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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O ano de todos os lutos

 

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Acha que 2020 foi mau? Pense de novo, Portugal já viveu bem pior e reergueu-se. Este ano passou sem deixar saudades, é verdade. Para muitos terá sido o pior das suas vidas, o mais funesto em muitas gerações…mas, acredite-se, há menos de um século, experimentámos períodos ainda mais tristes e desesperantes, trágicos e de má memória que, ainda assim, foram superados.

 

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Se houve anos terríveis num passado não tão longínquo, 1918 foi, sem dúvida, dos que mais martirizaram o povo português e a humanidade em geral, com a particularidade de, na época, não existir bem uma consciência da gravidade da situação.

Jornais havia, claro, e enchiam-se páginas com o infortúnio que nos atacou nesses 12 meses em que nada de mau faltou.

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Mas, como poucos sabiam ler, desconhecia-se a dimensão da desgraça que vinha em muitas frentes: uma pandemia, esforço de guerra na Europa e em África, crise, miséria, instabilidade política e social, que, em vão, se tentou apaziguar decretando, à vez, Estado de Emergência e Estado de Sítio.  Em dezembro, para culminar tamanho desarranjo, ainda mataram o Presidente da República, o que provocou a comoção geral numa nação que o chorou com tanto fervor como o contestou e aclamou em vida.

filas para comprar comida2.PNG

 

Logo em janeiro, percebeu-se que a doença não nos deixaria a porta: o Porto foi assolado por um forte surto de tifo e, quatro meses depois, tal como o vírus que hoje nos atormenta, a pneumónica deu os seus sinais na primavera, disseminando-se por todo o País, a partir de Espanha. Foram três as vagas sentidas, sempre com ampliada intensidade.

Proibiram-se procissões e feiras; instituíram-se meios de proteção, como máscaras e a lavagem frequente das mãos. Compreensivelmente, quem quase morria de fome e não tinha acesso aos bens essenciais – desde logo devido à guerra que minava toda a Europa – não deu muita atenção a tais conselhos.

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À luz do que hoje sabemos, é até difícil observar as fotografias de então sem sentir um certo arrepio ao ver as pessoas tão juntas e desprotegidas, lado a lado com os numerosos anúncios da necrologia.

Também não havia conferências de imprensa diárias, mas estima-se que um total de mais 136 mil portugueses tenham perecido com essa fatídica gripe que, ao contrário do Covid 19, atacava preferencialmente os mais novos.

Nesse ano, houve mais mortes do que nascimentos em Portugal.

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Como se toda esta tragédia não fosse suficiente, a hecatombe cai sobre o Corpo Expedicionário Português que, bravamente, lutava na Flandres com os parcos meios de que dispunha.

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Milhares de soldados nossos são aprisionados. Mas esses são os afortunados, porque os outros ficaram caídos no campo de La Lys (na imagem em cima). Foi em abril.

No mês seguinte, morre o muito popular ator Augusto Rosa cujo funeral mobiliza largas centenas de Lisboetas (imagem ao lado).

 

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Já em outubro, altura em que a terceira vaga da “espanhola” assolava o nosso território, dá-se mais um desaire. O nosso navio Augusto Castilho é abatido quando se interpunha entre um submarino alemão e o vapor português S. Miguel, acabando por ser o alvo preferencial do inimigo. Dois dias depois, a 16, uma transferência de presos em Lisboa degenerou em tiroteio do qual resultaram seis mortos.

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Não foi o primeiro tiroteio do ano, nem seria o último, como se verá, mas foi mais um foco de inquietação numa Capital que, como o resto do País, viu incontáveis tumultos, greves, motins, filas para comprar quase todos os bens de primeira necessidade e muita fome.

 

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Em novembro, chega finalmente uma boa notícia: é assinado o armistício que põe fim à I Grande Guerra. O povo festejou e respirou de alívio, não porque as suas condições de vida se alterassem substancialmente no imediato, mas porque, pelo menos, havia a esperança de as coisas melhorarem no ano que se avizinhava.

