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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Quando o meritíssimo juiz foi preso

 

edificcio paços do concelho e juiz detido _ abert

 

A polémica do juiz “enxovalhado” chegou ao parlamento e obrigou a explicações do Ministro. Suspeitava-se da implicação do magistrado em conspirações contra a República.

 

Estamos habituados a ver os juízes como pessoas com poder para dar voz de prisão ou condenar alguém à cadeia. Quando um juiz é preso, há sempre estranheza e alarde social. Pois foi isso mesmo que aconteceu em finais de 1912, na Comarca de Alcácer do Sal.

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Cristóvão Cardoso Albuquerque Barata, visconde de Olivã. Assim se chamava o magistrado suspeito de praticar “crimes contra a República”, como aliás centenas de outros cidadãos que, naqueles tempos inseguros de afirmação do novo sistema político, foram detidos com base no mesmo pressuposto.

É que os monárquicos ainda lutavam pelo regresso do rei e, efetivamente, foi uma época de grande tumulto, conspirações, atentados à bomba e tiroteios um pouco por todo o País.

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Ora, o juiz de direito da Comarca de Alcácer do Sal era apontado como fazendo parte de um dos denominados “complots do Alentejo” contra a emergente República.

Foi detido por ordem – mais propriamente um ofício – do obscuro oficial da Polícia Judiciária Militar no quartel de Portalegre, António Luís Ribeiro da Silva.

 

Mas, em vez de ser levado para aquela cidade, como era pedido, o administrador do concelho de Alcácer do Sal – à época, Henrique de Sacadura Freire Cabral - provavelmente para proteger o magistrado, levou-o para Lisboa, onde se instalou a polémica.

No parlamento, o caso foi abordado pelo senador José de Castro, do Partido Republicano Português, que atribuiu a detenção do visconde de Olivã a uma atitude de vingança e considerou inadmissível que um juiz pudesse ser assim “enxovalhado”.

Indignado, instou o ministro da Guerra a explicar-se, já que a ordem de prisão tinha sido dada por um militar, obrigando aquele governante a pronunciar-se sobre o assunto.

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Em Alcácer, o falatório devia ser muito, especialmente entre os mais esclarecidos, os comerciantes e uma certa elite local. Provavelmente, ao povo comum estas manobras pouco diziam, já que a maioria nem sequer conseguia ler as notícias, das quais, obviamente, o jornal local fez eco.

Sabe-se que o então delegado do Procurador da República nesta comarca, Pedro de Mello Coutinho de Albuquerque e Castro, comunicou o caso ao seu superior, pois coube-lhe a tarefa de “levantar um auto de corpo de delito por crime político” contra o juiz Cristóvão Barata, pessoa que, admitiu, foi sempre “integro e o mais correto que se pode ser no cumprimento dos seus deveres”, pelo que era “justamente estimado e considerado por todos os habitantes” de Alcácer do Sal.

Queixava-se, claro, dos enormes incómodos provocados pela ausência do titular da Comarca, com a cadeia cheia e os julgamentos suspensos. Pois, embora o juiz pudesse ser substituído pelo presidente da então comissão republicana de gestão municipal, este não queria “arcar com tais responsabilidades”.

Ao que tudo indica, nada se provou contra o magistrado. Ainda assim, esteve ausente cerca de um mês.

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Regressou em janeiro de 1913, acompanhado pela mulher.

Um grupo alargado de amigos alcacerenses foi recebê-los cerca de cinco quilómetros antes da entrada na então vila, como forma de manifestar estima.

 

Cristóvão Cardoso Cabral Coutinho de Albuquerque Barata, o juiz de quem falo, havia nascido em Campo Maior e tinha, à época, 42 anos de idade. Foi o primeiro e único visconde de Olivã e chegou a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, para além de deputado e comendador de várias ordens. É no antigo palácio "do Barata”, hoje pertencente à Câmara Municipal de Campo Maior, que funcionam vários serviços, como biblioteca, repartição de finanças e o Museu do Azeite.

À margem

Alcácer do Sal foi, durante muito tempo, uma comarca de 3º categoria por onde os magistrados – juízes e delegados do procurador régio (e, mais tarde, da República), passavam com o desejo de serem rapidamente promovidos a uma comarca de classe superior.

