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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Pela imprensa (20): mal sabe o que tão bem faz

oleo figado de bacalhau.PNG

 

A julgar pelo semblante sereno mas determinado do pescador e pelo ar agonizante do peixe, poderia pensar-se que o homem se prepara para, com as suas próprias mãos, extrair pela boca do “fiel amigo”, o fígado com que se irá produzir esse tónico tão extraordinário quando difícil de tragar com que se fortificaram ranchadas de crianças ao longo dos tempos. O anúncio é de 1898, época em que a tuberculose ceifava muitas jovens vidas e este produto era, para muitos, a única esperança.

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O óleo de fígado de bacalhau da empresa Arriaga & Lane tinha sido lançado no mercado em 1884 e, apesar de, obviamente, não estar sozinho no mercado, afirmava-se único, por ser “colhido” em peixe fresco capturado por navios portugueses, cuja tripulação deveria ser composta por homens tão robustos e zelosos como o da imagem.

Um óleo com tão genuína proveniência valia por si e era purificado “sem que nenhuma operação química” alterasse a sua composição. Por isso, contrariando a má imagem olfativa e gustativa, num outro anúncio da marca, assegurava-se que, ao contrário de outros, neste, o “cheiro e sabor em nada repugnam” e é “bem tolerado pelos estômagos mais delicados”.

E, para que não existissem dúvidas e o cliente não fosse iludido com imitações, descrevia-se a embalagem ao pormenor. A atestar todos esses predicados, aliás, cada garrafa era acompanhada de um prospeto onde se forneciam as explicações sobre este nutritivo líquido.

O óleo de fígados de bacalhau da Arriaga & Lane recebeu vários prémios de qualidade, em exposições nacionais e internacionais e, assegurava-se na publicidade, era o preferido de “entre todas as marcas estrangeiras”, reunindo a escolha de médicos e professores de renome da Real Escola Médica de Lisboa e do médico da “real câmara”, sendo usado de forma abrangente em instituições como “o Hospital de S. José, a Real Casa Pia, a Associação de Asylos, Asylo D. Luís, a enfermaria de creanças do Hospital D. Estephânia”, entre outras.

Apropriadamente, em Lisboa, a Arriaga & Lane tinha depósito na rua dos Bacalhoeiros, 135 1º e, no Porto, na rua Passos Manuel, 72-76 (Manuel Francisco da Costa & Cª). Também se vendia no Brasil.

Face à concorrência de produtos externos, que já se apresentavam em cápsulas, prevenindo o contacto com o sabor, também a Arriaga & Lane passou a vender o seu precioso óleo neste formato, mas a metade do preço!

De resto, mesmo em publicações científicas são enaltecidas as qualidades excecionais do óleo desta marca portuguesa, quer para ingerir, quer como base de outros preparados farmacêuticos, o que se atribui à pureza, sem os aditivos usados, nomeadamente pelos ingleses, para branquear o líquido e talvez aligeirar-lhe o paladar.

Seria de esperar mais cuidado por parte dos britânicos, afinal, a eles se deve a adoção generalizada do óleo de fígado de bacalhau como fortificante rico em vitaminas A e D, barato e inofensivo. Foi o médico Charles James Blasius Williams que, por volta de 1840, o popularizou na luta contra a tuberculose e, em pouco tempo, vários países o adotaram como principal “remédio” para esse mal, assim tendo permanecido cerca de um século e chegando a ser de toma obrigatória na escola. Era também imprescindível em regimes para contrariar a magreza e a diminuição de leite em mães a amamentar, aconselhando-se truques para uma ingestão “sem repugnância”, juntando “goma arábica, açúcar, e sumo de limão ou de laranja”.

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...................

O fiel amigo dos portugueses está presente na nossa vida e na nossa história em muitos momentos. Já aqui falei da faina maior do nosso povo: a dura pesca do bacalhau em mares gelados e longínquos.