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Pois, o alento pouco durou, porque 11 dias antes do Natal, em plena Estação do Rossio, o presidente, Sidónio Pais, o homem que, durante algum tempo tinha tentado pôr alguma ordem num país a ferro e fogo, cai assassinado a tiro entre a multidão que o cercava - na imagem, o seu enterro.

Por essa altura, os portugueses estavam tão desejosos de ver o ano terminar como nós de nos vermos livres de 2020. E, se ainda acha que não houve pior do que este de que agora nos despedimos, então resta-lhe fechar os olhos e fazer votos para que o que aí vem traga melhores notícias.

Bom 2021!

 

À margem

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Sidónio Pais governou o País com pulso de ferro, contribuindo para instaurar o que ficou conhecido como a “República Nova”, liderada por indivíduos com origens e sensibilidades diversas, insatisfeitos com o rumo que o sistema político saído do 5 de outubro de 1910 estava a levar. Efetivamente, Portugal não tinha paz, nem estabilidade. Sucediam-se governos, a economia estava extremamente fragilizada e imperava um clima de contestação, até porque a pobreza grassava entre as classes mais baixas e algumas das promessas da República haviam ficado por cumprir. É neste contexto que o “presidente-rei” – como lhe chamou Fernando Pessoa, num elogio fúnebre - vai destacar-se, com medidas, ora populistas, ora ditatoriais, passando por cima da Constituição de 1911 e do Congresso. Um ano depois de tomar posse pela primeira vez à frente do Governo, não sobreviveu ao segundo atentado no espaço de dez dias, o que deixou o País numa situação ainda mais periclitante. A estabilidade só chegaria quando subiu ao poder outro político com espírito autoritário e que, como Sidónio, primeiro havia experimentado a pasta das finanças.

Mas isso é outra história…

 

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Fontes

Fundação Mário Soares | Aeb | Crono | Ano (fmsoares.pt)

Pneumónica - NOVA FCSH (unl.pt)

Sidónio Pais - ANTIGOS PRESIDENTES: - PRESIDENCIA.PT

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Jornal a Capital

N.º 2644 ao n.º 2988 – janeiro a dezembro 1918

 

Illustração Portugueza

N.º 620 ao n.º 671 – janeiro a dezembro 1918

 

Hemeroteca Digital Brasileira

Coleção Digital de Jornais e Revistas da Biblioteca Nacional (bn.br)

Diário Nacional

Ano III; nº 713 – 14 outubro 1918

 

Sidónio Pais – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Sidónio Pais - Infopédia (infopedia.pt)

O Afundamento do Navio Augusto Castilho @ CinePT-Cinema Portugues [pt] (ubi.pt)

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

X-arqWeb (cm-lisboa.pt)

Anselmo Franco

PT/AMLSB/EFC/001998

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001415

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001057

Instantâneos (73): quando os “cabeças de giz” recebiam cabazes de Natal

 

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Doces, garrafões de vinho e de azeite, bacalhau – claro - mas também animais vivos, peças de mobiliário e eletrodomésticos de peso, como um frigorífico. A imaginação era o limite quando se tratava de enaltecer o papel que os polícias sinaleiros tinham na correta orientação do trânsito e também, certamente, amenizar o impulso disciplinador daqueles agentes da segurança rodoviária.

À luz dos nossos dias, parece estranho que os sinaleiros tivessem tal preponderância, mas, efetivamente, numa época em que os portugueses – os poucos privilegiados que tinham automóvel - se habituavam às regras do código da estrada – criado apenas em 1928 – o papel destes homens foi pedagógico e essencial para travar excessos daquela elite habituada a fazer o que bem queria.

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Tal como em outros países da Europa, optou-se por uma farda distintiva da atividade, nomeadamente com um reluzente capacete branco, que rapidamente lhes valeu o epiteto de “cabeça de giz”.

