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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (81): o puríssimo ouro do Tejo

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Se for à praia nos arredores de Lisboa e caminhar nesses belos areais que bordejam a foz do Tejo não se admire se encontrar uma pepita de ouro. É que o precioso metal era tão abundante nesta região, que até deu nome ao concelho de Oeiras. A cada notícia de algum achado mais expressivo, havia uma verdadeira corrida de garimpeiros em busca de fortuna.

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Durante mais de 1800 anos houve exploração aurífera no Tejo.

Terão sido os romanos, ainda antes de Cristo, que descobriram esta riqueza e a aproveitaram, não só na foz, mas ao longo de todo o percurso português do rio, recolhendo pepitas peneirando as areias das margens ou cavando galerias para alcançar “filões” mais antigos.

Tal como os portugueses foram procurar ouro em paragens longínquas, também “nenhuma outra substância foi tão ativamente procurada no nosso subsolo pelos povos que se estabeleceram entre nós”.

O ouro aluviar do Tejo, que se apresenta isolado e em estado metálico de grande pureza*, é referido por variados autores e enriqueceu muita gente, estimando-se que durante tanto tempo e numa tão vasta área se tenham recolhido muitas toneladas daquele metal, havendo, ainda hoje, vestígios dessa mineração, e das construções a ela associadas, nomeadamente em Vila Velha de Rodão, Abrantes, Constância e Vale de Gatos (Seixal).

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Já em pleno século XIX, ficaram famosas as denominadas minas da Adiça (Almada) e de São Julião da Barra (Oeiras), mas em toda a Margem Sul “as areias e terras são, em geral auríferas, as quais, sendo lavadas pelas chuvas” têm como consequência que o ouro seja encaminhado para as “praias, onde se ajunta e deposita”.

Na mina da Adiça obteve-se, entre 1814 e 1826 quase 90 quilos de ouro, com o qual se cunhou moeda portuguesa.

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Em São Julião da Barra, por outro lado e na mesma época, durante um ano, apenas se reuniu um quilo, naquilo que terá sido a última exploração sistemática na zona, que gerou algum rebuliço em Lisboa, pois circulou o boato de se ter encontrado uma “riquíssima mina de ouro”.

A falsa boa nova teve de ser desmentida pelo então Intendente-Geral das Minas e Minerais do Reino, o barão de Eschwege**, para evitar correrias insanas e inúteis, porque, por essa altura, o filão já estava aparentemente esgotado e restava aos garimpeiros pouco mais do ficar a ver navios.

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*em oposição aos depósitos de ouro  em pequenas inclusões em alguns minérios, nos quais surge como impureza e de onde é extraído como subproduto. 

**Wilhelm Ludwig von Eschwege

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Fontes

Gazeta de Lisboa; nº106 – 6 maio 1825. Disponível em: https://babel.hathitrust.org › cgi

Lucius Cornelius Bocchus – Escritor Lusitano da Idade de Prata da literatura latina de João Luís Cardoso e Martín Almagro Gorbea Academia Portuguesa da História e Real Academia de la Historia, apresentado no Colóquio Internacional de Tróia – 6-8 out 2010; publicado em Lisboa e Madrid 2011; Graficamares. Disponível aqui: (PDF) LUCIUS CORNELIUS BOCCHUS Escritor Lusitano da idadE dE Prata da LitEratura Latina ACADEMIA PORTUGUESA DA HISTORIA REAL ACADEMIA DE LA HISTORIA | João Pedro Bernardes - Academia.edu

Breves referências sobre jazigos auríferos portugueses; texto de Adalberto Dias de Carvalho, Boletim de Minas; Publicação da Direção-Geral de Geologia e Minas; vol 16; nºs 6-7 – jun-dez 1979. Disponível em: https://www.dgeg.gov.pt/media/3wyj2ie2/389.pdf

Ouro – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Wilhelm Ludwig von Eschwege – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Imagens

Arquivo municipal de Oeiras

X-arqWeb (cm-oeiras.pt)

PT/MOER/MO/NF/003/000062

Arquivo Municipal de Lisboa

(cm-lisboa.pt)

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001586

Alberto Carlos Lima

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001232

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PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SEX/000211

Exploração de ouro no Brasil começou em São Paulo — e a região pode conter pepitas até hoje, dizem especialistas (institutominere.com.br)

 

Descoberta de ouro provoca nova corrida à Serra Pelada (institutominere.com.br)

oficina70.com: OURO

 

As revoltas que a fome amassou

 

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A indignação tem muitos nomes. O estômago vazio fez o povo sair à rua e amotinar-se inúmeras vezes. Essas ações, bastas vezes resultantes do calor do momento e rapidamente amordaçadas, ficaram para a história com os mais sugestivos e "nutritivos" títulos.