 

Fontes

Biblioteca Nacional de Portugal em linha

www.purl.pt

Folha de Lisboa

Nº programa – 11 out 1893

Diário Illustrado

27º ano¸ nº 9072 – 27 jun 1898

O Comércio do Porto

XXXVII ano; nº58 – 5 mar 1890

 

Hemeroteca Digital Brasileira

Coleção Digital de Jornais e Revistas da Biblioteca Nacional (bn.br)

A Epocha

Ano II, nº30 – 12 fev 1890

 

Conhecer, tratar e combater a «peste branca» - A tisiologia e a luta contra a tuberculose em Portugal (1853-1975), de Ismael Cerqueira Vieira; Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória – Universidade do Porto; Edições Afrontamento – 2015. Disponível em: www.sigarra.up.pt

 

Jornal da Sociedade Pharmaceutica Lusitana

Texto de Silva Machado - 1888

Disponível em:

www.cdf.pt

 

Educação e Difusão da Ciência em Portugal A “Bibliotheca do Povo e das Escolas” no Contexto das Edições Populares do Século XIX, Dissertação de Mestrado em Formação de Adultos e Desenvolvimento Local  de Olímpia de Jesus de Bastos Mourato Nabo; Escola Superior de Educação de Portalegre - Instituto Politécnico de Portalegre – 2012. Disponível em Olímpia de Jesus de Bastos Mourato Nabo.pdf (rcaap.pt)

 

O português que enriqueceu com sobras peixe … e muita persistência

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Teve dezenas de trabalhos e negócios. Foi sempre à procura de mais e melhor, batalhando de sol a sol, inovando e arriscando sempre. Esta é a história do açoriano que chegou à América sem nada e fez fortuna com o peixe que ninguém queria.

 

Lourenço Oliveira embarcou para a América no dia do seu aniversário, a 27 de março de 1903. Aos 16 anos, franzino para a idade, levava pouco mais que a roupa vestida – cinco dólares emprestados. Quando voltou aos Açores, 45 anos depois, era um dos homens mais ricos de San Diego, Califórnia, proprietário, sócio ou administrador de dezenas de firmas, até de um banco. Mas, tudo começou com o peixe.

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Natural da Calheta de Nesquim, Pico, seguia no encalço emigratório de outros açorianos, alguns da sua família. Desconhecia totalmente o inglês e nem na sua língua sabia ler ou escrever. Só aos 18 anos, com o triplo da idade dos seus colegas, é que aprenderia as primeiras letras.

Depressa percebeu que a América não era o tal país com ouro nas ruas, que alguns apregoavam.

Tratou de animais de quinta; partiu pedras com um malho; foi varredor; laborou numa fiação; em padarias; na distribuição de encomendas e materiais de construção – conduziu um dos primeiros camiões da cidade – e foi guarda-livros por instinto. Sempre que se sentia estagnar, mudava.

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Seria sempre assim, em busca de melhor, que seguiria com a sua vida – “Para atrás [só] anda a lagosta”, era o seu mote.

Foi quando entrou no negócio do peixe que começou a prosperar.

Aí, até acertar, experimentou quase tudo:  venda porta a porta e à distância; conservas; preparação de lagostas... Como bom ilhéu, foi junto ao mar, no cais de San Diego, que o seu sucesso começou a afirmar-se.

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Comprou um triturador, arrendou um espaço na doca e, com isso, engendrou um sistema que permitia fornecer diretamente os navios com gelo picado, evitando transporte e derretimentos desnecessários.

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Em pouco tempo, já tinha dois destes, consoante a dimensão dos navios. Foi o primeiro negócio inteiramente por sua conta que, em paralelo com outros, durou cerca de 15 anos. Depois juntou-lhe guinchos para içar as caixas de peixe, cobrando pela sua utilização.

 

Trocou o produto fresco, pelo seco, inventando um secador coberto e articulado, mais rápido e eficiente do que os que se usavam até então.

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O seu maior projeto, no entanto, surgiu da transformação dos desperdícios de atum em adubo e ração para galinhas. Fê-lo durante 40 anos.

Tinha capacidade para processar 25 toneladas de peixe por hora, que rendiam até duas mil toneladas de farinha por mês.

A sua American Fisheries Company era a maior do ramo no estado da Califórnia.

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Para tanto, foi necessário organizar excursões à fábrica, “educando” os potenciais clientes, nada habituados a utilizar aquele produto para alimentar galináceos. 

A estratégia resultou e as vendas dispararam. A nutritiva ração, o óleo e um novo solúvel de água espremida do peixe, que Lawrence introduziu no mercado, eram um sucesso.

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Quando as fábricas de conservas se mudaram, já a empresa se tinha convertido para fazer rações a partir do processamento de carne e ossos, antecipando-se. Conseguia absorver todas as sobras dos talhos e matadouros disponíveis do condado.