 

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Partiu do Automóvel Clube de Portugal (ACP) a iniciativa Natal do Sinaleiro, lançada em 1932, ano em que havia 120 destes agentes em Lisboa e 57 no Porto. Tinham um posto fixo e eram conhecidos pelo nome, não granjeando a simpatia de todos os automobilistas.

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Dois dias antes do Natal, era montada a decoração e os postos de recolha dos presentes, ali deixados por empresas e por particulares apostados em cair nas boas graças de determinado sinaleiro. Depois era só aguardar, para ver o que o “menino Jesus” deixava no “sapatinho”.

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Parte das ofertas era entregue a instituições de caridade, mas os sinaleiros conseguiam arrecadar um cabaz de Natal bastante invejável.

Havia de tudo: a juntar aos mais corriqueiros acepipes comuns na época de Natal e não só – o “fiel amigo”, bolachas, bolos, chocolates e rebuçados em grandes caixas, sacas de arroz e de batatas, cestos com fruta e legumes – apareciam sacos de carvão, atoalhados e cobertores, loiças, tabaco, peças de vestuário, bebidas alcoólicas…

Um amontoado de fardos, sacos, caixas e pacotes, num colorido que rendia muitos mirones.

E dinheiro…

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Se fosse hoje, qualquer um destes presentes - mesmo o leitão, as galinhas, os perus ou os borregos vivos, era considerado suborno. Que dizer então de envelopes com dinheiro equivalente a uma parte considerável do magro salário auferido pelos sinaleiros?

Talvez por isso, o Natal do sinaleiro terminou em 1953 e não parece ter condições para que alguma vez possa ser retomado. Quanto à profissão, embora tenha praticamente desaparecido, está agora a ser relançada em algumas cidades, numa abordagem mais humana às tantas vezes maltratadas regras de trânsito.

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Fontes

O regresso do polícia sinaleiro (acp.pt)

O Natal recheado dos polícias sinaleiros - Vida - SÁBADO (sabado.pt)

Texto de Susana lúcio

Arquivo Municipal de Lisboa

X-arqWeb (cm-lisboa.pt)

Texto de Paulo Jorge dos Mártires Batista

 

Imagens

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

X-arqWeb (cm-lisboa.pt)

Código de Referência:

PT/AMLSB/EFC/000973

PT/AMLSB/EFC/000975

PT/AMLSB/EFC/000976

PT/AMLSB/EFC/000978

 

www,acp.pt

Instantâneos (72): asas de aço e vontade férrea

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Pense num animal que transmita leveza. Poucos corresponderão melhor a essa ideia que uma borboleta…e, no entanto, o etéreo e esvoaçante ser foi durante quase um século um dos principais símbolos* da indústria pesada nacional. Tal como a insignificante lagarta ganha asas e se metamorfoseia num animal belo e admirado, assim um ferreiro pobre, mas inconformado, conseguiu transformar a sua pequena forja numa fábrica onde chegaram a trabalhar 2.500 pessoas e que produziu de alfaias agrícolas a veículos de guerra, sempre acrescentando valor.

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Esta é a história de Eduardo Duarte Ferreira (1858-1948). Numa época em que o sector empresarial de grande porte dependia de grandes e abastadas famílias ou investidores estrangeiros, criou de raiz um império que foi sinónimo de qualidade e confiança, em Portugal e no estrangeiro.

A Metalúrgica Duarte Ferreira, no Tramagal, resultou da visão do seu fundador, que não se resignou em ser barqueiro como o pai, ou ferreiro, com havia sido ensinado. Quis aprender a fundir o ferro e começou por produzir alfaias agrícolas rudimentares, que foi aperfeiçoando até ao ponto de ser inovador, criando uma charrua com rasto e bicos substituíveis.

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Nunca mais parou de crescer e de ensaiar novas tecnologias e produtos, nas várias instalações que chegou a deter e a par de uma considerável obra social, cultural e até desportiva na comunidade.

