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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (80): barbeiros ou carniceiros?

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É bem sangrento o passado para o qual remetem os postes rotativos onde brilham riscas encarnadas, brancas e azuis e que, por todo o País, são ostentados na fachada dos estabelecimentos pelos barbeiros de nova geração. Saberão eles no que se metem?

O poste ou “barber pole”, como é conhecido, remonta a tempos imemoriais em que o barbeiro era também o mais comum cirurgião, estatuto que manteve durante séculos.

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Também em Portugal e quase até aos nossos dias, especialmente em meios pequenos, onde não abundavam médicos, estes profissionais, para além das tradicionais “barba ou cabelo?”, eram uma espécie de resolve tudo na luta do homem contra a dor, quer fossem estabelecidos em casa própria ou andassem de terra em terra cumprindo esse verdadeiro serviço público.

Extraíam dentes a coberto de uma aguardente forte ou outro qualquer líquido capaz de atordoar o paciente e ainda desinfetar a ferida.

Mas, não se ficavam por aqui. Os que tinham feito o necessário treino com o cirurgião-mor possuíam autorização para operações arriscadas, o que se manteve até finais do século XIX.

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A cirurgia era a “enteada” das ciências médicas.

Durante muito tempo, os barbeiros-cirurgiões executavam “pequenas” operações, cauterizavam feridas, eram entendidos – ou curiosos – do uso de plantas e raízes para fins medicinais e tinham – ou alugavam - sanguessugas que utilizavam nas suas atividades. Chegavam a praticar trepanações, mas uma das ações mais comuns eram as sangrias.

Com o sangue, drenavam-se as maleitas que atormentavam o paciente e repunha-se o equilíbrio dos humores

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Tinham – e ainda têm - a enorme vantagem de ser o principal antro da cusquice.

Retinham as últimas novidades da terra e passavam-nas ao próximo. Uma pessoa podia sair do barbeiro sem um dedo que estava a gangrenar, mas sempre tinha notícias frescas para contar…

 

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Mas, não encontrei memória que em Portugal se usassem os tais “barber pole”, antes, faziam-se anunciar com dizeres pintados nas paredes exteriores dos estabelecimentos, numa tabuleta metálica ou numa esfera idêntica às que se usam em Inglaterra à porta das casas de penhores.

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Como sempre gostámos de imitar tudo o que é estrangeiro, era frequente em vez de barbeiro escrever-se “coiffeur” ou “hair-dresser”, pouco impontando que saber ler, ainda que em português, fosse uma raridade.

Pois o tal poste, hoje tão divulgado entre as camadas mais jovens, avisava quem passava – sem que fossem precisas palavras -  que aquele barbeiro era versado nessas intervenções “médicas”.

Só que não era uma peça brilhante como as que agora vemos, era uma espécie de coluna onde penduravam ligaduras e panos usados nessas operações e, por isso, bastas vezes manchados de sangue do último desgraçado.

As ataduras eram postas a secar ao vento e enrolavam-se umas nas outras, formando o padrão que os postes modernos pretendem recriar. O azul parece ser apenas um acrescento norte-americano, aludindo às cores da bandeira das estrelas.

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Fontes:

Bloody History of Barber Surgeons, texto de Semran Thamer, Medical Dialogue Review. Disponível aqui: mdrnyu.org

 

https://lifecooler.com/artigos/museu-do-barbeiro-e-cabeleireiro/19356/

Joaquim Pinto - Pinto's Cabeleireiros: OS BARBEIROS E A SUA HISTÓRIA (joaquim-pinto.blogspot.com)

 

Barber Pole: conheça a curiosa história do símbolo da barbearia (cursodebarbeiros.com.br)

A trajetória de médicos e barbeiros no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX; Rodrigo Aragão Dantas; História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro - v.22, n.3, jul.-set. 2015, p.1043-1050. Disponível em: 0104-5970-hcsm-22-3-1043.pdf (scielo.br)

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/04/037

Arquivo Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000977

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000917

 

Machado & Sousa

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/001838

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/001225

 

Helena Corrêa de Barros

PT/AMLSB/HCB/001/000016

 

 

Quando o terror andou à solta pelos montes

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Dizimaram rebanhos a tiro e golpes de foice, arrasaram searas, destruíram colmeias, incendiaram e roubaram. Prometeram um banho de sangue aos que teimaram em permanecer nas suas terras. A “guerra dos montes” ditou o fim de três aldeias.