O clima, muito quente no Verão, era propício a febres (malária), devido à presença de mosquitos. A  área a cobrir era muito extensa, contrastando com os parcos meios existentes, que contribuíam para aquele sentimento.

Por aqui transitaram muitos nomes que, posteriormente, vieram a evidenciar-se nas suas carreiras, na justiça, mas não só.

Em Maio de 1927, pouco antes de completar 24 anos, chegou a Alcácer do Sal um então anónimo Delegado do Procurador da República. Tinha pedido demissão da anterior colocação, em Mértola, porque naquela terra não encontrara qualquer alojamento ou condições que permitissem a sua estadia. Alertando a tutela para este assunto, fez com que a lei se alterasse, instando à criação de casas de função, caso contrário as comarcas seriam extintas, o que, na época, viria efetivamente a acontecer, com 36 destas.

Esse jovem magistrado chamava-se Marcello Mathias. Chegaria, nomeadamente, a cônsul, embaixador e ministro, para além de amigo e confidente de Salazar, a quem chegou a comprar presentes para oferecer à jornalista Christine Garnier. 

Mas isso é outra história…

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Já antes falei deste estranho e perigoso período da Primeira República no nosso País:

Um prédio de conspiradores - O sal da história (sapo.pt)

A condessa de Cascais e a jornalista inglesa encontraram-se na cadeia - O sal da história (sapo.pt)

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Os meus agradecimentos a Maria Antónia Lázaro, pela sugestão do tema.

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Fontes

Biblioteca Nacional de Portugal

Jornal Pedro Nunes

6º ano; nº332 – 8 dez 1912

6º ano; nº336 – 5 jan 1913

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Jornal A Capital

3º ano; nº845 – 4 dez 1912

3º ano; nº847 – 6 dez 1912

 

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

Livros de registo da correspondência expedida para o Procurador da República

PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/DELPROCURADORIA/01/01

PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/DELPROCURADORIA/01/02

Assembleia da República

https://debates.parlamento.pt/catalogo/r1/cs/01/01/03/003/1912-12-04/5

 

Objectiva Fotográfica: Visconde d'Olivã (objectivacm.blogspot.com)

Apresentando página da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira – vol. 19

 

Correspondência com Salazar (1947-1968), de Marcello Mathias; seleção, organização e notas de Maria José Vaz Pinto – 2ª edição – Difel – Difusão Editorial Lda - Lisboa

 

O Palácio Visconde de Olivã - AlémCaia (sapo.pt)

Palácio Visconde Olivã e Jardins / Lagar-Museu / Biblioteca Municipal de Campo Maior - ATUALIZADO 2021 O que saber antes de ir - Sobre o que as pessoas estão falando - Tripadvisor

Lista de viscondados em Portugal – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Portal de Genealogia | Geneall.net

 

Imagens

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

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https://www.tripadvisor.pt/

 

 

 

 

 

Quem era a misteriosa americana que passou por Lisboa?

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A enigmática mulher visitou Lisboa em 1940 e encantou-se com o nosso Jardim Zoológico, ao ponto de enviar um avultado donativo. A sua identidade continua um segredo difícil de desvendar.

 

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À entrada do Jardim Zoológico da Lisboa, antes das bilheteiras, existe um curioso banco que passa despercebido, apesar da sua grande dimensão, O “banco da americana” foi construído – pode ler-se em placa explicativa – como forma de agradecer o “generoso donativo” e a simpática carta enviados por uma senhora americana.

Em 1940, esta terá visitado o zoo, encantando-se com “ambiente único”, de “paraíso para a habitação de animais”, que sentiu naquele espaço, contrastando com outros jardins zoológicos em grandes cidades, “frios e formais”, como essas próprias metrópoles, onde, entendia, os animais se aborreciam imensamente.

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Pois bem, quem será esta abastada americana à qual o Jardim Zoológico de Lisboa tanto agradou? Porque é que fez questão de se manter no anonimato? Seria uma figura pública?

São muitas as questões que nos assaltam e que não podem ser esclarecidas junto da administração do jardim, porque, segundo foi garantido, não possuem mais informação do que a expressa a placa.

O problema é que 1940 é um ano extremamente difícil para a identificação de estrangeiros de passagem por Lisboa.