Revoltas, tumultos, altercações, motins. Numa história tão longa como a de Portugal, foram inúmeras as vezes que o povo saiu à rua bramindo razões e indignação. No centro da agitação esteve, muitas vezes, a tirania que impunha pesados impostos às massas, invariavelmente famintas. Muitas destas ações não passaram de fogachos, mas de outras resultaram verdadeiras revoluções políticas e sociais. Algumas ficaram na história com os mais estranhos e enigmáticos títulos.

A miséria e, sobretudo, a fome foram demasiadas ocasiões o principal instigador destas ações subversivas. Não será, pois, de estranhar que um grande número de agitações sociais tenha ganho o nome de bens alimentares.  Não precisamos recuar muito para encontrar a revolta da batata ou do grelo, do leite e da farinha, do inhame ou da água-pé.

Mas, vamos por partes.

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Em finais do século XVII, ainda mal tínhamos reassumido as rédeas do País depois do domínio filipino, os altos custos das guerras da restauração estiveram precisamente na origem da chamada “revolta dos inhames”.

Cultivados em pequenas parcelas – as fajãs - nas zonas húmidas, escarpadas e de penoso acesso da ilha de São Jorge, nos Açores, os inhames constituíam um garante de alimento para os escravos e os mais pobres, sujeitos às variações de outras culturas mais caprichosas.

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Compreende-se a ira destas franjas da população quando o Estado criou o dízimo das miunças e ervagens, pretexto para taxar estes nutritivos caules subterrâneos, ainda mais, obrigando os pequenos agricultores a fazerem o transporte até ao local onde deveriam ser entregues ao fisco, personificado pelos implacáveis comerciantes que arrematavam a cobrança do imposto.

Tal imposição motivou tumultos e tentativas de boicote ao pagamento, que tiveram como resposta a repressão, interrogatórios e prisões.

O inhame, hoje menos abundante, figura ainda orgulhoso no brasão de Ribeira Seca (Calheta), lembrando a sua antiga importância.

O povo, esse, foi mesmo obrigado a pagar, enfrentando uma ainda maior miséria que empurrou muitos para a emigração nos séculos seguintes.

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Dando um salto de 200 anos, temos a que ficou conhecida como a “revolta dos grelos”, por ter como personagens principais os camponeses que vendiam os seus produtos hortícolas no mercado de Coimbra.

Quando, em 1903, lhes foi exigido o pagamento de imposto de selo como licença para esta atividade, rejeitaram essa novidade e reagiram com violência às pesadas multas aplicadas. Cortaram estradas e, coadjuvados por operários e estudantes que se tinham associado à onda de indignação, tomaram de assalto o edifício das finanças e fecharam a universidade.

As manifestações deram até brado no parlamento e o clamor foi tal que, efetivamente, nos anos que se seguiram, o novo imposto não foi cobrado, mas permaneceu na lei, à espera do melhor momento para ser aplicado de novo.

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Se o fim da monarquia foi tumultuoso, a Primeira República foi igualmente pródiga em dificuldades.

Em 20 de outubro de 1914, dá-se a “revolta da água-pé”, que deve o seu nome à época em que ocorreu – auge da produção do célebre líquido ali para a zona saloia, onde teve o seu epicentro (Mafra e Torres Vedras), sendo a isso alheios os realistas que a levaram por diante.

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Já a “revolta da batata”, ocorrida três anos depois, resultou do insuportável aumento do custo de vida, com consequente escassez de bens alimentares – como o célebre tubérculo e o próprio pão – num País exaurido pela guerra.

Este foi o cenário “perfeito” para o eclodir de uma série de altercações, com os populares a pilhar lojas e armazéns, roubando o que não tinham dinheiro para comprar.

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Embora com efeitos no resto do território, esta rebelião teve os seus momentos mais dramáticos em Lisboa, onde foi decretado o Estado de Sítio, e no Porto. Morreram cerca de 40 pessoas e mais de 400 foram presas.

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Já em pleno Estado Novo, há novas sublevações com nome de alimentos.

Na ilha da Madeira - que, aliás, seria palco de muitos tumultos neste período - rebenta, em fevereiro de 1931, a “revolta da farinha”, compreensivelmente em resultado do denominado “decreto da fome”, que dava à Administração Central o monopólio da importação de trigo e outros cereais, e centralizava a sua gestão num pequeno grupo de moageiros.