 

 

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De equipamento para a produção de vinho e azeite, ao aço vazado por processo elétrico, uma novidade no nosso País.

De loiça doméstica esmaltada, a enfardadeiras e debulhadoras mecânicas de grandes dimensões.

 

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De componentes para locomotivas, a gasogénios para automóveis, passando pelos famosos camiões militares Berliets e outros veículos, bem como uma fundição com capacidade para 4 mil toneladas anuais de peças de aço.

 

 

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E as dificuldades foram também sendo sucessivamente ultrapassadas: a falta de dinheiro inicial; a instabilidade da 1ª República; a grande depressão; a II Grande Guerra…A tudo, a Metalúrgica Duarte Ferreira sobreviveu, menos à intervenção estatal, que a administrou entre 1974 e 1979, época em que tinha mais de dois mil trabalhadores.

As borboletas morrem quando as tentam agarrar.

Ironicamente, esses tempos revolucionários em que o povo saiu a rua em liberdade pela primeira vez em muitos anos, foram os únicos em que, na Metalúrgica Duarte Ferreira, não se comemorou o 1º de Maio, que ali era dia feriado e de confraternização geral alheia a politicas pelo menos desde 1901.

 

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A memória destes cerca de cem anos de história está hoje salvaguardada num museu que, tal como o fundador da empresa da borboleta, já ganhou prémios de excelência.

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*A borboleta, nas suas várias formas, foi sempre a imagem da Metalúrgica Duarte Ferreira. Não se conhece uma razão específica para a adoção deste símbolo, para além de ser fácil de fundir e por remeter para as origens rurais do fundador. Usada desde o princípio da atividade, foi registada pela primeira vez em 2 de junho de 1917.

 

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Fontes

Folheto explicativo do Museu Metalúrgica Duarte Ferreira – Tramagal, gentilmente cedido por José Mário Parente.

Metalúrgica Duarte Ferreira - O longo voo da borboleta, de José Martinho Gaspar; disponível em WIKI - Rede de Bibliotecas do Médio Tejo.

Metalúrgica Duarte Ferreira - O longo voo da borboleta (mediotejo.pt)

 

Abordagem à Metalúrgica Duarte Ferreira: Proposta de Musealização, dissertação de Mestrado em Desenvolvimento de Produtos de Turismo Cultural, de Lígia Vanessa Lopes Farinha Marques; Escola Superior de Gestão de Tomar - Instituto Politécnico de Tomar. Disponível em

https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwiy4LP146PtAhVFrxoKHQLyCoY4ChAWMAF6BAgCEAI&url=https%3A%2F%2Fcomum.rcaap.pt%2Fbitstream%2F10400.26%2F6540%2F1%2FAbordagem%2520%25C3%25A0%2520Metal%25C3%25BArgica%2520Duarte%2520Ferreira%2520Proposta%2520de%2520Musealiza%25C3%25A7%25C3%25A3o.pdf&usg=AOvVaw3v3fyFlne-RRAJrVX-Jw_X

Imagens

Alf van Beem - Obra do próprio

Tramagal | Museu da Metalúrgica Duarte Ferreira é inaugurado dia 1 de maio | Médio Tejo (mediotejo.net)

Berliet-Tramagal Bombeiros Voluntarios, Porto de Mos, Unit VTTR01 1015 ZO2 pic2 - Eduardo Duarte Ferreira – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Por Fernando Gertrudes - Obra do próprio, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=66422584

Por Fernando Gertrudes - Obra do próprio, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=66430690

Por Fernando Gertrudes - Obra do próprio, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=66533692

Abrantes | Tramagal eterniza Metalúrgica Duarte Ferreira com Museu e livro | Médio Tejo (mediotejo.net)

 

 

 

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Duzentos e vinte posts depois, cá estou, comemorando o terceiro aniversário d’ O Sal da História.