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Esse foi o ano em que tudo convergiu para a nossa Capital. Em que, de acordo com dados da época, entre junho e dezembro, três milhões de pessoas visitaram Belém para se deslumbrar com a Exposição do Mundo Português. Sabe-se que a maioria eram portugueses, desconheço quantos eram americanos ou do sexo feminino, mas parece um número avassalador, só para começar.

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Para complicar, também há registos da entrada de dois mil estrangeiros por dia, só em Vilar Formoso.

Com a invasão simultânea do Luxemburgo, Bélgica e Holanda, a 10 de maio, e a intervenção do cônsul português em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes - concedendo vistos de entrada no país - a partir de 21 de junho, o número de estrangeiros mais do que decuplicou.

É que, enquanto a Europa estava em guerra, Portugal respirava uma estranha paz.

Para aqui dirigiram-se milhares de pessoas fugidas do conflito e maioritariamente em trânsito, para …a América.  

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Muitas eram mulheres elegantes, como dão conta os jornais da época, elogiando o inesperado cosmopolitismo da moda feminina na Capital, onde numerosas estrangeiras passeavam os seus louros penteados e vestidos originais.

A somar aos milhares de anónimos que lutavam pela sobrevivência num país que não era o seu, havia os que queriam passar incógnitos pelas mais variadas razões e os que estavam secretamente em Portugal, como os espiões.

Há, ainda uma boa mão cheia de mulheres famosas e facilmente identificadas em território nacional nessa época e a caminho do “sonho americano”.

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Para além das numerosas convidadas pelo Secretariado Nacional de Informação para a inauguração da Exposição do Mundo Português, sabe-se que por cá transitaram a escultora grega Nina Embiricos; a princesa Bibikoff, filha do último embaixador russo em Berna; a atriz Florence Marly; a bailarina polaca Suzanna Jordan Roswadowski; a escritora francesa G. Quitter Allatini; Colette Gaveau, pianista francesa;  Nelly Mann, mulher do escritor alemão Heinrich Mann e Alma Mahler-Werfel, esposa do dramaturgo austríaco, entre tantas outras.

Para muitos, as luzes e a silhueta da exposição foram a última imagem que levaram do continente europeu, quando zarparam para o outro lado do oceano.

Para uma apenas, foi o Jardim Zoológico de Lisboa que ficou na memória, mas talvez nunca saibamos quem foi esta “americana”.

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À margem

A Exposição do Mundo Português modificou de forma dramática e para sempre a área de Belém. Embora a maioria das estruturas fosse efémera, foi preciso limpar – leia-se arrasar – o que antes ali estava. Uma das novas construções, destinada a existir apenas durante os seis meses da mostra, foi pensada e esboçada numa noite - pois não fazia parte do projeto inicial de Continelli Telmo. Surpreendentemente, é hoje um ícone de Lisboa.

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O Padrão dos Descobrimentos foi ideia de Leitão de Barros, que, com a sua visão de cineasta, entendeu faltar ao recinto algo que desse a ideia de partida.

Imediatamente, Continelli Telmo ensaiou uma proa de caravela com paus de fósforo ardidos e mandou chamar com urgência o escultor Leopoldo de Almeida, para que acrescentasse ao seu embrião de monumento algumas figuras emblemáticas. A primeira versão, em ferro e cimento, não resistiu a um ciclone que, em fevereiro de 1941, arrancou a cabeça ao Infanta D. Henrique (a figura de proa), causando outros danos. A versão final, em betão, cantaria de pedra rosal de Leiria e de calcário lioz de Sintra, seria erguida para comemorar os 300 anos da morte do Infante.

De entre as 32 estátuas, há apenas uma mulher. D. Filipa de Lencastre. Mas, esta não é americana.É inglesa e deu à luz seis filhos que dariam muito que falar.

Mas isso é outra história…

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Este texto partiu de um desafio de Mitologia em português, que muito agradeço, apesar de não ter conseguido responder à questão: “quem é a americana?