 

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Diz o ditado que “se queres ver um pobre soberbo, dá-lhe a chave do palheiro”. O que acontecerá então se ele se tornar dono das terras onde vivem outros mais pobres do que ele? Em pleno século XX, a ganância virou vizinhos contra vizinhos, espalhou a violência e a destruição, apenas deixando ruínas onde antes vivia gente em paz. Este conflito que devastou três aldeias ficou conhecido como a “guerra dos montes”.

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Por escritura assinada a 6 de outubro de 1923, foram 604 as famílias do Rosmaninhal (Idanha-a-Nova) que se tornaram proprietárias das terras que tinham pertencido ao 1º Visconde de Morão e onde existiam as localidades de Cobeiras, Alares e Cegonhas (Velhas), habitadas por cerca de 1200 indivíduos. A selvajaria teria início logo no dia seguinte.

Cerca de dois mil rosmaninhalenses invadiram Alares, queimaram palheiros, destruíram hortas e alfaias agrícolas. Seria a primeira de muitas incursões naquele e nos outros dois aglomerados.

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Durante dois anos, os do Rosmaninhal, manipulados por outros interessados na contenda ou tomando as dores dos seus que não podiam tomar posse do que haviam comprado, espalharam o pavor entre os outros povos que ali viviam havia muito, com a anuência dos anteriores senhores, a quem pagavam um tributo.

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Tudo serviu para tentar expulsar os “monteses”. Destruíram centenas de colmeias, dizimaram rebanhos a tiro e golpe de foice; arrasaram searas; colheram bolota que não lhes pertencia; roubaram e deitaram fogo ao que encontraram pelo caminho. Agrediram homens, mulheres e até crianças. Ameaçaram com um banho de sangue os que teimaram em ficar.

Em paralelo, as partes esgrimiam argumentos em processos judiciais que se arrastaram nos tribunais e alguns importantes da zona lograram retirar proveito desta luta sem quartel que as autoridades locais tentaram, em vão, apaziguar.

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As gentes de Rosmaninhal recusaram acordos. Já não pareciam querer apenas o que pertencia a alguns dos seus. Antes, pareciam nutrir pelos povos de Cobeira, Alares e Cegonhas (Velhas) um ódio irracional.

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Em meados de 1925, o cansaço e o desânimo começaram a tomar conta dos acossados.

Eram em menor número que os inimigos, encontravam-se dispersos e enfraquecidos.

Pouco a pouco, foram abandonando o chão onde havia um século se haviam refugiado, fugidos das invasões francesas e de outros perigos. Ali tinham desbravado as terras incultas até lhes darem sustento, construíram as suas casas e criaram família.

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Aos poucos foram partindo. Os de Alares rumaram a Raiz, os de Cegonhas fundaram outra povoação com o mesmo nome não muito longe dali, e os de Cobeira distribuíram-se pelos dois locais. Fundaram-se novos montes, Soalheiras e Coutos de Correias. Um grande número seguiu para Malpica do Tejo, Ladoeiro e Monforte da Beira, onde alguns tinham origem remota.

O assunto, que na “cidade grande” ficou conhecido como a “questão do Rosmaninhal”, foi falado na imprensa e até pelos deputados da Nação.

Mas, talvez pela distância e apesar do alarde, a solução só ficaria selado já na década seguinte, sete anos depois do seu início, com intervenção ministerial.

O Estado expropriou as terras e fê-las dividir em 759 glebas, de idêntica dimensão e valor produtivo, que sorteou por igual número de interessados, alguns dos quais tiveram de endividar-se junto da Caixa Geral de Depósitos para poder adquirir o seu quinhão.

Foi uma operação demorada e complexa, que exigiu bom senso e diplomacia.

