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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Quando o verdadeiro teatro está nos dramas familiares

 

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A pública troca de acusações – nos jornais e nos tribunais – entre a atriz Maria Carolina Pereira e o seu pai mobilizou paixões e opiniões, na década de 70 do século XIX, manchando a carreira teatral da jovem e acabando com a saúde do progenitor, um conhecido professor e intelectual dos sete ofícios.

 

O que qualquer artista quer na sua estreia é o máximo de publicidade que atraia as atenções do público. Isso foi precisamente o que teve a atriz Maria Carolina Pereira naquele inverno de 1876, em vésperas de pisar o palco pela primeira vez.  A fazer lembrar algumas lavagens de roupa suja que enchem as nossas modernas redes sociais, a jovem e a sua ilustre família envolveram-se numa acesa polémica que fez correr muita tinta nos jornais e não mais deixaria de manchar a sua carreira que, talvez por isso, não foi longe.

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João Félix Pereira, pai da debutante, era um conhecido intelectual da sua época, que ficou célebre por ser versado em muitos temas – era médico, agrónomo, engenheiro civil e professor jubilado do Liceu Nacional de Lisboa. Escreveu sobre quase tudo e em muitos idiomas. Da medicina, à taquigrafia; da agricultura, à história e à ficção…de alemão, a grego; de inglês a italiano, de russo, a francês ou castelhano…traduziu e dissertou de mote próprio em numerosas obras. O problema é que também resolveu escrever sobre a vida familiar, mais propriamente sobre os problemas que minaram a relação com a sua bela filha.

Tratava-se provavelmente do último recurso de um pai desesperado por recuperar a estima da sua única descendente, que, “mal aconselhada”, se havia retirado de “casa paterna”, onde “era adorada” e, “sem necessidade nenhuma”, estava prestes a “dedicar-se à vida laboriosa de atriz”, para a qual, entendia o progenitor, em anúncio publicado na imprensa diária, não dispunha, decerto, das “indispensáveis forças físicas”.

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A zanga terá começado com a aplicação que João Félix Pereira fez da herança que o sogro – o cirurgião António Sequeira da Nazareth – havia deixado à neta. Investiu em inscrições da Junta de Crédito Público, mas, como Maria Carolina era filha única, entendeu ser mais seguro averbar os investimentos em seu nome e não no da sua herdeira.

Ora, supostamente manipulada pelo general António Pedro de Azevedo e pela filha deste, Maria Carolina ter-se-á insurgido contra esta atitude do pai, incompatibilizando-se com ele e deixando o lar familiar.

João Felix Pereira entendia que o objetivo da dupla era extorquir dinheiro à filha e chegou a interpor uma ação jurídica contra o militar, da qual sairia derrotado. Não baixou os braços e fez publicar não uma, mas duas longas explicações das suas razões e um drama sobre o assunto, que mereceram réplica e só contribuíram para aumentar a polémica, com mais achas para a fogueira do falatório.

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Os dramas familiares, assim trazidos à praça pública, foram o alvo de chacota preferencial da Lisboa de então, ofuscando a estreia de Maria Carolina no teatro D. Maria II, que mereceu enchente, mas não pelas melhores razões, deixando “desencontradas impressões” no “ânimo dos espetadores”, divididos entre a curiosidade de ver a filha desavinda e apreciar a mais recente atriz de comédia da cidade.

Maria Carolina ainda foi atriz pelo menos durante sete anos, mas nunca alcançou o estrelato. O seu “tipo finamente aristocrático”, o seu “talento brilhante”, passou por uma “penumbra imerecida e bárbara” por parte da critica, “avara de carícias e de conselhos” para com a artista.

O episódio inicial adejou sempre, qual fantasma nunca esquecido, sobre a sua carreira teatral e foi fatal para o pai, que, incapaz de resolver entre quatro paredes as questões pessoais, “abrira as portas do lar doméstico à curiosidade estúpida da sociedade”.  O trabalhador incansável viu-se doente e desconsiderado, tendo pedido a jubilação do cargo de professor, embora continuasse a escrever e publicar, o que fazia de forma compulsiva.