“Andava sempre à procura de qualquer coisa que encaixasse com os outros negócios” e, com isso em mente, também vendia o sebo à companhia de sabão e usara a capacidade instalada para produzir agar-agar* a partir de algas.

os portugueses em point loma.PNG

 

Foi assim igualmente que começou a fazer criação de porcos, alimentando-os com lixo doméstico tratado. Chegou a ter mais de um milhar de animais, com os quais produzia boa carne e fumados. Daqui à criação de gado bovino premiado foi um pequeno passo…

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E lançou muitos outros negócios paralelos, arriscando e pedindo dinheiro emprestado para o arranque: forneceu mercadoria para as tripulações dos navios; teve uma firma de confeção e venda de café líquido embalado e um cinema; foi armador de pesca; dono de um campo de golfe, armador de pesca e investidor imobiliário. “Nunca estava satisfeito, andava sempre à procura de algo mais, algo novo, algo melhor”, dizia.

 

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Entre tantos empreendimentos, viveu muitas aventuras e teve alguns dissabores. Pelo meio, perdeu tudo num incêndio, esteve um ano acamado com febre tifoide e suas sequelas, ganhou um processo judicial contra o Estado norte-americano; constituiu família e continuou a vingar, muitas vezes trabalhando 18 horas por dia.

 

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Lawrence Oliver, o nome que adotou quando frequentou a escola americana, morreu em 1978, com 91 anos. Embora se tenha oficialmente reformado tempos antes, manteve atividade – e controlo – sobre os negócios quase até ao fim.

 

 

À margem

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A caminhada para o sucesso de Lawrence Oliver foi árdua, mas deu frutos. Nunca se esqueceu das raízes, nem de quem o ajudou no início, tendo um papel agregador na comunidade portuguesa de San Diego, colaborando – e financiando – associações e projetos. Fez parte da direção de numerosas instituições e ajudou muitos portugueses que, como ele, rumaram ao “novo mundo” em busca de uma vida melhor.

Este açoriano foi por diversas vezes homenageado, quer pelo governo português, quer pelo brasileiro, porque lhe foram igualmente reconhecidas boas obras junto dos imigrantes brasileiros, apoiando a sua integração na nem sempre muito recetiva sociedade norte-americana.

Ambos os Estados o agraciaram com o título de Comendador, foi recebido em audiência pelo Papa e recebeu o título de Cavaleiro de São Gregório, um alto reconhecimento da igreja católica.

São múltiplas as homenagens de que foi alvo, em vários domínios, quer como empresário, quer como benemérito.

Curiosamente, Lawrence também teria um papel determinante na instalação do monumento que glorifica outro português e pelo qual Point Loma, a zona de San Diego onde viveu, é conhecida internacionalmente.

Trata-se da gigantesca estátua de João Rodrigues Cabrilho, o navegador que foi o primeiro europeu a desembarcar na Califórnia. É da autoria do escultor Álvaro de Brée e andou extraviada de Nova Iorque para São Francisco e depois para a Califórnia, foi prometida a várias cidades e esteve escondida numa garagem até que, por intervenção deste ativo açoriano, foi resgatada e colocada no sítio certo…

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Mas isso é outra historia…

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*agar-agar é uma espécie de gel obtido a partir de um determinado tipo de algas e muito usado em várias indústrias, quer pelas suas características físicas, quer pelos nutrientes que possui.

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Já aqui antes falei de outro português que enriqueceu com o lixo e os desperdícios que ninguém valorizava.

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Fontes

Para trás anda a lagosta, de Lawrence Oliver. Organização, tradução e posfácio de Francisco Cota Fagundes; Coleção Açores Cultural nº10; Ver Açor, Lda; Ponta Delgada, ago 2014.

 

Cabrillo National Monument Foundation Overview (npshistory.com)

 

Point Loma listing has ties to Portuguese pioneer - The San Diego Union-Tribune

Ágar-ágar – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Imagens

 Library Digital Collections | UC San Diego Library (ucsd.edu)

Documentos:

 16827-86 CD M0110 (1216-3282-0727) OP_16827-86

 84:14821-8 CD M0014 (0132-3301-3078) 84_14821-8

4533-5 CD M0006 (0132-3301-3108) 4533-5

OP 16264-1002 CD M0109 (1216-3282-0730) OP_16264-1002

OP 15748-682 CD M0105 (1216-3282-0454) OP_15748-68315748-682

OP 15748-643 CD M0105 (1216-3282-0454) OP_15748-643

UT 8248-888 CD M0099 (1216-3282-0448) UT_8248-888

 86:15877-714 CD M0083 (1216-3282-0646) 86_15877-714

 

 