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Houve a preocupação de não atribuir parcelas próximas a adjudicatários do Rosmaninhal e das outras aldeias, prevenindo conflitos, porque houve feridas que insistiram em não sarar.

Tantos aos depois, em Alares, Cobeira e Cegonhas (Velhas) persistem as ruínas das casas abandonadas à pressa e das vidas interrompidas, espetadoras silenciosas desses estranhos tempos em que o terror andou à solta pelos montes.

 

 

À margem

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José António Morão – o 1º Visconde de Morão - foi uma figura importante em Castelo Branco. Grande proprietário, industrial – fundador da fábrica de lanifícios Morões e Cª – foi também provedor da Santa Casa da Misericórdia e deputado, para além dos cargos políticos assumidos localmente. Não terá, no entanto, escapado à acusação de fraude eleitoral nas eleições de 1847, na sequência das quais houve grandes tumultos em que a sua própria segurança esteve em causa.

Foi por morte do seu filho, José Guilherme de Paiva Morão, que se deram as partilhas por quatro herdeiros que resultaram na denominada “guerra dos montes”, com a venda das aldeias no termo do Rosmaninhal.

jose guilherme de paiva morao.jpgJosé Guilherme foi igualmente pessoa destacada na região. Esteve entre os fundadores da agência do Banco de Portugal em Castelo Branco e às terras herdadas de seu pai juntou outras compradas a bom preço nos leilões que alienaram os bens de algumas ordens religiosas entretanto extintas. Teve em vida a sua dose de violência e revolta popular.

De facto, entre os terrenos que adquiriu estava, em 1889, a Herdade do Soudo, no termo de Zebreira, igualmente no concelho de Idanha-a-Nova. Os problemas começaram quando o novo senhor quis tomar posse plena e as gentes daquele lugar não aceitaram tal sujeição, repelindo-a veementemente. Não faltaram desacatos violentos e ações judiciais de parte a parte.

Mais hábil que os seus sucessores no Rosmaninhal, José Guilherme e os lavradores residentes acabariam por chegar a um acordo que vigoraria até 1954, já depois da morte do proprietário, ocorrida em 1920.

A herdade acabaria por ser comprada pela Junta de Freguesia de Zebreira que, não tendo meios para tal, pediu dinheiro emprestado ao próprio Estado, contraindo uma dívida que só ficou totalmente paga em 1983.

Mas isso é outra história…

 

 

 

Fontes

Rosmaninhal – Lembranças de um mundo cheio - Monografia, de Mário Chambino – AÇAFA – Associação de Estudos do Alto Tejo; 2000. Disponível em: Calaméo - Monografia do Rosmaninhal (calameo.com)

 

 

Diário de Lisboa, nº, 17 jun 1925 Disponível em www.hemerotecadigital.cm-lisboa.pt

 

A elite municipal de Castelo Branco entre 1782 e 1878; Dissertação de mestrado em História do Século XIX e XX, de Nuno Manuel Camejo Carriço Pousinho; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Universidade Nova de Lisboa – 2001. Disponível em:
https://run.unl.pt

 

Consanguinidade próxima ao dr. Ribeiro Sanches (1699-1783), de Pedro Valadares; Revista da ASBRAP - Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia nº 19. Disponível em: http://www.asbrap.org.br

 

Diário da câmara dos deputados - Sessão N.º 87; 21 maio 1924. Disponível em: https://debates.parlamento.pt/

 

Análise Grandeza e decadência, de Elisa Calado Pinheiro, citando Elisa C. Pinheiro, Rota da Lã…, vol I, 2008, pp.  263-264. Disponível em:

Notas de Circunstância: Análise Grandeza e decadência (notasdecircunstancia.blogspot.com)

 

Sete séculos e meio: profundidade histórica de um sistema de produção arcaizante, de Pedro Manuel Agostinho da Silva; Textos de História. v 5. n- 2; Universidade Federal da Bahia – 1997. Disponível em: https://periodicos.unb.br

 

Viver a Raia, - Newsletter da Associação Raiaeventos . Dez 2017 -citando texto de Pedro Rego. Disponível em: Viver A Raia 1 (calameo.com)

Diário do Governo; I Série, nº 61 – Decreto 22316 – 16 mar. 1933.