 

 

À margem

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João Félix Pereira escreveu em pelo menos oito línguas e publicou uma obra vastíssima nas mais diversas áreas do saber e até na ficção. Traduziu textos técnicos e literários, assim como produziu estudos inéditos. Era um excêntrico, conhecido pela forma como se vestia - de casaco de alpaca, com uma “algibeira que ia de lado a lado e onde ele metia tudo quanto se pode imaginar”, ”calça branca engomada, sem camisola nem ceroulas ou cuecas” - fosse verão ou inverno. Em alguns meios era visto como um chato, um pedante, alguém que sabe tudo sobre tudo.

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Talvez por isso, o seu trabalho, embora de reconhecido valor, é frequentemente alvo de troça dos intelectuais da época. Camilo Castelo Branco refere-o em duas obras, como sinónimo de verborreia e de colecionador de “canudos”. Também Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão discorreram sobre ele, dedicando-lhe duas farpas, nomeadamente ironizando ser João Félix “na ciência o mesmo que são na música os homens dos sete instrumentos, que fazem uma orquestra batendo com todas as partes do corpo”.

treino equestre.jpgQuando morreu, em 1891, foi a filha desavinda – espera-se que já reconciliada, que deu a notícia à sociedade. Maria Carolina não mais deixaria as páginas dos jornais, figurando nas crónicas elegantes também porque casaria com João Gagliardi, o mais conhecido professor de equitação da Lisboa de então, o que se prestou a trocadilhos e piadas entre os mais atrevidos cronistas da época.

Mas isso é outra história

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Nota: as imagens 2, 3 e 6 são meramente ilustrativas da época. Na imagem de Grupo está presente Maria Carolina Pereira, mas nãpo consegui apurar qual é. A imagem 1 é da artista, admirada peloa sua beleza.

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

Diário Illustrado

5º ano; nº1416 – 15 dez 1876

5º ano; nº1418 – 17 dez 1876

5º ano; nº1422 – 22 dez 1876

12º ano; nº3579 – 25 abr 1883

12º ano; nº3581 – 27 abr 1883

20 º ano; nº6693 – 17 nov 1891

27 º ano; nº9059– 14 jun 1898

 

O Occidente – Revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro

6ª ano; vol VI; nº175 – 1 nov 1883

14ª ano; vol XIV; nº465 – 21 nov 1891

 

Brasil-Portugal

Nº306 – 16 out 1911

 

O tiro civil

Ano 7º; nº225 – 14 dez 1901

 

Tiro e Sport

Ano X; nº277 – 29 fev 1904

 

Biblioteca Nacional de Portugal em linha

www.purl.pt

Discurso que no conselho de guerra onde foi julgado o general António Pedro de Azevedo devia ser proferido por João Félix Pereira; Lisboa; 1975

 

Uma selecta de textos alemães traduzidos por João Félix Pereira: estudo e edição genética; tese para obtenção do grau de Mestre em Crítica Textual de Joana Isabel Plácido Fernandes; Universidade de Lisboa; Faculdade de Letras – 2015 Disponível em: Repositório da Universidade de Lisboa: Uma selecta de textos alemães traduzidos por João Félix Pereira: estudo e ediçao genética (ul.pt)

 

O Instituto de Agronomia e Veterinária [1852- 1910] Ciência e Política na segunda metade de Oitocentos, tese para obtenção do grau de Mestre em História, na especialidade História Moderna e Contemporânea de João José de Almeida Barata; Universidade de Lisboa; Faculdade de Letras – 2019 Disponível em: Repositório da Universidade de Lisboa: O Instituto de Agronomia e Veterinária (1852-1910) : ciência e política na segunda metade de oitocentos (ul.pt)

 

https://archive.org/stream/pontosnosii1188unse/pontosnosii1188unse_djvu.txt

 

As farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes - Eça de Queirós, Ramalho Ortigão - Google Livros

 

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

X-arqWeb (cm-lisboa.pt)

José Artur Leitão Bárcia

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000616

José Chaves Cruz

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000471

Alberto Carlos Lima

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000747

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001755

 

Instantâneos (75): meninos que carregam o mundo nos ombros

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Parecem olhar para nós, lá do alto, acenando. São enormes e aparentam equilibrar-se a custo enquanto nos observam com um ar meio ameaçador, de quem já viu tudo e com nada se espanta. É difícil não reparar nas quatro gigantescas figuras nuas, esculpidas em granito e que o povo, sempre irónico, apelidou de “meninos da graça”, pois apresentam-se-nos sobre a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Graça, em Évora.

O simbolismo daqueles estranhos seres em pedra é incerto.

