Portugal revisitado na Grand Exposition
Um século depois, moveram-se céus e terra para encontrar as obras que representaram Portugal na “feira do mundo”, a que Paris assistiu em 1900. Algumas estavam irremediavelmente perdidas.
Finda a Exposição Universal de Paris de 1900, um vasto lote de obras-primas da pintura e escultura nacionais perderam-se para sempre num naufrágio. Mas, e se fosse quase tão difícil localizar as peças de arte que regressaram como as que se afundaram? Um século depois, a Gulbenkian quis fazer isso mesmo, mas teve de mover céus e terra e percorrer todo o País. Mesmo assim, não se encontraram todas as “sobreviventes”.
O resultado foi um retrato fidedigno de Portugal um século antes, muito diferente daquele que hoje conhecemos. “Uma enciclopédia completa da nossa civilização ao terminar o século XIX”, como perspetivava Ressano Garcia – Inspetor-geral das secções portuguesas - à entrada da marcante “feira do mundo” na cidade-luz.
Afinal, o nosso País esteve representado com o que de melhor tinha, ali se exibindo bens gerados nos nossos territórios, aquém e além-mar: da agricultura, ao vinho; das madeiras e cortiça, às inevitáveis conservas; da caça, à pesca; passando por exóticos produtos coloniais.
As diretrizes apontavam para privilegiar as mercadorias que pudessem “vir a ter significação real e valor efetivo na esfera do nosso comércio de exportação”, defendia Elvino de Sousa e Brito, então ministro das Obras Públicas.
Portugal quis mostrar-se moderno, apesar do atraso tecnológico em relação a outras nações europeias, dando a conhecer instituições de ensino, trabalhos de impressão; maquinaria diversa, indústria e mecânica; minério, transportes e projetos de arquitetura. Ainda assim, estivemos ausentes na temática “Eletricidade” e estas áreas, compreensivelmente, tiveram menos de metade do volume dos expositores nacionais presentes nas secções agrícola e de pescas, então com um peso esmagador na débil economia lusa.
Os pavilhões e todas as áreas comuns ocupadas pelo nosso País estavam profusamente decorados com arte simbólica das nossas gentes, em representações tão variadas como os nós de marinheiro e as rendas. Tetos, frisos, painéis pintados, esculpidos e moldados com o que era Portugal e a sua história, dando destaque à óbvia epopeia marítima. Havia até um vasto “passeio de mosaico à portuguesa” – calçada – já então valorizado pelo comissário Visconde de Faria, como “uma das obras mais genuinamente portuguesas da exposição”.
Acrescentem-se azulejos, porcelana, ourivesaria, mobiliário intrincadamente trabalhado e, claro, muita pintura (123 quadros) e escultura (38 peças) de artistas de topo em 1900.
Segundo a organização, Portugal recebeu 1508 prémios. Os sectores que granjearam maior número de grand prix e medalhas de ouro foram os nossos vinhos e os produtos alimentares de origem vegetal.
Em belas artes, alcançámos 32 galardões, com os de maior importância entregues a Columbano Bordalo Pinheiro, José Veloso Salgado (pintura) e António Teixeira Lopes (escultura).
Para um país pequeno e, apesar das colónias que então possuía, apontado como miserável, não parece nada mau, não é?
Postas as coisas em perspetiva, pode entender-se como sinal da nossa relativa irrelevância, a ausência de qualquer referência a artistas portugueses na mostra que, também em Paris, assinalou um século sobre a grande exposição.
Se a preparação da nossa presença foi polémica, pode dizer-se o mesmo da desmontagem, em que não faltaram peças deixadas para trás, nunca reclamadas pelo governo português e outras que chegaram incompletas.
Algumas obras seguiram diretamente para outras exposições, em Dresden e São Petersburgo.
Regressaram a Portugal 112 peças de arte, por comboio e em três navios que alcançaram bom porto: os vapores Saint Jacques, Saint Barnabé e Gomes IV.
Só em maio, seis meses após o fim da exposição, é que os numerosos e diversificados volumes começaram a ser entregues aos proprietários, tal a morosidade das formalidades aduaneiras.
Mas, o pior mesmo foi o afundamento do Saint André, onde se perderam cerca de quatro dezenas de óleos, esculturas e documentos.
Para perceber a dimensão do “estrago”, foi preciso recuperar o processo do naufrágio, também ele desaparecido no tempo e na memória.