Três anos é quase nada para um blog. Ainda assim, é com um certo orgulho que assinalo a data, porque representa, do ponto de vista pessoal, uma superação da falta de tempo, do stresse de afazeres diversos, da insegurança, das dificuldades técnicas e teóricas de quem sabe muito pouco e todos os dias se surpreende com a história e as suas estórias.

O Sal da História é sinónimo de algum trabalho, mas sobretudo de uma enorme satisfação em descobrir e contar histórias através da escrita.

Agradeço, por isso, a persistência com que tenho tido retorno das crónicas que aqui vou deixando, as palavras de incentivo, as dicas, as críticas e as partilhas que multiplicam leitores.

É sempre gratificante saber que há alguém que lê o que escrevemos. Obrigada por estar desse lado!

Cristiana Vargas

A ponte que teve duas vidas

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A ligar as margens do Sado, em Alcácer do Sal, desde 1945, a estrutura ao estilo Eiffel destinava-se à passagem de comboios e teve uma existência anterior, unindo as margens de outro rio. Poucos sabem também que a ponte teve um "canhão" e um "carrossel".

A ponte rodoviária metálica sobre o Sado é uma das principais imagens que fica na memória de quem visita Alcácer do Sal. Parece estar ali desde sempre, imutável e bela na sua robustez que faz lembrar outras eras. Os mais velhos, no entanto, ainda se recordam da anterior e instável passagem, mas poucos saberão que a atual ponte foi criada para unir as margens de outro rio e receber comboios, em vez de automóveis. Ganhou uma nova “vida” por iniciativa do conhecido ministro das Obras Públicas e Comunicações, Duarte Pacheco.

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Efetivamente, aquela que foi durante muito tempo passagem obrigatório no percurso de para o Algarve, destinava-se a permanecer sobre o rio Judeu, no nunca concluído Ramal Ferroviário de Cacilhas, iniciado em 1901, ao longo do arco ribeirinho do Tejo, ligando os concelhos de Barreiro, Seixal e Almada.

Apenas um troço esteve em funcionamento, entre 1923 e 1969. Em 1940, Duarte Pacheco decidiu que parte das estruturas não utilizadas deveriam ser reaproveitadas em Alcácer do Sal, onde a antiga travessia em madeira que já se mostrava desadequada e insuficiente para as necessidades.

Assim seria, embora o governante nunca o chegasse a ver, porque morreria num acidente de viação – entre visitas a obras – dois anos antes do fim dos trabalhos.

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A obra, dirigida pelo engenheiro Carlos Couvreur, seria, aliás, mais complexa que o esperado, obrigado à utilização de diversas técnicas construtivas, como estacaria cravada na rocha, 19 metros abaixo do leito do rio.

 

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As águas inundavam o estaleiro, fazendo estragos (na imagem 5), e o constante movimento das marés dificultava muito os trabalhos, nomeadamente o assentamento da estrutura metálica sobre os encontros de betão junto às margens, que se fez à custa da utilização de barcaças e obrigou a várias tentativas (na imagem 4).

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No final, o investimento ascendeu a 2.3 milhões de escudos, para pouco mais de 107 metros de extensão.

A inauguração foi a 15 de janeiro de 1945.

Os mais jovens também não sabem que o tramo central levantava para permitir a passagem de embarcações e que o atual tabuleiro, uma laje em betão, não é o original.

Inicialmente, existia um pavimento em madeira, responsável por muitas noites mal dormidas para quem habitava nas proximidades, pois a circulação de camiões sobre as travessas alinhadas originava um ruído ensurdecedor, semelhante a rajadas de metralhadora, tanto que foi batizado de “canhão”.

Quando, em 1965, foi instalado um novo tabuleiro em grade metálica, começaram outros problemas. Numa terra ainda fortemente rural, era frequente os rebanhos passarem na ponte e os pobres animais ficavam com as patas presas nos orifícios, o que provocava grandes constrangimentos aos próprios e aos pastores, tentando salvar as suas ovelhas e cabras de se magoarem a sério.