A tradição local diz que representam os primeiros mártires da Inquisição naquela cidade. Os globos que os acompanham seriam os mundos descobertos pelos portugueses.

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Pode até ser, porque a construção do conjunto conventual em que se insere esta igreja data de uma época de grandes descobertas.

Por outro lado, em 1536, foi em Évora, onde a corte residia na altura, que originalmente se criou a Inquisição e se verificaram as primeiras denuncias.

Uma homenagem aos “hereges” era, assim, um ato de rebelião do autor do projeto, que a isto assistia enquanto liderava as obras.

Será?

 

 

Ou foi novamente o povo, acossado com as perseguições, que ali quis ver uma homenagem às vítimas do Santo Ofício…

A explicação clássica, no entanto, remete para outro tipo de condenados.

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Aquelas criaturas seriam os titãs que, na mitologia grega, desafiaram o poder e a ordem de Zeus. Como castigo, o deus dos deuses condenou um deles - Atlas - a eternamente carregar o mundo – ou os céus - sobre os seus ombros.  

As figuras atlantes da Igreja de Nossa Senhora da Graça de Évora, no entanto, não suportam os colossais globos que as acompanham, nem têm o ar sofredor, habitual em Atlas, ao qual o oceano Atlântico, o mítico continente Atlântida ou a conhecida cordilheira norte africana devem o nome.

Atlas é também a primeira vértebra cervical, sobre a qual assenta a cabeça: toda a glória do pensamento, mas também todo o carrego das preocupações e dos dilemas que enfrentamos. Daí que se tenha batizado de complexo de Atlas um tipo de stress que se traduz em querer assumir todas as funções e tudo controlar. Os “meninos da Graça” têm, efetivamente, este ar agitado, sem paz ou descanso.

Quem sabe? Se nem o autor de tais esculturas é certo, variando as opiniões entre Nicolau de Chanterene e Francisco de Holanda, bem como o responsável pela construção, por uns atribuída a Miguel de Arruda e, por outros, a Diogo de Torralva…

O edifício, esse, ali está há cerca de cinco séculos, mantendo-se teimosamente apesar de já ter enfrentado a ruína em várias ocasiões. É o primeiro exemplar de pleno renascimento português e panteão do Conde de Vimioso, D. Francisco de Portugal, que o recebeu de D. João III, desagradado com a pouca sumptuosidade ostentada. O convento tem há muito utilização militar.

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Fontes

O Convento de Nossa Senhora da Graça de Évora - Conjunto conventual - Utilização diacrónica; de Maria do Céu Simões Tereno; conferência extraída do livro "Conversas à volta dos conventos"; Casa do Sul editora, Évora, 2002. Disponível em: CONVENTO_DE_NOSSA_SENHORA_DA_GRACA_DE_EVORA-libre.pdf (uevora.pt)

 

Inquisição de Évora - Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)

 

DGPC | Pesquisa Geral (patrimoniocultural.gov.pt)

 

Atlas (mitologia) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

O mito da Atlântida - Mitologia em Português

 

 

Igreja da Graça em Évora (visitevora.net)

 

Igreja da Graça (Évora) - Infopédia (infopedia.pt)

 

Arquivo Municipal do Município de Évora

welcome - Arquivo Municipal CME (cm-evora.pt)

António Passaporte
PT/AFCME/APS/1031/36

 

Os dois "meninos" da direita (Foto: Ana Travasso)

A Matéria do Tempo: Os Meninos da Graça (amateriadotempo.blogspot.com)

Instantâneos (74): barradinhas de talento

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Insinuantes, irreverentes, ingénuas, enigmáticas e belas, mas nunca banais. Assim eram as mulheres que Jorge Barradas (1894 – 1971) criou em milhares de ilustrações, desenhos, quadros, peças de cerâmica, painéis de azulejo e, ainda, na publicidade, em caricaturas e noutras composições humorísticas e mordazes.

 

 

 

 

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O artista de tantos instrumentos e argumentos, que recusou sempre uma educação formal e preferia que fosse a experiência a ensinar-lhe o que pretendia saber, rejeitou igualmente uma visão vulgar, conseguindo impor a sua própria ideia de modernismo.

 

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O “Barradinhas”, como era conhecido entre amigos, deixou incompletos os estudos na Escola Machado de Castro e na Escola Superior de Belas-Artes, mas isso não o impediu de, muito cedo, começar a ser reconhecido no meio artístico português - com apenas 17 anos participou na primeira exposição.