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A decisão, integrada num conjunto de medidas restritivas tendentes a atenuar os efeitos da Grande Depressão em Portugal - como habitual - vai afetar os mais pobres que não têm meios para pagar o insuficientemente e inflacionado pão, envolvendo-se em saques e confrontos graves, que resultam em várias mortes.

 

Em 1934, igualmente na Madeira, há mais motivos de repulsa popular, na sequência de nova legislação que entrega a uma única família a produção de açúcar.

Mas, é dois anos depois, quando o regime pretende fazer o mesmo com o leite, que estala a ira dos madeirenses, pela voz dos pequenos produtores, vistos de fora do processo que criava a Junta Nacional dos Laticínios da Madeira.

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Diz o ditado que “não há fome que não dê em fartura”, mas a realidade mostra que a única abundância nos casos relatados foi de violência. É que, como também diz o povo, em “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”.

 

À margem

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O denominado “motim das maçarocas” foi, em 1629, a primeira manifestação contra o domínio filipino que então subjugava Portugal. Ao contrário do que se possa pensar, não alude a maçarocas de milho, mas antes, às meadas de linho fiado que no Porto têm essa denominação e os espanhóis quiseram taxar para custear as guerras em que estavam envolvidos, nomeadamente na Índia portuguesa. As fiadeiras portuenses revoltadas correram à pedrada o representante do rei – Francisco de Lucena – que, curiosamente, anos mais tarde (1642), seria decapitado em Lisboa por crime de traição e lesa-majestade, já depois de recolocarmos um rei português no trono do País.

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Curiosamente, o cereal que mais rapidamente associamos às maçarocas é igualmente apontado como causa de uma enorme revolução, mas nos nossos campos. Depois das transformações trazidas pelos romanos quando ocuparam este nosso território à beira-mar plantado, a introdução do milho – vindo das “Americas” - foi a maior transformação na nossa agricultura. Em cinco séculos, passou de planta em adaptação ao solo e ao clima, a uma das culturas dominantes, com algumas modificações genéticas pelo caminho, claro.

Mas isso é outra história.

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Nota: as últimas duas imagens são meramente ilustrativas dos produtos de que estamos a falar.

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Fontes

Revolta da Farinha – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Revolta do Leite – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Revolta da Água-Pé – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Revolta da Batata – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Revolta dos inhames – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Motim das Maçarocas – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Revolta da batata (maio 1917) (parlamento.pt)

COMUNICAR (parlamento.pt)

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Illustração Portugueza

2ª série; nº589 – 4 jun. 1917

 

O Ocidente

26º ano; XXVI volume; nº872 - 20 de março de 1903

 

O meu país – Notas sobre nacionalismo; de Maria Filomena Mónica; Relógio d´´Agua – nov 2020

 

A revolução do Milho em Portugal séc. XVI-XX, de Anabela Ramos, LBB2PT/UM. Disponível em: http://www.anpromis.pt/

Milho: passado, presente ou futuro?, de Pedro Mendes-Moreira e Maria Carlota Vaz Patto; Escola Superior Agrária de Coimbra, Departamento de Ciências Agronómicas; Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB); Universidade Nova de Lisboa e Associação ZEA +. Disponível em:  http://www.agronegocios.eu/

 

 

Imagens

Calheta - Litografia da Vila da Calheta por James Bulwer, de 1827. Disponível em:olho de fogo: Querida Calheta

Revolta da Farinha – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Foto colocada à disposição pública por: Abel Zeferino - Foto retirado do site: http://www.netmadeira.com/ e colocada à disposição por um dos membros

Revolta do Leite – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Por Desconhecido - Imagem retirada do bloque: http://miguelabarreiro.spaces.live.comPode ser encontrada através do link: http://miguelabarreiro.spaces.live.com/blog/cns!C98867CE325B9294!1177.entry, Domínio público

Illustração Portugueza

2ª série; nº589 – 4 jun. 1917

O linho – E duma planta se faz um tecido único! | Folclore.PT

https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=11752964

Centro de Documentação 25 de Abril - Page Site (uc.pt)

Assinala-se hoje o aniversário da “Revolta da Água-Pé” levada a cabo a partir de Mafra | Jornal de Mafra

milho (capeiaarraiana.pt)

Ainda O iminente naufrágio do Vera Cruz com milhares de soldados a bordo

No dia seguinte, reinava a destruição

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Uma coisa é ouvir dizer. Outra é ver. Na madrugada do dia 26 de maio de 1970, milhares de jovens militares portugueses regressados da guerra do ultramar por pouco não encontraram a morte nas águas do oceano, quando uma onda gigantesca embateu no paquete. Aos comandos vinha José de Azeredo e Vasconcellos*.

