O “rei” que transformou lixo em dinheiro e poder
Manuel Martins Gomes Júnior fez fortuna com o que os outros deitavam fora. Era um autodidata colecionador de palácios; republicano e ateu declarado que fez as pazes com a religião; negociante implacácel com preocupações sociais. Figura misteriosa, poderosa, contraditória e polémica, construiu um império, mas no final foi impedido de gerir os seus bens. Esta é a história do “rei do lixo”, o homem que mandou erigir a Torre do Diabo, tão alta quanto necessário para avistar as suas fragatas a atravessar o rio e todas as suas terras, de Lisboa ao Seixal; do Barreiro a Alcácer do Sal.
Nascido em 1860, numa família modesta residente em Santo António da Charneca, na margem sul do Tejo, filho de um vendilhão proveniente de Arganil, Manuel Martins Gomes cedo terá percebido que queria outra vida para si e que os dotes para o negócio, que inegavelmente possuía, seriam a chave para esse futuro promissor.
Desconheço como reuniu o dinheiro necessário, mas terá conseguido comprar uma padaria em Coina, não longe do local onde viviam seus pais. Para não depender de ninguém, adquiriu o moinho de maré situado nas imediações, moendo a sua própria farinha.
As más línguas, talvez invejosas do sucesso alheio, garantem que o passo seguinte foi ludibriar a companhia de seguros e receber uma boa quantia pela destruição do moinho a que ele próprio terá ateado fogo. Certo é que, em pouco tempo, terá começado a investir em terras e a emprestar dinheiro a juros nada amigáveis aos proprietários vizinhos, tendo chamado a si ainda mais terrenos, dos que não conseguiam pagar os créditos firmados.
Dedicou-se então à agricultura e à criação de porcos, após conseguir um contrato com um grande exportador de Lisboa, que morreria em breve, deixando-o a liderar sozinho. Fundou a Companhia Agrícola de Portugal, com extensas herdades, um êxito considerável e centenas de trabalhadores a quem não perguntava origem e fazia questão de pagar sempre um suplemento em géneros, para que não passassem fome, criando também uma escola, onde os filhos pudessem aprender as primeiras letras.
É em 1907 que surge a oportunidade que vai transformar a sua vida.
Vence a arrematação da recolha do lixo da cidade de Lisboa, o que iria ser fundamental para consolidar tudo o resto.
Os detritos eram transportados até Coina nas suas fragatas. Aí, em carros de bois, fazia-se chegar a matéria orgânica à exploração suinicola, onde servia de alimento aos animais. As lamas em decomposição eram usadas para adubar as terras, tendo até servido de arma política.
Efetivamente, quando o seu irmão concorreu à vereação da Câmara da Moita, Manuel Martins Gomes ameaçou deixar de fornecer quem não o apoiasse, algo muito penalizador, pois toda a região dependia sobretudo da lavoura.
Escusado será dizer que o irmão foi eleito e ele próprio também faria uma incursão na política local, como regedor de Santo Antonio da Charneca.
O negócio do lixo seria extremamente rentável, e talvez por isso, terá tentado arrematá-lo noutros concelhos vizinhos, mas o contrato com a Câmara de Lisboa tinha o atrativo de também lhe dar acesso a entulho em grandes quantidades, resultante de obras em igrejas e conventos, entretanto abandonados com a extinção das ordens religiosas.
Isto explica que o palácio e restantes construções da Quinta da Trindade*, no Seixal - entre as quais o “castelinho” que mandou erigir - tenham sido adornados com elementos arquitectónicos e paineis “representativos dos mais diversos géneros e tendências decorativas de azulejaria, trazidos de vários locais” e ali expostos por aquele a quem já todos já chamavam “rei do Lixo” ou “Martins das carnes”.
É em 1910 que vai levar a cabo aquela que é a obra mais ostensiva do seu poder, a “Torre do Diabo” – assim batizada pelo próprio - na antiga quinta do Manique, em Coina**.
A construção apresenta-se imponente parecendo espreitar os campos em volta e essa seria mesmo a ideia: quereria avistar todas as propriedades, até a mais distante, em Alcácer do Sal (ver à margem).
Provocador, chamou a estas terras de Coina “Quinta do Inferno”, trasformou a antiga capela em estábulo e, para as suas fragatas “lixeiras”, escolheu os sugestivos epítetos: Mafarrico, Mefistófeles, Demo, Diabo, Satanás e Belzebu.
Nem a família escapou a esta fúria criativa.
As filhas foram batizadas com nomes de deusas pagãs: Proserpina, Flora, Ceres e Cibele. Aos afilhados chamou Libertino e Rodas Nepervil – anagrama de Livre Pensador, o nome escolhido, mas não autorizado.
Não faltaram pois ostensivas afrontas à Igreja, embora, no final, Manuel Martins Gomes Junior parecesse ter sentimentos diversos, pois legou uma fortuna considerável a “Misericórdias” e verba para a reconstrução da capela de Nossa Senhora dos Remédios, em Coina.