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Era na observação das pessoas, nas ruas, que encontrava a inspiração que o seu enorme talento convertia em traços de inegável e intemporal valor.

 

 

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Com as fêmeas modernas dos anos 20, que fumavam, dançavam Charleston e copiavam as atrizes de Hollywood, nos seus cabelos curtos, batom carmim e vestidos atrevidos, encheu Jorge Barradas numerosas capas das publicações ABC, Magazine Bertrand e Ilustração. Chamaram-lhe “o artista da mulher”.

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Com os quadros humorísticos e os tipos tradicionais de Lisboa - da varina ao marujo, passando pelo mendigo, o ardina ou o novo-rico – ilustrou outras tantas páginas de revistas e de jornais.

 

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Mas não se ficou por essas linguagens. Como pintor, desenvolveu quadros que lhe valeram o epiteto de “Malhoa 1930”.

Criou cenários e decorou numerosos espaços - como os pavilhões de Portugal em exposições internacionais, os cafés Portugal (Rossio) e Brasileira (Chiado), ou o edifício da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa - com telas, painéis de azulejo e vitrais.

 

 

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Representou também figuras históricas, naturezas mortas e paisagens luxuriantes, fazendo uso das cores ardentes que conheceu numa viagem a África e que influenciaria a sua obra.

 

 

 

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Deixou uma vasta coleção de aguarelas e de litografias e, como ceramista, ao que se dedicaria na última fase da sua vida, contribuiu para o renascimento dessa arte no nosso País.

 

 

 

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Fontes

Hemeroteca Municipal de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Jorge Barradas, o “artista da mulher”; nota biográfica, por Álvaro Costa de Matos - Lisboa, fevereiro de 2009.

 

Jorge Barradas na coleção da Hemeroteca de Lisboa: obra gráfica – Levantamento iconográfico parcial, por Álvaro Costa de Matos – Lisboa; fevereiro/março de 2009.

Efemérides | Jorge Barradas (1894-1971) na Colecção da Hemeroteca de Lisboa: Obra Gráfica (cm-lisboa.pt)

 

Jorge Barradas | Museu Calouste Gulbenkian

 

MNAC: Paisagem tropical – S. Tomé (museuartecontemporanea.gov.pt)

 

Jorge Barradas, Magazine Bertrand, 1927 | Ilustração Portugueza (wordpress.com)

 

Jorge Barradas - Artistas Portugueses - Documentários - RTP

 

Jorge Barradas, ilustrador português. (tipografos.net)

 

Jorge Barradas - 2 Artworks for Sale on Artsy

 

CURSO DE HISTÓRIA DO AZULEJO AZULEJARIA MODERNISTA, MODERNA E CONTEMPORÂNEA. Ana Almeida - PDF Free Download (docplayer.com.br)

Lendas de mouras, cavaleiros, deusas e outros prodígios

 

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Como terra antiga que é, Alcácer do Sal tem várias lendas que passaram de boca em boca e hoje estão praticamente esquecidas. São ocorrências extraordinárias que, fantasiosas ou não, nos falam dos povos que aqui habitaram em tempos imemoriais.

 

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Uma lenda é uma velha narrativa sobre acontecimentos que não se sabe serem verídicos, mas cujo relato passou de geração em geração, sendo muitas vezes difícil perceber quando começou ou até encontrar registos escritos. As lendas d’ A Costureirinha ou d’ A Luz da Caniceira são comuns a praticamente toda a região do Baixo Alentejo, mas Alcácer, como terra antiga e rica de história que é, tem várias lendas próprias, algumas mais conhecidas do que outras.

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A mais divulgada destas estórias fantasiosas é a de Almira e do seu amado Gonçalo. Toda a gente já ouviu falar desta moura que aqui permaneceu após a reconquista cristã, da inexplicável nostalgia com que cantava e tocava o alaúde, bem como da forma como conquistou o coração do bravo cavaleiro, que lhe terá dedicado os célebres versos que terminam: “Vós sois aquela que amo, por vosso merecimento, com tanto contentamento, que por vós a mim desamo”.

Há, no entanto, outras lendas tão belas e tão alcacerenses quanto esta.

Uma delas também se passa por altura da reconquista cristã, que certamente marcou muito a população local.