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Partilho aqui hoje imagens raras dos estragos provocados por essa situação limite que ameaçou deixar de luto muitas famílias. Valeu a sorte, a robustez do navio e, certamente, o sangue-frio de quem enfrentou o perigo ao passar o cabo das tormentas.

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A proa inundada, maquinaria arremessada ou inoperacional, junto à qual se aglomeram alguns homens, tentando repor alguma normalidade, enquanto outros assistem, ainda incrédulos, tentando perceber o que aconteceu e como escaparam incólumes.

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Ferros retorcidos e arrancados um pouco por todo o lado, balaustrada e borda parcialmente destruídas, vidros estilhaçados pelo convés, cabina de comando totalmente revolvida.

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Na manhã após a madrugada de todos os sustos, foi este o cenário de destruição encontrado pelos ainda aturdidos “tropas” a bordo do Vera Cruz.

Era muito, mas face ao sobressalto por todos sentido - fechados nos seus compartimentos, com o credo na boca enquanto o Vera Cruz se parecia despedaçar sob os seus pés - até parecia pouco.

O “contratempo” obrigou ao regresso a Moçambique para as necessárias reparações e atrasou ainda mais o tão ansiado regresso a casa depois do dever cumprido, mas que não seria a última peripécia da viagem…

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*José Horta e Costa de Azeredo Vasconcellos

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Já aqui antes contei, pela voz de um dos militares a bordo, a história desta estranha viagem.

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Fontes

Agradeço a José Manuel Vasconcelos, filho do então comandante do Vera Cruz, a generosidade de me permitir partilhar estas imagens.

O iminente naufrágio do Vera Cruz com milhares de tropas a bordo - O sal da história (sapo.pt)

Leis e multas de outros tempos

 

 

 

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Profissões, locais e hábitos que já não existem. O Código de Posturas que a Câmara Municipal de Alcácer do Sal aprovou e publicou em 1881 fala-nos de uma realidade que hoje nos parece estranha e até cómica.

 

Sabia que as pessoas eram obrigadas a participar nas montarias aos lobos e que cabia ao pregoeiro municipal, entre outras novidades, anunciar a chegada do peixe ao mercado da vila, bem como os objetos perdidos e achados?  Esta é uma viagem ao tempo em que ainda não havia água canalizada, as estradas eram em calçada ou macadame e as viagens se faziam a cavalo ou, na melhor das hipóteses, a vapor. São leis com 140 anos, que falam de Alcácer do Sal, mas poderiam falar de qualquer outra cidade com as mesmas características.

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O código de posturas que a câmara municipal daquele concelho alentejano lançou na década de oitenta do século XIX faz-nos o relato de uma realidade que já não existe, de profissões, hábitos e produtos dos quais poucos se lembram, porque, como qualquer legislação, contam-nos a história da época em que foi escrita, daquilo que era importante para aquela sociedade e quem eram os principais intervenientes na vida quotidiana.

Corria o ano de 1881. Francisco de Paula Leite, então presidente, fez aprovar e publicar o novo código de posturas, conjunto de regras destinadas a assegurar “os direitos, privilégios e regalias dos munícipes”, numa tentativa de regular a convivência entre os alcacerenses e os torranenses, já que a freguesia do Torrão havia sido integrada no concelho cerca de uma década antes e ainda não tinha leis pelas quais se pudesse orientar.

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O documento fala de espaços de comércio com designações caídas em desuso, como estabelecimentos de fazendas, casas de pasto, botequins e açougues. No mesmo sentido, refere-se a moleiros, forneiros, barqueiros, almocreves, carreiros e curraleiros, ofícios que hoje praticamente caíram no esquecimento. Refere também a curiosa figura do pregoeiro municipal, ao qual competia apregoar em seis pontos diferentes a chegada ao mercado do peixe ou de outros bens de venda imediata, assim como alardear qualquer aviso municipal quando não houvesse tempo de recorrer a editais; anunciar objetos perdidos e achados ou quaisquer vendas a pedido de particulares, que lhe pagariam esse serviço.

pessoas na outra margem.JPGO código dá grande importância às regras de circulação de veículos, nomeadamente proibindo o galope nas ruas e nas pontes, alongando-se em normas sobre gados lanífero, caprino, bovino ou suíno, multando os proprietários dos animais que fossem encontrados a vaguear no espaço público. O mesmo para os donos de galinhas, perus e patos a divagar pela vila.