Sensor, Guy (Guy Sidney), 1888-1969

5-187 CD M0091 (1216-3282-0726) 5-187

5-188 CD M0027 (0132-3301-3085) 5-188

 6-122 CD M0027 (0132-3301-3085) 6-122

 

Booth, Larry (Leonard D.), 1921-

: S-1388-3 CD M0024 (0132-3301-3046) S-1388-3

 S-1388-2 CD M0024 (0132-3301-3046) S-1388-2

S-1386-7 CD M0024 (0132-3301-3046) S-1386-7

 91:18467-112 CD M0034 (0088-3263-3280) 91_18467- 112

 

_1.pdf (ucsd.edu)

Ed Fletcher Papers. MSS 81. Special Collections & Archives, UC San Diego.

 

The Portuguese fishing families of Point Loma | San Diego Reader

 

San Diego History Center

https://photostore.sandiegohistory.org/

SDHS 3082; 484; 81:9628

Quando a rainha voltou

dona amelia visita janela.PNG

 

Inusitadamente, uma morte e um nascimento muito especiais marcaram o regresso da antiga monarca, numa verdadeira romagem de saudade atentamente acompanhada pelas autoridades do Estado Novo.

 

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Pisou solo português no dia 17 de maio de 1945, 35 anos após a partida forçada. Amélia de Orleães visitou o nosso país numa jornada nostálgica rodeada de peripécias e sob o olhar vigilante de Salazar, aqui apresentado como magnânimo governante que permitiu o regresso da rainha sem trono, embora não autorizando banhos de multidão.

A estadia ficaria inusitadamente marcada por uma morte e por um nascimento diretamente relacionados com a soberana exilada que, qual avó dos netos dos outros, se fez rodear de crianças nas suas obras sociais, sobreviventes à República.

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A deslocação, de mês e meio, tinha o único “piedoso propósito” de passar alguns momentos com marido e filhos, que repousam no Panteão dos Bragança, em São Vicente de Fora, mas acabou por ser muito mais do que isso.

Mesmo sem que a agenda fosse pública, a notícia correu de boca em boca e, junto ao Hotel Aviz, onde ficou hospedada, em Lisboa, ou por onde se pensasse que a “rainha velhinha” iria passar, logo as ruas se enchiam de multidões “de quem a conheceu e que a queria conhecer”, amigos, antigos colaboradores, monárquicos “órfãos”, mas também muitos anónimos cheios de curiosidade em relação à real anciã, apesar do “limitado séquito que as instituições policiais consentiam”.

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De majestosa cabeleira branca, sempre irrepreensível na sua simplicidade, distribuiu agradecimentos, acenos e palavras amáveis, rejeitando as lágrimas que viu em muitas faces. Tinha a memória fresca, tratando pelo nome os que com ela haviam privado e lembrando-se de pormenores antigos.

Até 30 de junho, data em que abalou como chegou, de comboio, no apeadeiro de Entre Campos, Dona Amélia visitou Lisboa, Sintra, Fátima, São Martinho do Porto, Foz do Arelho, Buçaco, Alcobaça, Batalha, Mafra, Ericeira, Cascais e Queluz – Ver à margem.

A antiga rainha foi também muito requisitada durante o tempo em que esteve entre nós. A receção de despedida reuniu mais de 1500 convivas, mas alguns tiveram a sorte de ser recebidos em cerimónias restritas. Para Luís Teixeira de Sampaio, a emoção de tal privilégio seria fatal.

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A 6 de junho, o secretário–geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, eminência parda desse organismo, não aguentou e sucumbiu em pleno beija-mão, caindo aos pés da velha soberana, que tanto admirava.

A imprensa da época ocultou o facto, afirmando que se sentiu mal, morrendo já em sua casa.

Dona Amélia marcou presença no muito abrangente velório e a inesperada morte fez manchete nos jornais da época.

Esta, aliás, foi uma das notícias que contribuíram para ofuscar o impacto da visita da soberana exilada. O contexto que se vivia era pródigo em novidades, a começar por todas as movimentações relacionadas com o final da guerra – as negociações, descoberta dos campos de concentração, as perseguições aos oficiais nazis - passando pelo noticiário nacional, da estreia do filme Casablanca à inauguração da Feira Popular, a 30 de maio.

Precisamente nesse dia, à margem do programa real, na igreja de São Domingos, em Lisboa, celebra-se uma muito concorrida missa de graças por um nascimento ocorrido 15 dias antes no centro da Europa, mas que muito tinha que ver com Portugal.