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Conta-se que um grupo de gananciosos cruzados - dos que tinham vindo ajudar a expulsar os mouros - depois roubaram riquezas da alcáçova do antigo governador muçulmano, no castelo.

Acontece que, talvez por má consciência, terão sido perseguidos e assustados por assombrações que os condenaram pelo mau ato que haviam praticado e, com medo de um castigo vindo de outro mundo, terão devolvido os objetos subtraídos e desaparecido para sempre.

Há mais lendas que são apresentadas como eventuais milagres.

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Mais especificamente, aquela que fala de uma boa mulher que costumava prestar a sua devoção a Santa Maria dos Mártires (como se denominava o atual Santuário do Senhor dos Mártires - na imagem - até ao século XVII ou XVIII).

O caso chegou aos nossos dias, nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, e foi localizado em Alcácer do Sal pela historiadora Maria Teresa Lopes Pereira.

Num sábado, a tal senhora crente atrasou-se e encontrou as portas da igreja trancadas. Rezou com tanto fervor, que aquelas se abriram, fechando-se novamente após a sua saída. Ao chegar à vila muralhada, encontrou os portões também encerrados. Novamente rogou à Virgem e esta não só lhe terá aparecido e fraqueado o caminho, como a terá conduzido pela mão até casa.

Outro relato - sobre o qual já aqui escrevi – conta o triste prodígio da jovem Querubina, filha do Duque de Bragança, que veio para o Convento de Nossa Senhora de Aracoeli de Alcácer do Sal em 1580. Em vez de se curar da moléstia que a afetava, ali morreu. Diz quem viu que, 17 anos depois, quando se tratou da trasladação dos seus restos mortais, estes se encontravam intactos, imaculados, como se viva ainda estivesse, o que provocou enorme assombro em todos.

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Outra lenda exclusiva de Alcácer - e ainda mais antiga que as anteriores - tem precisamente a ver com o nome que os romanos escolheram para esta terra quando até aqui estenderam o seu domínio. Efetivamente, ao contrário do que muitos pensam, Salacia não deriva de sal, mas sim de uma deusa assim chamada, uma ninfa prometida em casamento ao rei dos mares, Neptuno.

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Conta a lenda que Alcácer terá sido invadida por bárbaros vindos do norte de África, que pilharam a terra e maltrataram as suas gentes. O povo terá então rezado, pedindo a intervenção da sua protetora, a deusa Salácia, para castigar os piratas.

Nesse momento, uma grande tempestade ter-se-á erguido do oceano e destruído os barcos dos salteadores, fazendo-os afundar.

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Como sinal de reconhecimento, os alcacerenses terão construído um grande templo em honra de Salácia que, no entanto, nunca foi encontrado pelos arqueólogos… porque ainda não tiveram essa sorte; porque se encontra soterrado sob alguma igreja cristã ou, simplesmente, porque tal templo é apenas uma lenda e não chegou a existir. Quem sabe?

 

À margem

 

Existem em Portugal dezenas de lendas de “mouras encantadas” que, contrariamente ao que o nome indica, podem ter uma origem até anterior à ocupação muçulmana do nosso território, assumindo depois as características de donzelas desse povo invasor. Tal como Almira, estas “mouras” são invariavelmente, belas e cativantes, frequentemente filhas de um rei ou alcaide e acabando por cair de amores por um cavaleiro cristão, também preso do seu amor. As versões variam consoante a tradição oral das várias regiões.

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Em Figueira de Castelo Rodrigo, a moura transforma-se em cobra e vive junto a um tanque; em Salir, no Algarve, a jovem é filha do alcaide mouro e faz-se passar por uma estátua, desaparecendo em seguida; em Chaves, a moura é enfeitiçada pelo noivo a quem havia traíodo com um cavaleiro cristão; em Sintra, a moura chama-se Zaida e dá nome a uma lendária cova; em Ourém, chamava-se Fátima, ganhando o nome cristão de Oreana…

Depois também há lendas de mouros “encantados”. Conta-se que o árabe Al-Mansour, sobre cujo cadáver D. Afonso Henriques terá passado a cavalo, continua, em noites de luar, a atrair raparigas das cercanias ao seu retiro secreto no castelo de Alcobaça, “com palavras sedutoras e dolentes cantares noturnos”, dos quais só S. Bernardo as consegue salvar.