A partir dos anos 80 do século XX, a beleza desta estrutura foi ligeiramente ofuscada pela construção paralela de um pontão, que assegurava os trajetos norte-sul, atenuando os engarrafamentos e a sobrecarga da velha travessia. Com a criação de uma variante rodoviária, que retirou parte do trânsito do interior de Alcácer do Sal, o pontão provisório acabaria por ser demolido e a bela estrutura metálica foi alvo de profundas obras de requalificação, que lhe devolveram o antigo esplendor e firmeza, já em 2007-2008.

 

À margem

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Se a ponte metálica tinha um” canhão”, a antiga travessia em madeira tinha um “carrossel”, ou pelo menos era assim que era vista a trepidação provocada pelo trânsito de veículos, que fazia estremecer toda a estrutura. O balanço era aproveitado pela “gaiatagem”, que se sentava nas guardas e gritava de excitação com o movimento, como se de um divertimento de feira se tratasse. A nova construção ao “estilo Eiffel”, por outro lado e como as imagens demonstram, foi motivo de grande atração por parte de toda a população, que, independentemente da idade ou estrato social, marcava presença para acompanhar os trabalhos e dar o seu palpite. Quando a estrutura foi finalmente aberta ao público e ao tráfego automóvel, não demorou muito até que começasse a ser usada como prancha de mergulho pelos rapazes mais afoitos. Como seria de esperar, todos os anos, o Sado reclamava algumas destas vidas jovens e atrevidas, tal como reclamou e levou os belos repuxos ali instalados pelo município nos anos 90, a fazer lembrar o lago Léman, na Suíça, mas que em vez de jorrarem água, lançavam lodo em grande quantidade e altitude.

Mas isso é outra história…

 

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aqui antes falei das pontes de Alcácer e das peripécias que rodearam a reconstrução da travessia que caiu no final do século XIX.

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Fontes

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

Janela para a História

PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/12/5A/02/002

Atos Oficiais

PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/ 02/03/022

Sistema de Informação para o Património Arquitetónico

http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=35385

http://www.tpfplanege.pt/files_tpfplanege/estaleiro_21043_2.pdf

http://www.betar.pt/upload/pdf/pdf_1318953538.pdf

http://www.opway.pt/opway/homepage.asp?Language=PT

http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/opca_ganha_concurso_para_reabilitacao_e_reforco_da_ponte_metalica_de_alcacer_do_sal

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ramal_do_Seixal

Imagens

https://senhorenfermeiro.blogs.sapo.pt/barreiro-antiga-ponte-barreiro-seixal-14630

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

Reprodução a partir de imagem original de Manuel João da Silva

Arquivo Histórico Municipal – Fundo Baltazar Flávio da Silva

PT/AHMALCA/CMALCS/BFS/ 01/07/001-009

Instantâneos (71): enquanto o comboio se despenhava, a Lisboa elegante aplaudia

viagem inaugural comboio.JPG

 

 

À mesma hora que tudo o que era gente importante ou que almejava sê-lo se preparava para abrir a época de ópera no Real Teatro de São Carlos,ponte sobre nrio sever (2).JPG um comboio de passageiros despenhava-se na ponte internacional sobre o rio Sever*, entre Marvão e Valência de Alcântara. Bom, não terá sido bem à mesma hora, porque a velocidade das notícias era muito diferente naquele longínquo ano de 1885 e o acidente tinha ocorrido nessa manhã. A chegada do funesto telegrama às redações dos jornais é que coincidiu com o momento em que os camarotes se enchiam de cetins, veludos e rendas, os artistas ensaiavam pormenores de última hora e crescia a expectativa pelo espetáculo do ano. A informação correu célere em Lisboa, mas o high-life estava demasiado ansioso com a apresentação dessa noite para derramar uma lágrima que fosse pelos infelizes que se anunciava terem perecido na tragédia.