Diário do Governo; I Série, n.º 70 – Retificação - 27 mar 1933

 

Disponível em: Diário da República Eletrónico - DRE

 

Agência do Banco de Portugal em Castelo Branco - Banco de Portugal - Archeevo (bportugal.pt)

www.geneall.net.pt

 

 

Imagens

 

Revista Viver a Raia - Newsletter da Associação Raiaeventos . Dez 2017 -Imagens cedidas pela família Lobato Pina e recolhidas por Vítor Camisão. Disponível em:

Viver A Raia 1 (calameo.com)

 

http://www.transumancia.com/evento/alares-rosmaninhal

 

https://andarilho.pt/

 

www.geni.com

 

Instantâneos (79): a vida airada de Micas Gouveia

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Micas Gouveia ficou famosa na Lisboa dos anos 20 e o seu nome chegou até a ser falado no Parlamento. Não que se lhe devessem atos heroicos ou artísticos, mas pelas piores razões. A 1 novembro de 1926 – Dia de Todos os Santos - depois de anos de muito esforço e determinação, seria presa pela centésima vez. Era a larápia mais conhecida daqueles tempos.

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O “feito” mereceu honras de primeira página em alguns órgãos de comunicação social, que pintaram Micas como o resumo dessa Lisboa afastada das ruas largas e dos holofotes, “um pouco de Mouraria e Alfama” na mesma figura. Mouraria no trajo, onde as chinelas de varina haviam sido substituídas pelos “sapatinhos vermelhos de duraque*”, saia em balão aos quadrados e xaile felpudo “cortado à marialva sobre o peito forte”. Alfama, pela imagem de “severa das ruas”, “fácil no sentimento e no amor, sempre às contas com a polícia”.

Um ano antes, o nome desta ratoneira viria à baila na luta política, com um deputado a acusar outro de querer alterar a lei para favorecer Micas, alegadamente sua cliente, pois o parlamentar era advogado - nada que já não tenhamos visto, não é?

Não consta que tivesse, efetivamente, lucrado com essa disputa.  Antes, os proventos de Micas vinham todos dos diferentes domínios da sua “arte”.

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Era useira e vezeira do conto do vigário; sedutora fatal dos forasteiros incautos; experiente carteirista; sentinela atenta à mais ténue oportunidade de obter uns trocos ou outras vantagens. Esta fina-flor do entulho, seria também hábil a comover forças de segurança e juízes, que com ela eram relativamente brandos, tanto que, até àquela celebrada data nunca havia sido condenada ao degredo, que temia profundamente.

 

Em jovem usava “grossas arrecadas de ouro mourisco, cordões de peso, blusinhas de seda de todos os padrões”. Com o passar dos anos, o facto de ser tão conhecida trouxe-lhe muitos inconvenientes, ditando-lhe o insucesso e a pobreza, compensados com a simpatia de agentes e jornalistas, que conhecia pelo nome, a todos falando com desenvoltura e alegando inocência

 

Era sempre a principal suspeita da autoria de alguma “façanha” fortuita, mesmo quando nada tinha que ver com o facto que lhe era imputado. Talvez isso explique o aclamado recorde de detenções, atingido aos 37 anos, vinte de carreira iniciada logo após a saída do asilo para crianças desvalidas.

Dir-se-ia que a sua sorte estava traçada.

Não sei qual foi o futuro de Micas Gouveia. Quatro anos após este recorde, no entanto, era já apontada como rainha das gatunas de outrora, destronada por mulheres mais novas e seletivas.

Estas envergavam a última moda na roupa e nos cabelos, conduzindo automóveis vistosos. Apontavam apenas aos alvos mais endinheirados e, por isso, garante de rendimento digno desse nome. Eram profissionais.

………………….

*Tecido, espécie de sarja resistente usado em calçado de senhora.