Dona Amélia não comparece, alegadamente por questões de saúde, mas reza nos seus aposentos com a mesma intenção e faz-se representar no ato público pelo sempre fiel visconde de Asseca*, demonstrando a sua posição. O bebé nascido em exílio suíço é D. Duarte Pio, descendente do controverso e banido D. Miguel.

Um ano após este acontecimento e muitas intermediações depois, nomeadamente do próprio Salazar, a antiga monarca acabaria por legar em testamento bens e direitos seus à criança que, entretanto, já tinha apadrinhado e que hoje é o mais conhecido pretendente ao extinto trono português.

 

À margem

Foram muitos os locais e receções a que a última rainha de Portugal compareceu.

Em Fátima, deixou um raro autógrafo e doou um manto que ainda é uma das peças mais importantes do museu do Santuário.

No Hotel Palace do Buçaco, ocupou os mesmos aposentos que haviam acolhido a família real em 1910. Pediu frugalidade nos repastos e rumou sozinha ao cedro de S. José, tradicionalmente o mais antigo daquelas matas**.

Em Sintra, passeou sozinha pelos corredores do Palácio da Pena, que tão bem conhecia, e na Ericeira quis rever o local de onde havia partido no dia em que se implantou a República em Portugal, para recompensar os pescadores que ajudaram no apressado embarque.

Em Alcobaça, acolheu uma pomba que, largada em sua honra, entrou inusitadamente no carro e, pelo caminho, para além das habituais flores, as gentes daquelas terras férteis, vestidas com seus fatos domingueiros, queriam presenteá-la com loiças, hortaliças e frutas, enfim qualquer coisa que mostrasse o seu apreço pela ilustre visitante.

Na emotiva sessão no Dispensário de Alcântara, que havia criado meio século antes para apoiar as famílias pobres, fez questão de servir o lanche aos mais pequenos, quis saber de todos os pormenores de gestão, até da qualidade do leite. Deixou em lágrimas muitos dos que ali acorreram a agradecer o conforto proporcionado por aquele serviço social.

Visitou o Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, também obra de sua iniciativa e, mesmo sem ir ao Porto, deixou 500 contos para que se concluísse o pavilhão infantil do Sanatório D. Manuel II. Entregou mais 200 contos à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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Em todo o lado disse para não lhe dizerem adeus, mas sim “boa volta”.

Não voltaria mais por seu pé, mas apenas por sua vontade.

Morreu em 25 de outubro de 1951, depois de mais de 50 anos de exílio, 19 dos quais sem família, e foi enterrada no mesmo País que a havia expulsado.

No seu funeral, com honras de Estado, foi impossível conter as multidões.

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Mas isso é outra história…

………………….

 

* Salvador Correia de Sá e Benevides Velasco da Câmara

**derrubado pelo vento em 2013, com mais de 300 anos de idade.

 

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Fontes

Fundação Mário Soares

www.casacomum.org

Diário de Lisboa

Ano 25º; nº 8073 - 18 mai 1945

Ano 25º; nº 8074 - 19 mai 1945

Ano 25º; nº 8077 - 22 mai 1945

Ano 25º; nº 8078 - 23 mai 1945

Ano 25º; nº 8079 - 24 mai 1945

Ano 25º; nº 8085 - 30 mai 1945

Ano 25º nº8089 - 03 jun 1945

Ano 25º nº8090 - 04 jun 1945

Ano 25º nº8091 - 05 jun 1945

Ano 25º nº8092 - 06 jun 1945

Ano 25º nº8095 - 09 jun 1945

Ano 25º nº8102 - 16 jun 1945

Ano 25º nº8109 - 23 jun 1945

Ano 25º nº8110 - 24 jun 1945

Ano 25º nº8111 - 25 jun 1945

Ano 25º nº8116 - 30 jun 1945

 

A volta da Rainha a Portugal (documentos vivos), de Bertha Leite; Ex-Libris - Lisboa; Centro Tipográfico Colonial  – mai-set 1945

Vidas surpreendentes, mortes insólitas da história de Portugal, de Ricardo Raimundo; Esfera dos Livros; 2011, citando Alberto Franco Nogueira em Salazar, 5ª edição, Vol. III . As grandes crises (1936-1945), Atlântida Editora; Coimbra – 2000.