Mas isso é outra história …

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Fontes

Almira, a moura encantada, de Cristiana Vargas, Lendas de Alcácer do Sal nº1; Câmara Municipal de Alcácer do Sal – setembro 2013

 

Salacia, rainha dos mares, de Cristiana Vargas, Lendas de Alcácer do Sal nº2; Câmara Municipal de Alcácer do Sal – setembro 2013

 

A conquista de Alcácer – Terra de piratas, de Cristiana Vargas, Lendas de Alcácer do Sal nº3; Câmara Municipal de Alcácer do Sal – setembro 2013

 

 

O Culto de Nossa Senhora dos Mártires em Alcácer do Sal, a Senhora da Cinta e as Cantigas de Santa Maria de Maria Teresa Lopes Pereira; Medievalista online – ano 5, nº6 - 2009; Instituto de Estudos Medievais - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Disponível em MEDIEVALISTA (unl.pt)

 

Lendas de Portugal, de Emília de Sousa Costa, 2ª edição aumentada; Livraria Figueirinhas – Porto

 

Lendas Portuguesas; Investigação, recolha e textos de Fernanda Frazão; Multilar – Edição, Promoção e Distribuição Lda. – Lisboa 1988

 

Lenda e mitologia romana nas moedas cunhadas em Salacia (Alcácer do Sal) – Arqueologia romana em Portugal, citando “lenda popular narrada pelo dr. Rocha Marftins em 1935”. Disponível em www.portugalromano.com

 

Moura Encantada I - Município de Figueira (cm-fcr.pt)

 

A_Moura_Encantada_de_Salir_1.pdf

 

Lenda da Moura da Ponte de Chaves - Infopédia (infopedia.pt)

 

Lenda da Cova Encantada ou da casa da Moura Zaida - Infopédia (infopedia.pt)

 

LENDA DA PRINCESA FÁTIMA | MOURA ENCANTADA (wordpress.com)

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Nota: à exceção das gravuras representativas de Alcácer do Sal, as imagens presentes são meramente ilustrativas.

 

Imagens

 

História de Portugal, popular e ilustrada (1899-1905) de Pinheiro Chagas; ilustrações de Alfredo Roque Gameiro; Empreza da História de Portugal – Lisboa. Disponível em:  História de Portugal, popular e ilustrada (1899-1905) | ROQUEGAMEIRO.ORG (tribop.pt)

Imagem Biblioteca Nacional de Portugal em linha http://purl.pt/5528

Historical, military and pictoresque observations on Portiugal, de George Landmann; Vol II; T. Cadell and W. Davies, Strand . Londes, 1818. Disponível em Biblioteca Nacional de Portugal em linha Historical, military, and picturesque observations on Portugal, illustrated by seventy-five coloured plates, including authentic plans of the sieges and battles fougth in the Peninsula during the late war, London, 1818 - Biblioteca Nacional Digital (purl.pt)

 

Imagem Biblioteca Nacional de Portugal em linha http://purl.pt/5528

 

 

Um maio de 68 a caminho de África

 

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O navio transportava jovens militares como gado, empilhados, rumo a um continente desconhecido e a uma guerra que os marcaria para sempre. Lá fora, os estudantes tinham saído à rua exigindo uma mudança.

Maio de 1968. Paris está a ferro e fogo, com os estudantes nas ruas, desafiando a autoridade política e social e, sobretudo, os poderes tradicionais. Por cá, Salazar ainda governa - por pouco - mas vê surgirem as primeiras contestações à guerra que, em África, consumia toda uma geração. Alheia a tudo isto, no dia 18, uma multidão de mancebos acorre ao cais de Alcântara e embarca no paquete Niassa rumo ao desconhecido. As condições que encontraram a bordo para uma viagem tão longa não podiam ser mais elucidativas do que os esperava.

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Durante três semanas – que não contavam para a “contabilidade” da tropa - os jovens entretinham-se com o que havia, sobretudo jogavam à batota, por vezes até de madrugada, com as cartas a circular de mão em mão.

Era uma atividade formalmente não aceite, mas tolerada pelos superiores, embora pudesse ser motivo de conflito por parte dos maus perdedores – e alguns perderam muito - e permitisse lucro fácil aos mais afortunados, que amealharam dinheiro e objetos: máquinas fotográficas, relógios…tudo servia para pagar dívidas e esquecer o local onde estavam e o que ali os trazia.