Ao todo, o investigador de serviço, José de Quintanilha Mantas, reuniu cerca de 400 páginas, distribuídas por vários locais, entre os quais o esconso e poeirento sótão do Ministério das Finanças. Foi uma busca tão interessante quanto difícil, que demorou dois anos.
Com ocorrências de norte a sul de Portugal, a Gulbenkian conseguiu identificar 96 peças patentes na grande exposição de 1900, mas algumas não puderam figurar na mostra de 2000, devido aos custos incomportáveis envolvidos, embora tenham estado patentes muitos outros objetos e documentação, que ajudaram a compreender quem eram os portugueses na viragem para o século XX.
À margem
A Grande exposição realizou-se numa época em que as classes dominantes portuguesas tinham um verdadeiro fascínio por tudo o que fosse francês e, especialmente, parisiense. A elite seguia atentamente as modas com essa origem e era comum e chique o uso de palavras francesas para designar peças de roupa, pratos ou objetos de uso diário. Não é difícil de supor que a visita ao evento só tenha estado ao alcance de um grupo muito restrito de portugueses. António Pereira de Vasconcelos da Rocha Lacerda e Melo foi um destes privilegiados. Natural de S. João Baptista (Ponte da Barca), deixou um raro e fascinante relato na primeira pessoa dos dias que passou, com um grupo de amigos, explorando a feira universal e as outras atrações da cidade.
É muito curioso ver a sua interpretação do que vai vendo. O que o impressionou – o aparato, as construções, bem como as belas mulheres, francesas e não só -; a sua estranheza pelos modos e indumentárias de paragens exóticas e o que lhe suscitou deceção, como alguns espetáculos destinados a “extorquir” os mais incautos e os espaços ocupados pelo nosso País, a começar pelo pavilhão da rua das Nações, “uma espécie de barraca de feira”, passando pelo deficiente atendimento. Elogios, no entanto, aos produtos nacionais, como os vinhos, ou não estivesse este barquense em Paris na companhia de um produtor do famoso néctar.
Uma nota curiosa é a forma como António Pereira de Vasconcelos da Rocha Lacerda e Melo - cujo cosmopolitismo e cultura são evidentes - analisa japoneses e chineses que encontra no certame. Elogia os primeiros, já “europeizados”, e critica os segundos, com os seus trajes tradicionais, algo imundos, “aferrados às suas tradições”, “insuscetíveis de emenda, contumazes no erro”, sendo “encarados com mofa e troça”. Todos riam dos chineses e do seu atraso. Quem será que ri agora?
Mas isso é outra história…
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Já aqui antes falei da exposição de 1900 contando o trágico naufrágio do Saint André:
O dia em que as obras-primas portuguesas foram por água abaixo - O sal da história (sapo.pt)
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Fontes
Le Portugal Portugal à l’Exposition – Organo des exposants portugais
nº1 a 17 – 23 mar - 6 nov 1900
Portugal 1900; catálogo de exposição - Museu Calouste Gulbenkian – Lisboa - 29 jun -10 set 2000; Fundação Calouste Gulbenkian
1900; catálogo de exposição Galeries Nationales du Grand Paiais – Paris - 14 mar – 26 jun 2000; Réunion des Musées Nationaux
Relato de José de Quintanilha Mantas a quem agradeço também a generosa disponibilização das obras anteriormente mencionadas.
Arquiteturas expositivas e identidade nacional: Os pavilhões de Portugal em exposições internacionais entre a Primeira República e o Estado Novo; dissertação para obtenção do grau de mestre em Arquitetura de Teresa João Baptista Neto; Instituto Superior Técnico – maio 2016. Disponível em Dissertação · Mestrado Integrado em Arquitectura (ulisboa.pt)
Um Barquense na Exposição Universal de Paris de 1900 – Apontamentos de viagem, de António Pereira de Vasconcelos da Rocha Lacerda e Melo; introdução, notas e transcrição de António Andresen Guimarães, edição da Câmara Municipal de Ponte da Barca – 2013.
Agradeço a António Andresen Guimarães a disponibilização desta obra tão interessante e que eu desconhecia.
Outras imagens
Recinto da exposição
Lucien Baylac (1851–1913)
Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos: ppmsca.15645
Autor desconhecido; digitalização de Paul Souze sobre poster original
Vasco da Gama perante o Samorim de Calecute - Veloso Salgado
Domínio público
Arquivo Municipal do Porto
Caridade – António Teixeira Lopes
Foto Guedes
Identificador 359278 Código parcial F.NV:FG.M:9:1190
Museu Nacional de Arte Contemporânea
Chávena de chá – Columbano Bordalo Pinheiro