras preciosas e ouro.

romao gonçalves cartoon.jpg

 


Romão Gonçalves era uma das mais bizarras figuras que marcavam a atualidade portuguesa nos anos 20 e 30 do século XX. Havia quase sempre uma proeza sua para comentar, uma notícia no jornal ou um espetáculo memorável em que tanto se distinguia a sua voz poderosa, capaz de inigualáveis “dós de peito”*, como as suas excentricidades.

romao goncalves anuncio licor traje de gala.JPG

 

Os dotes vocais não convenceram os puristas do canto lírico deste retângulo à beira mar plantado, que, sem dó, o bridavam com pateadas e objetos arremessados para o palco. Na sua opinião, só a ignorância explicava esta rejeição a um talento incomparável como o seu.

Aliás, pavoneava-se em Lisboa e no Porto alardeando os êxitos estrondosos que alegadamente obtinha em países “mais cultos” por essa Europa fora e no Brasil, onde, efetivamente, terá conseguido um assinalável sucesso.


Se não tinha entrada nos teatros alheios, teria nos seus próprios espaços.

Foi assim que se tornou empresário do club A Fila – na rua 1º de Dezembro, em Lisboa – onde clientela mais ou menos duvidosa também jogava à roleta, enquanto Romão Gonçalves cantava o que queria.
Quando se tornou artista da 7ª arte, comprou o Cinema Tortoise, em Campolide. Modesto como era, batizou-o com o seu nome.


Assim era Romão Gonçalves.
Rosto redondo, emoldurado por umas negras e vistosas patilhas, olhos pequenos. Alto e corpulento, sempre acompanhado pelo seu amado cão, apresentava-se invariavelmente em leve fato de linho, no estio, e feérico casaco de peles, durante o Inverno.

romao goncalves seminu.JPG


Mas, isso era quando não chocava meia Lisboa ao aparecer seminu nas ruas mais movimentadas, enquanto era filmado para uma das suas fitas cinematográficas** em que era sempre o protagonista e se retratavam as aventuras da sua movimentada existência… como o dia em que se atirou ao Tejo cantando o hino belga e nadando ao encontro do barco que transportava os reis daquele País, em visita a Portugal.

Foi um ato inusitado que causou enorme impacto, precisamente o objetivo de Romão Gonçalves.

Adorava dar nas vistas, mas isso nem sempre corria da melhor forma: na sua memória – e no corpo também - terá ficado durante muito tempo marcado outro episódio em que, em pleno Coliseu dos Recreios, após assistir a um combate de boxe, se levantou num impulso irresistível e desafiou o vencedor para uma luta – mano a mano – no dia seguinte.


Talvez porque estava habituado a usar os punhos nas frequentes rixas que desencadeava na noite lisboeta, sobreviveu por milagre a tanta pancada. Ou seria porque tinha antes bebido um trago ou dois do seu Romanini?


De tonalidade verde-esmeralda, o licor tinha origem em receita inventada pelo próprio Romão, e anunciava ser o melhor do mundo. Estava à venda nos estabelecimentos mais chics de Lisboa e no Jerónimo Martins & Filhos. Rezava a publicidade que era atestado por médicos portugueses e estrangeiros para recompor os órgãos respiratórios, fazendo maravilhas à voz e aos músculos.

Mais! Este “maná celeste” dava “volúpias infinitas”, deleitava os vivos e ressuscitava os mortos.

romao goncalves cartoon 2.jpg

 


Enfim, um verdadeiro portento, um assombro, um prodígio... como o próprio Romão Gonçalves, maior e mais extravagante que qualquer personagem por si interpretada.

 

À margem
Romão Gonçalves era uma figura peculiar que atraía outras da mesma índole, como o aventureiro e espião russo Boris Skossyreff. Uniu-os, provavelmente, a mania das grandezas, a enorme apetência para se autopromoverem e, parece, o gosto pela natação. Boris tentou - pasme-se! - tomar o poder em Andorra e, apesar de reconhecer que não tinha qualquer legitimidade histórica para o fazer, comportava-se como um monarca. Teve um reinado curto, até ser definitivamente expulso do território em 1934 e depois também de Espanha. Acabou por passar umas temporadas no nosso País, mais propriamente em Olhão, onde os pescadores que diariamente o transportavam à ilha do Coco para umas braçadas na Ria Formosa lhe chamavam Mano-rei. Foi ali, antes de enfrentar uma série de outras peripécias em Espanha, França e Alemanha, que Boris I – assim se intitulava – conheceu o nosso célebre tenor. Ao que consta, este ter-se-á oferecido para o apresentar ao homem certo para, furtivamente, o levar de barco a Marrocos, para onde o russo queria rumar. Tratava-se de Zé da Mónica, ele próprio com uma boa série de histórias para contar, já que andava havia meses escondido da polícia política, incógnito em casa de familiares, só saindo de noite, encapuzado ou vestido de mulher.
Mas isso é outra história…

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*Dó de peito é uma nota musical extrema, muito difícil de ser cantada pelos tenores. É usada no final de algumas composições musicais que concluíam em Dó, o qual foi elevado em uma oitava para aumentar a intensidade e o dramatismo.