A composição descarrilou porque em plena linha se encontrava um cavalo - pobre e inconveniente equídeo que não deve ter sobrevivido para contar a história, até porque a ponte ruiu parcialmentponte sobre nrio sever (1).JPGe com o acidente. Morreram “apenas” três pessoas, trabalhadores dos caminhos-de-ferro, que provavelmente trabalhavam e viajavam na locomotiva. Houve vários feridos, mas o saldo de mortos foi baixo, explicavam os jornais, porque o rio levava pouca água. Caso contrário, todos os passageiros ter-se-iam afogado.


Já a soirée, no “São Carlos” foi de grande excitação. Regressada dos banhos de termas e de mar com que tinha ocupado o verão, a classe privilegiada estava particularmente expectante com aquela apresentação da soprano italiana Erminia Borghi-Mamo** (na imagem) e o interesse não era exclusivamente cultural.

erminis borghi mamo.PNG

 

É que desde a sua última aparição em Lisboa, a diva havia casado e, para os grupos ociosos, isso era razão mais do que suficiente para que um enorme burburinho pairasse no ar. Será que o matrimónio e recente maternidade lhe tinham estragado a voz? Será que ainda conseguia alcançar as notas mais difíceis? Denunciariam as suas formas a sua nova condição?
Com tantas e tão poderosas dúvidas, nessa noite de 30 de outubro não havia tempo nem disposição para outras preocupações, quanto mais para qualquer emoção pelos mortos e feridos num acidente ocorrido em lugar remoto e onde, certamente, não teria estado envolvido ninguém digno de importância…

 


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*A ponte sobre o rio Sever fazia parte do denominado Ramal de Cáceres, entre a estação de Torre das Vargens, na linha do Leste, e a fronteira com Espanha. Entrou em exploração em 1879 e tinha originalmente objetivos industriais, porque foi pensado para fazer chegar ao porto de Lisboa os fosfatos das minas de Cáceres, mas passaria a receber as viagens de passageiros entre Lisboa e Madrid.
Foi encerrado em 2012, com a circulação do comboio internacional Lusitânia, em itinerário alternativo, a fazer-se pela Linha da Beira Alta.
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**Ermínia Borghi-Mamo era filha dos também cantores líricos italianos Michele Mamo e Adelaide Borghi. Não espanta, portanto, que tivesse nascido praticamente num teatro, horas após a sua mãe cantar Il Trovatore, de Guiseppe Verdi. A sua carreira durou vinte anos (1873-1893). Em Lisboa, em outubro de 1885, provou, como se tal fosse necessário, que os grandes talentos sobrevivem ao matrimónio e à maternidade.
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Já aqui antes falei de outras noites memoráveis no Real Teatro de São Carlos. Como aquela em que a diva de todas as divas, Adelina Pati, endoideceu Lisboa.

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Nota: a primeira imagem, não representa o acontecimento relatado. É meramente ilustrativa da época. Não encontrei qualquer gravura sobre o acidente.

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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
hemerotecadigital.cm-lisboa.pt
A Illustração Portuguesa – Semanário – Revista Literária e Artística
2º ano; nº16 – 2 nov. 1885

Biblioteca Nacional em Linha
www.purl.pt
Diário Illustrado
14º ano; nº4494 – 31 out 1885

Lisboa, o S. Carlos e Adelina Patti, de Patrícia Moreno, Chiado Editora – jan. 2018

https://www.infraestruturasdeportugal.pt/pt-pt/node/1482

https://greatsingersofthepast.wordpress.com/2017/12/15/erminia-borghi-mamo-mezzo-soprano/

https://en.wikipedia.org/wiki/Erminia_Borghi-Mamo

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ramal_de_Cáceres

http://pombaldomarques.blogspot.com/2012/10/ponte-internacional-sobre-o-sever-ramal.html

http://omelhoralentejodomundo.blogspot.com/2015/11/ponte-internacional-do-rio-sever-marvao.html