A história de um cedro que o vento levou | Ambiente | PÚBLICO (publico.pt)

Ligação da Família Real com os Viscondes de Asseca - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)

ALGUNS PORMENORES SOBRE A VISITA DA RAÍNHA DONA AMÉLIA DE ORLEANS E BRAGANÇA A PORTUGAL | Estórias da Linda-a-Velha (wordpress.com)

Visita da Rainha D.Amélia a Portugal (1945) - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)

Artigo sobre a visita da Rainha D.Amélia a Portugal (1945) - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)

O nostálgico Natal da rainha D. Amélia - DN

Jornal de Leiria - Museu de Fátima trabalhou oito meses no restauro do Manto da Rainha D. Amélia

Destak.pt | República/100 anos: Embarque do rei para Inglaterra relembrado a partir da tradição oral da Ericeira

Estado Sentido (sapo.pt)

 

Imagens

Arquivo Municipal de Lisboa

Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)

Judah Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/004273

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/004277

………….

Paulo Dias

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/FMC/000093

……………

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/FMC/000094

……………….

Neogravura, Lda  

 

Instantâneos (76): o mestre da palavra

 

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O mestre está absorto nos seus pensamentos. Aliás, todos aparentam alheamento, não reparando que o fotógrafo os observa ou assim se apresentando por indicação deste. Todos, à exceção do menino de olhar vivo que nos fita com um vago sorriso nos lábios e da senhora que, no edifício do outro lado da rua, parece observar de soslaio a cena que aqui se desenrola. Não sei quem são as crianças ou a mulher, mas o homem não poderia estar mais bem enquadrado, pois que foi o autor do método que ensinou várias gerações de crianças a ler.

 

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O indivíduo de longa barba e aparência descuidada é João de Deus. É com este mesmo ar pensativo e displicente que surge em muitas das imagens que o recordam. A sua mente parece vaguear e provavelmente é isso mesmo que acontece, porque sabemos que escreveu numerosas abstrações em forma de poesia.

 

O interesse pelo ensino só se deu tarde. João de Deus de Nogueira Ramos (1830-1896) foi um boémio que demorou dez anos a concluir o seu curso em Coimbra e se desdobrou em biscates literários e jornalísticos para se sustentar, enquanto transpunha para o papel o que lhe ia na alma, granjeando grande admiração como poeta romântico.

 

Ficou célebre também como conversador, desenhador e músico. Na verdade, fez de tudo um pouco para ter o espírito ocupado e pagar as contas – chegou a costurar para um grande armazém de roupa de Lisboa – embora rejeitasse as amarras de um pagamento fixo. Os bens materiais não lhe interessavam.

 

Foi até “empurrado” para a eleição como deputado, não fazendo grande caso desse cargo,

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Parece ter sido apenas quando de se dedicou à alfabetização, um grande problema do Portugal de então, que encontrou o rumo de vida.

 

A célebre Cartilha Maternal, revolucionária para a época (1876), propunha um método novo para aprender. Inovador foi também o impulso de ir País fora ensinar a ler e preparar professores para lecionar sob este novo processo.

 

O outrora aluno pouco aplicado fundaria a sua própria escola e persistiria no estudo da pedagogia, escrevendo e publicando diversas obras

 

Seria amplamente homenageado em vida e já depois de morto . repousando junto de outros grandes portugueses, no Panteão Nacional - mas a maior consagração, no entanto, talvez tenha sido a longevidade e sucesso da sua Cartilha, em cujas páginas muitos milhares de discípulos desvendaram os segredos da arte de ler.

 

Ali, era a palavra – e não a letra – o que estava no centro da aprendizagem. Não seria de esperar outra coisa  de um poeta, não é?

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Fontes

A Cartilha Maternal ou Arte de Ler de João de Deus (1876): invenções tipográficas e alfabetização popular em Portugal; de Justino Magalhães; Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.

Disponível em: Repositório da Universidade de Lisboa: A Cartilha Maternal ou Arte de Ler de João de Deus (1876): invenções tipográficas e alfabetização popular em Portugal

Associação de Jardins Escolas João de Deus (joaodeus.com)

João de Deus de Nogueira Ramos – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Site Autárquico da CM Silves CONVERSA-DEBATE SOBRE “A CARTILHA MATERNAL (cm-silves.pt)

João de Deus - Infopédia (infopedia.pt)

João de Deus, de S.Bartolomeu de Messines ao Panteão Nacional (rtp.pt)

A Viagem dos ArgonautasJOÃO DE DEUS E O ROMANTISMO SOCIAL PORTUGUÊS – por Sílvio Castro

Arquivo Municipal do Porto

Gisa (cm-porto.pt)

Emílio Biel e Companhia

Código parcial F.NP:1-EB:9:34