** Os filmes, cujo paradeiro se desconhece, são estes:

- Romão Gonçalves, Boxeur e Atleta (1920)
- A Visita do Rei dos Belgas a Lisboa (1920)
- As Aventuras do Tenor Romão - O Dó de Peito (1927)
- Romão Gonçalves, Boxeur e Atleta (1920)
- Romão, Chauffeur e Mártir (1920)
- A Visita do Rei dos Belgas a Lisboa (1920)
- Aventuras de Agapito (1924)
- As Aventuras do Tenor Romão - O Dó de Peito (1927)
- As Aventuras do Tenor Romão - O Dó de Peito (1927)

Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt

Illustração Portugueza
II série; Nº 687 – 21 abr 1919
II série; Nº 730 – 16 fev 1920
II série; Nº 789 – 19 abr 1920

Jornal A capital
10º ano; Nº3457 – 8 fev 1920
11º ano; Nº3683 - 1 nov 1920
11º ano, Nº3591 – 31 jul 1920

Sempre fixe – Semanário Humorístico
3º ano; Nº114 – 26 jul 1928


http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143688181/Rom%C3%A3o+Gon%C3%A7alves

http://olhai-lisboa.blogspot.com/2018/04/romao-goncalves.html

http://estespublicitarios.blogspot.com/2010/09/licor-romanini.html

http://www.cinemateca.pt/getattachment/db647be4-65ef-493d-9835-c2b5f1abb702/Expansao-nacional.aspx

https://restosdecoleccao.blogspot.com/2015/07/campolide-cinema.html

http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com/2013/

https://academia_santa_cecilia.blogs.sapo.pt/4491.html

https://pt.wikipedia.org/wiki/Boris_Skossyreff

https://www.rtp.pt/play/p5177/e379383/memoria-fotografica?fbclid=IwAR19eErRZHAe6By2GEPIkdvZ70Gd0VEDV8exYP-ny4oqscniEq-bKXt4dwY
O esporte no cinema em Portugal – de Victor Andrade de Melo; Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil - Rev. Port. Cien. Desp. v.8 n.1 Porto abr. 2008. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-05232008000100016

https://en.broadwayblogspot.com/3660-boris-i-ruler-of-andorra-from-the-russian-empire.html

Instantâneos (61): o primeiro-ministro que morreu em ação

morte em conselho de minutros 1.JPG

 

 

O que são umas meras linhas publicadas num jornal - por muito venenosas que sejam - comparadas com campanhas de pacificação em África, com a trabalhosa captura de Gungunhana* ou a terrível participação de Portugal na I Grande Guerra**. Aparentemente, são muito mais difíceis de [di]gerir e podem até levar à morte. Foi assim com António Maria Baptista, militar que valorosamente enfrentou tantos combates, mas não resistiu sequer a três meses como presidente do ministério, morrendo em pleno Conselho de Ministros.

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Tinha apenas 54 anos e a governação já não lhe era estranha. Havia sido ministro da Guerra e do Interior, com espinhosas tarefas entre mãos, desde logo conter as incursões monárquicas e manter a paz pública num período de grandes tumultos e sobressaltos.

Em 1920, tinha pela primeira vez assumido o cargo atualmente equivalente ao de primeiro-ministro.

Conteve o início de uma suposta revolução bolchevique, fechou alguns sindicatos, mas não teve tempo de mostrar que o mais conseguiria fazer.


A 6 de junho, logo após ler uma carta publicada no jornal O Popular, foi acometido por uma apoplexia fatal.

Os jornais, que na véspera lhe mordiam os calcanhares, desdobraram-se em elogios, logo após o funesto desenlace. Nessa versão adocicada pela morte prematura, António Maria Baptista seria o homem certo no momento exato, encarregue de pôr ordem na casa e desmobilizar as constantes greves que paralisavam o País.
A sala do Conselho de Estado foi transformada em câmara ardente.
Os dias seguintes foram marcados por numerosas cerimónias de homenagem em que as qualidades do defunto foram elevadas aos píncaros.
Cumpriu-se o ditado: se queres ser bom, morre ou vai-te!

antonio maria baptista caixao.JPG

 

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O documento que provocou tão infausta reação em António Maria Baptista teria sido publicado no jornal O Popular, então dirigido por Francisco Pinto da Cunha Leal, que também chegaria a presidente do Ministério, em 16 de dezembro de 1921. Ironicamente, também não aqueceria o lugar, porque o governo a que presidia caiu a 7 de fevereiro.
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*Já aqui antes falei de Gungunhana e da sensação que foi a sua chegada a Lisboa.

**Também já falei aqui da participação de Portugal na I Grande Guerra, das suas tristes consequências e da tragicomédia escrita sobre o assunto.

O mesmo sobre as campanhas portuguesas de pacificação em África.

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
Jornal A Capital
1ºº ano; nº3532 a nº3571 1 a 30 jun 1920
Illustração Portugueza
II Série; nº746 – 7 jun 1920
II Série; nº747 – 14 jun 1920

http://www.politipedia.pt/governo-de-antonio-maria-baptista-ramos-preto-1920/
https://www.infopedia.pt/$antonio-maria-baptista
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Maria_Baptista