Não deixa de ser irónico que o homem que fez fortuna do lixo, que ergueu um império, comprou e rebatizou propriedades, no fim da sua vida tenha ficado legalmente interditado de gerir os seus bens, talvez porque já tivesse perdido o tino para o negócio que norteou a sua vida ou porque a família não deixou que distribuísse mais um tostão que fosse. Deixou mais de 34.552.370 contos ***, morrendo discretamente em 8 de novembro de 1943, na sua Quinta da Alfarrobeira (Lisboa)****.
À margem
A mais longínqua propriedade de Manuel Martins Gomes Júnior seria a Herdade da Barrosinha, no alentejano concelho de Alcácer do Sal, onde se experimentaram novas técnicas de cultivo de arroz e se plantaram sobreiros alinhados que ainda lá estão. Com a morte de Manuel Martins Gomes Júnior, os bens foram distribuídos pelas filhas e pelos três sobrinhos órfãos que criou. Foi Libertino Martins, o mais velho, a ficar responsável pela gestão destas terras. A sociedade acabaria por se desfazer já muito depois da morte do seu fundador e grande parte da família rumou ao Brasil, para onde chamaram 60 famílias de Alcácer do Sal, que ali se fixaram, trabalhando as terras do clã, em Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro, tal como tinham feito a centenas de milhares de quilómetros de distância, em Portugal. Já a Quinta do Inferno, cairia nas mãos do conhecido urbanizador da Margem Sul do Tejo, António Xavier de Lima. Em 1988 a torre seria alvo de um incêndio rodeado das mesmas suspeitas e mistérios do fogo inicial, que destruíra o moinho do “rei do lixo”.
Mas isso é outra história…
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* A Quinta da Trindade (imagens 7 e 8), junto ao Tejo, no Seixal, tinha pertencido a uma sobrinha de D. Nuno Álvares Pereira e foi adquirida pelo “rei do lixo” em 1908. É em terrenos da antiga propriedade que hoje está também o Centro de Estágios do Sport Lisboa e Benfica, o Instituto Hidrográfico da Marinha Portuguesa e o Eslateiro Naval do Seixal.
** A Quinta de São Vicente, em Coina, já pertencia a Manuel Martins Gomes Junior em 1897. Foi fundada por Joaquim de Pina Manique, irmão mais novo do célebre Intendente-Geral de Segurança Pública que esteve na origem da Casa Pia de Lisboa. Com a morte do “rei do lixo”, a propriedade passa para o genro, António Zaolete Ramada Curto, que manteve a exploração agrícola até vender ao industrial de curtumes Joaquim Batista Mota, que por sua vez a vendeu ao conhecido “urbanizador” António Xavier de Lima. Atualmente, o edifício encontra-se em ruínas.
*** Aproximadamente 1 271 189.92 euros. Montante calculado a valores de 1953, no site https://fxtop.com/pt/conversao-no-passado.php?A=34552370%2C80&C1=PTE&C2=EUR&DD=01&MM=01&YYYY=1953&B=1&P=&I=1&btnOK=Pesquisar
**** A Quinta da Alfarrobeira, em Lisboa, foi construída e habitada pelo conhecido arquiteto do reino e ourives João Frederico Ludovice, em 1727. É atualmente a sede da Junta de Freguesia de São Domingos de Benfica. Ainda em vida de Manuel Martins Gomes Júnior, foi ocupada pelos Serviços de Saúde do Exército Português, que pagavam à mulher e depois viúva, Maria Belo Martins Gomes, a renda mensal de 2.620$00.
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O meu agradcimento a Vítor Manuel Adrião, pela generosidade com que me autorizou a utilizar o publicou, e a Rui Pires que, originalmente, disponibilizou a documentaçáo que permitiu o trabalho de Vítor Adrião.
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Fontes
A revolução Republicana na Moita, investigação e elaboração de textos de Maria Clara Santos e Vítor Pereira Mendes; Câmara Municipal da Moita; setembro 2010. Disponível em:
Jornal a Razão – Órgão do Partido Republicano Português
Ano III, nº132 – 11 jul 1918
Caracterização material e conservação e restauro de um painel de azulejos do séc. XVII do Ecomuseu do Seixal, Portugal, dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Conservação e Restauro, Especialização em Cerâmica e Vidro, de Shari Carneiro de Almeida; Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa; dezembro 2011. Disponível em:
O passado nunca passa – catélogo da coleção de José Santos Fernandes, Câmara Muniicpal de Cascais; 2010. Disponível em: https://biblioteca.cascais.pt/bibliotecadigital/dg26/DG26_item1/DG26_PDF/DG26_PDF_24-C-R0150/DG26_0000_Obracompleta_t24-C-R0150.pdf
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
Jornal «O Setubalense», suplemento de 4 de Agosto de 1934.
https://memoriaparatodos.pt/portfolio/quinta-da-alfarrobeira/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Frederico_Ludovice
https://www.portugalnummapa.com/castelo-do-rei-do-lixo/
http://zonasabadonadasemportugal.blogspot.pt/2009/03/castelo-da-bruxa-coina.html
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/incendio-no-palacio-de-coina/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Quinta_da_Trindade
https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/106490492/201703020000/73398854/diploma/indice
Outras imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/
Ferreira Cunha
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/FEC/000217
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/FEC/000218
Eduardo Portugal
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