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Também a venda de bens, com locais e regras muito próprias, a construção de edifícios, o ruído e a deposição de lixos e águas, são tidos em conta, embora aqui se perceba bem que os tempos eram outros. A título de exemplo, estipula-se que os vendedores de peixe devem varrer o sal, as vísceras e outros resíduos, e “lançarão a varredura ao rio”, algo que hoje não parece aceitável, não é?

O código já condena o conhecido hábito de despejar as águas domésticas pela janela, devendo estas ser depositadas nas valetas das ruas ou na carroça da câmara, se esta passar à porta. Já as estrumeiras, são permitidas apenas onde a câmara o determinar, não sendo permitido ter em casa mais do que uma carga de estrume.

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O cidadão podia, no máximo, ter dois porcos, cabras ou ovelhas no seu quintal e estava proibido de matar porcos e rachar lenha nas ruas de Alcácer, porque estes serviços deviam ser executados apenas nas travessas…Imagina-se o aparato envolvido.

Poucos de nós terão alguma vez sonhado participar em montarias para caçar lobos, mas fique sabendo que, há 140 anos, talvez porque esses animais abundassem e fossem uma ameaça, sempre que o administrador do concelho dissesse, todos os homens válidos eram obrigados a comparecer nessas batidas. Ficavam de fora apenas, empregados públicos e de quaisquer corporações, médicos, farmacêuticos e pastores.

Entre tantas regras que nos parecem estranhas, há, no entanto, algumas que ainda hoje fazem sentido. A obrigatoriedade de pintar e limpar as propriedades e os edifícios; o resguardo dos períodos de defeso na pesca e na caça; normas restritivas para queimadas; o respeito pela propriedade publica e privada ou a punição para quem conspurcasse as paredes com a escrita de nomes ou palavras obscenas, são algumas delas.

Resta dizer que grande parte das numerosas multas definidas no código não eram cobradas pela própria câmara, mas sim por indivíduos que arrematavam à edilidade o cumprimento dessa função, ficando com os valores reunidos para si e, desta forma, impondo eles próprios a lei e taxando os prevaricadores.

 

À margem

 

Em 1881, era Francisco de Paula Leite, o presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal, secundado pelos vogais Joaquim Parreira Salgado, José da Costa Passos e Miguel Maria Esteves.

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Paula Leite, que assina a introdução deste código de posturas, fala de duas figuras à época ligadas a Alcácer do Sal, e que participaram na elaboração do documento: João Pacheco de Albuquerque, então delegado do procurador régio na comarca de Alcácer do Sal, que terá feito diversas e úteis alterações ao código e por aqui ficaria pelo menos uma década, assumindo também as funções de Juiz de Direito da Comarca; “o inteligente Cândido de Figueiredo, que exerceria as funções de “sindico” da autarquia.

Várias fontes asseguram que aquele foi conservador do registo predial e presidente desta câmara. Foi uma importante figura nacional: professor, filólogo e escritor, sendo autor do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, entre numerosos estudos e também obras de ficção.

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Terá deixado amigos em Alcácer do Sal porque, quando a sua mulher morre, em 1882, são numerosos os alcacerenses a prestar-lhe homenagem. Maria Angélica de Andrade partiu vítima de tuberculose pulmonar, com apenas 42 anos. Apesar da pouca idade, deixou obra publicada e sobretudo muitas colaborações com a imprensa da época. Inconformada com o a educação e o papel reservado às mulheres do seu tempo – até porque teve duas filhas. Ficaria conhecida como “a poetisa do Sado”.

Mas isso é outra história…

 

 

Fontes

Código de Posturas da Câmara Municipal do Concelho de Alcácer do Sal; Coimbra – Imprensa Académica – 1881.

Nota: A pesquisa foi efetuada em exemplar adquirido pela autora, mas este documento existe noutro formato, no Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal.

 

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

Pesquisa Fundo COMARCA

 

Biblioteca Nacional de Portugal em linha

www.purl.pt

Cota: l-1670-13-p_0000

Catorze de novembro – comemoração do 1º aniversário do falecimento de Maria Angélica de Andrade; Tipografia do Diário de Portugal; Lisboa – 1883.

 

Portal da literatura

Cândido de Figueiredo - Portal da Literatura

 

Wikipédia

Mariana Angélica de Andrade – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Imagens

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0041

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0032

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0038

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0046

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0066

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0071

PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/225

António Cândido de Figueiredo, * 1846 | Geneall.net

Nesta hora: Mariana Angélica de Andrade, "a poetisa do Sado"