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Fontes:

Fundação Mário Soares

http://casacomum.org 

Diário de Lisboa

Ano 5º; nº 1711 - 2 nov 1926

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt

 

O domingo Ilustrado

Ano 2º; nº 95 – 7 nov 1926

 

Repórter X

Ano 1º; nº 16 – 22 nov 1930

 

Assembleia da República

 

Debates Parlamentares - Diário 112, p. 1 (1925-08-14) (parlamento.pt)

Debates Parlamentares - Diário 111, p. 1 (1925-08-13) (parlamento.pt)

 

 

https://dicionario.priberam.org/

 

duraque - Dicionário Online Priberam de Português

 

A história atribulada dos primeiros censos modernos em Portugal

 

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Há 157 anos, os portugueses resistiram ao primeiro Recenseamento Geral da População, receando que servisse para aumentar impostos. Os padres foram excluídos, os resultados foram incompletos e controversos e a documentação está em parte incerta.

 

“Muitas pessoas se recusaram a prestar os devidos esclarecimentos, imaginando ver nestes trabalhos um fim mau e, para o conseguir, foi mister empregarem muita paciência e descer a muitas explicações”, até porque “na paróquia poucos são os que sabem escrever”. O desabafo data de 1864 e é do presidente de uma comissão igual a três centenas de outras criadas em todos os concelhos do País para levar por diante o primeiro Recenseamento Geral da População Portuguesa em moldes “modernos”.  Um processo atribulado, complexo e incompleto, “anos-luz” dos atuais censos, que estrearam o preenchimento online.

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O avassalador analfabetismo dos portugueses e a desconfiança que o questionário servisse apenas para fundamentar um aumento dos impostos foram apenas dois dos entraves que o recenseamento encontrou.

Foi a primeira vez que a igreja, leia-se, os párocos - responsáveis pela informação produzida anteriormente - ficaram formalmente afastados das operações.

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Nem sequer lhes foi pedido para colaborar na divulgação, o que terá sido um erro de estratégia numa época que Portugal, em especial o mundo rural, continuava a ter na religião católica o principal elemento orientador das condutas.

A organização passou, assim, para a administração pública: os governos civis, destes para os administradores dos concelhos e, abaixo, os regedores de paróquia que, ao contrário dos anteriores, nem auferiam qualquer valor pelo cargo que ocupavam. Talvez por isso, o governo instava que se animassem de “patriótico espírito” para levar tão espinhosa missão a bom porto.

No caso de Alcácer do Sal, que se terá repetido noutros concelhos, no entanto, é um padre quem lidera o processo. É dele o lamento no início deste texto, mas os problemas são relatados um pouco por todo o País.

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Desde logo, a própria divisão administrativa, nem sempre coincidente com as paróquias. Foram, aliás, precisas 140 correções para se chegar ao valor certo de 3.965 freguesias.

A contribuir para a confusão esteve também a inexistência geral de numeração de polícia nas casas e a enorme dificuldade de encontrar quem quisesse e, acima de tudo, quem tivesse capacidade para executar o recenseamento.

Deveriam ser “pessoas práticas e conhecedoras da freguesia, diligentes, inteligentes e probas”, para além de alfabetizadas, algo escasso por aquela altura, o que obrigou à acumulação de funções num número reduzido de indivíduos.

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Em todo o País, foram 8.352 os agentes especiais, que apuraram uma média de 124 fogos cada, recebendo 5 reis por residente.

Cabia-lhes fazer uma identificação das habitações, que serviria de base para a entrega do boletim a preencher por cada núcleo familiar.

Depois faziam a recolha dos impressos, “examinando-os e enchendo os que não haviam sido feitos, em consequência da maior parte dos chefes de família não saberem escrever e não terem pessoa da família que o fizesse”.

Ainda assim, no final, “bateu tudo certo” talvez porque, como relatou o governador civil de Beja, “a autoridade, intimidada pelo efeito da opinião popular”, absteve-se de recensear a população e tratou “de substituir por artifícios de cálculo as cifras verdadeiras que a operação lhe havia de dar”.

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O apuramento geral demorou 15 meses, fazendo-se uma análise por freguesia, sexo, estado civil e idade. Não se logrou apurar as profissões, porque as respostas foram imperfeita e incompletamente preenchidas.