Nessa viagem, a par de tantos rapazes anónimos vindos de todo o País, seguia o cantor Edmundo Falé, que contribuiu para alguns momentos de alegria e descontração, ao oferecer aos seus camaradas de armas um “concerto” em pleno oceano.

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Os dormitórios, por outro lado, apresentavam um panorama bem menos suscetível de merecer aplausos: consistiam numa estrutura metálica que ocupava as entranhas do navio e se estendia por vários andares, separados por um pavimento em tábuas de madeira, sem forro ou outra qualquer proteção isolante.

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A algazarra era, por vezes, infernal e, nas compridas noites oceânicas, à falta de melhor local, os militares urinavam ali mesmo, “brindando” os seus companheiros  dos patamares inferiores com uma desagradável chuva noturna que chegava a percorrer os três pisos improvisados onde dormiam mais de dois mil homens.

A sorte e o destino geográfico que lhes estava atribuído pelas forças armadas ditavam quem ficava em cima e quem devia resignar-se a ficar por debaixo.

Obedecidas as rotinas obrigatórias, os dias eram passados preferencialmente no convés, onde também se tomavam as refeições. Era espaço mais arejado, mas também sujeito ao sol inclemente e à chuva, que marcou alguns dias da viagem. Quando assim era, não havia lugar para estar ou comer e não foram raras as ocasiões em que o almoço era tomado na casa de banho, entre a vontade de matar a fome e a náusea dos cheiros envolventes.

“O gado hoje viaja em melhores condições que as que nós tivemos para ir servir a pátria no Ultramar,  a  bordo do Niassa”, conta quem assim viajou entre Lisboa e Lourenço Marques, rumo a uma guerra que mal se compreendia, deixando mãe sozinha, namorada e emprego fixo na metrópole.

Tudo em espera por dois anos, na melhor das hipóteses.

E esses eram os venturosos, porque o pior cenário era o regresso do soldadinho numa caixa de pinho, como cantou Zeca Afonso.

 

À margem…

 

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O “Maio de 68”, que teve a sua expressão maior em França e réplicas em todo o mundo, começou por ser um movimento de protesto estudantil que teve pouco impacto em Portugal.  No nosso País, embora a contestação académica fosse sempre latente, na mesma década, bem mais significativas do ponto de vista público, foram as “crises” de 1962, em Lisboa, e de 1969, em Coimbra.

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Houve greve às aulas, luto académico; confrontos, detenções, expulsões e ondas de choque que se prolongaram. Envolvidos estiveram alguns nomes que, anos mais tarde, veríamos sentar-se nas cadeiras do poder, na Assembleia da República ou mesmo em executivos governamentais. Mas, os estudantes universitários eram, à época, uma elite. A multidão sem nome continuou a embarcar para a guerra colonial, mesmo depois da morte de Salazar, mesmo depois da “primavera marcelista”, até que, a 25 de abril de 1974, um grupo de militares fez cair o regime e, ainda que de forma atabalhoada, acabou com a guerra colonial, 13 anos depois do seu início. Quanto ao Niassa, serviria até 1978, mas seria alvo de um atentado bombista, quando se preparava para levar mais um contingente de tropas, em 1970.

Mas isso é outra história…

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Já aqui antes contei outro testemunho sobre a guerra colonial em:  O iminente naufrágio do Vera Cruz com milhares de tropas a bordo

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Fontes

O relato da viagem é do militar Joaquim Fernando Martins, meu querido pai, que teve mais sorte do que a maioria, cumprindo uma tropa africana longa, mas calma, na farmácia militar, na avenida General Bettencourt, em Lourenço Marques, Moçambique.

Visão História – Estudantes contra o poder, nº 52; abril 2019

EDMUNDO FALÉ (tripod.com)

Ephemera Diário: Ida e volta na guerra (ementas do "Vera Cruz" em 1968 e do "Niassa" em 1970) | TVI24 (iol.pt)

Imagens

embarques.jpg (1049×1054) (googleusercontent.com)

Centro de Documentação 25 de Abril | Universidade de Coimbra (uc.pt)

Chegada ao Tejo do Navio “Niassa” – RTP Arquivos

Maio de 68. Estudantes contra polícias e no fim ganhou o capitalismo – Observador

A Crise Estudantil de 1969 e a final da Taça :: :: zerozero.pt