Também não se conseguiu fazer a destrinça entre casas habitadas e devolutas, nem entre a origem e a nacionalidade das pessoas.

No relatório final dos censos, só publicado quatro anos depois, afirma-se mesmo que outro teria sido o resultado “houvesse menos negligência” dos agentes e se, destes, tivesse havido “mais reflexão e zelo”. 

Muitos dos dados são duvidosos, nomeadamente o registo de mais 70 mil mulheres do que homens, 20 mil homens casados a mais do que mulheres na mesma condição e mais 90 mil viúvas do que viúvos, para além de 200 pessoas com mais de cem anos.

Curiosamente, apesar de se conhecerem os resultados, toda a documentação produzida, nomeadamente os originais dos formulários de fogo e família e os relatórios das comissões, está em paradeiro desconhecido, não se encontrando no Instituto Nacional de Estatística, nem na comissão de estatística do Ministério das Obras Públicas ou do Ministério do Reino. Só se conhecem informações dispersas, provenientes dos governos civis e das comissões, como as referidas, aqui servindo de exemplo a todo o País interior e rural.

 

À margem

O receio e a desconfiança da população terão contribuído para a falsificação de alguns dados, nomeadamente os que poderiam dar azo a uma maior cobrança fiscal e ao reforço do recrutamento para fins militares, nuns casos “cortando-se” na idade dos mancebos e noutros falsificando o número de criados.

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Estes censos surgem em período seguinte à introdução do sistema métrico-decimal e de novos impostos, bem como da atualização das matrizes prediais. Todo este estado de coisas, como bem se compreende, suscitou a ira popular e uma repulsa quanto ao ato de recenseamento.

Mas, as falsificações sempre estiveram presentes em ações deste tipo. No registo paroquial – nascimentos, casamentos e óbitos – que vigorou no nosso país praticamente inalterado até 1859 e constitui uma importante ferramenta para conhecer a população ao longo dos tempos, há relatos de livros mutilados, com grandes lacunas e até adulterados. O recenseamento anual, que o censo de 1864 substituiu e era conduzido pelos administradores dos concelhos, padecia da mesma viciação.

No recrutamento militar, por outro lado, conhecem-se diversas fraudes, nomeadamente, um pároco de Leiria que se dedicou a mudar o sexo das crianças registadas, para “safar” os rapazes que entendia. Mas, há de tudo: administradores de concelhos que acoitavam os mancebos dos municípios vizinhos e ainda situações extremas, como a da freguesia de Carapinheira, Montemor-o-Velho, onde se lançou a “moda” dos jovens preferirem a mutilação do dedo polegar da mão direita ao serviço militar, com operadores especializados na intervenção cirúrgica adequada.

Mas isso é outra história…

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aqui antes falei sobre Censos, mas durante o Estado Novo.

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Nota: as imagens são meramente ilustrativas da sociedade portuguesa em finais do século XIX, início do século XX.

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Fontes

Contar (com) as pessoas – O recenseamento geral da população de 1864, de Rui Miguel E. Branco; Revista da História das Ideias – Instituto de História e Teoria das Ideias – faculdade de Letras da Universidade de Coimbra;  vol 26 – 2005. Disponível aqui: https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/41681/1/Contar_com_as_pessoas.pdf

 

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

Fundo Junta de Freguesia de Alcácer do Sal – Santiago

Atas da Comissão de Recenseamento

PT/AHMALCS/CMALCS/JFALCSS/51/001

 

Instituto Nacional de Estatística

1864 - 1 de Janeiro (I Recenseamento Geral da População)

Instituto Nacional de Estatistica, Censos 2011 (ine.pt)

 

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/089

 

Arquivo Municipal de Lisboa

Arthus Carlos da Silva Freire

PT/AMLSB/ATF/000149

Alberto Carlos Lima

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001559

José Chaves Cruz

PT/AMLSB/CRU/000471

José Artur Leitão Bárcia

PT/AMLSB/POR/053299

 

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001905

PT/AMLSB/NEG/000854