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Mundo Gráfico

Ano 1; nº1 - 15 out 1940

Ano 1; nº3 - 15 nov 1940

Ano 1; nº4 - 30 nov 1940

Ano 1; nº5 - 15 dez 1940

Revista dos Centenários

Nº19; ano I – 31 jul 1940

Nº20; ano I – 31 ago 1940

Memoria Brasil

per107670_1940_B01705.pdf (bn.br)

Jornal o Imparcial Popular

13 dez 1940

 

Visão História

A Exposição do Mundo Português e a propaganda do Estado Novo

Nº41 – mai 2017

Texto de Margarida Magalhães Ramalho

Texto de Emília Caetano

 

The woman who would be queen - A biography of the Duchess o Windsor, de Geoffrey Bocca; Rinehart & Company, Inc. New York. Toronto . 1961

Imagens

Mundo Gráfico

Revista dos Centenários

Fotografias da autora

 

Arquivo Municipal de Lisboa

Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)

Paulo Guedes

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/PAG/000373

Instantâneos (84): a política da traulitada

 

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O cavalheiro com ar abatido e a cabeça ligada é um republicano, apanhado nos tumultos que se seguiram às eleições do dia 5 de abril de 1908. Teve sorte, ainda assim, porque nessa mesma ocasião, 14 morreram em confrontos com a polícia. Os ânimos estavam extremamente agitados por aqueles dias, pois tratava-se de eleger a câmara dos deputados dois meses após o regicídio.

O resultado foi expressivo do estado de divisão em que o País se encontrava, com o hemiciclo fragmentado em partes semelhantes entre regeneradores e progressistas, tendo sido eleitos sete republicanos (para além de dissidentes progressistas, independentes governamentais, governamentais, regeneradores e liberais e um nacionalista).

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O homem, que mais tarde também se sentaria na “Casa da Democracia”, na bancada do Partido Liberal, é o poeta Joaquim Ribeiro de Carvalho, que veremos também, dois anos depois, na varanda da Câmara Municipal de Lisboa quando, a 5 de outubro de 1910, se anunciou a República.

Como profissional da comunicação que também era, soube reverter o mau estado em que se encontrava a favor dos ideais que defendia. Fez-.se fotografar ferido – com o crânio fraturado em resultado de "duas cutiladas", pode ler-se no verso - e distribuiu a imagem em forma de postal.

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Nos jornais da época, aliás, são facilmente identificadas as posições dos seus editores e proprietários. O que uns classificam de violenta arruaça dos republicanos, outros apelidam de carnificina perpetrada pelas forças de segurança (polícia e guarda municipal).

Em causa estava a segurança das urnas e a fiscalização da contagem dos votos. Houve confrontos em diversos locais, mas em Alcântara e junto à Igreja de São Domingos (na imagem) assumiram especial gravidade, tendo havido a intervenção da “tropa”.

Oito meses depois, novas eleições, desta vez municipais, reiteravam que as coisas estavam efetivamente a mudar. A 1 de novembro, Lisboa tornava-se uma das primeiras capitais da Europa a eleger uma vereação republicana.

 

 

Fontes

Fundação Mário Soares

www.fms.pt

Joaquim Ribeiro de Carvalho – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Eleições de 1908 (maltez.info)

Efemérides | Centenário da Primeira Vereação Republicana em Lisboa (1908-2008) (cm-lisboa.pt)

Hemeroteca Digital de Lisboa

1908 - Índice cronológico de publicações periódicas digitalizadas (cm-lisboa.pt)

 

Biblioteca Nacional em Linha

www.purl.pt

Diário illustrado

 

Imagens

Biblioteca e Arquivo Pacheco Pereira

ARQUIVO – FOTOGRAFIAS – EPHEMERA – Biblioteca e arquivo de José Pacheco Pereira (ephemerajpp.com)

 

https://commons.wikimedia.org

 

Arquivo Municipal de Lisboa

X-arqWeb (cm-lisboa.pt)

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001387

Se esta cama de prata falasse…

 

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É exemplar único, em valor, aparato e luxo, mas não foi feita para dormir. Até se conhecer o “leito Cadaval”, este tipo de camas era como uma ave rara, que se sabia existir, mas nunca tinha sido vista. Que segredos contaria?

 

Se esta cama falasse contaria sobretudo histórias de morte, também de nascimento e, claro, segredaria episódios de sexo. Porque esta, ao contrário das outras peças de mobiliário da sua categoria, não foi feita para dormir.

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É o mais extraordinário leito existente em solo nacional. Andou esquecido e desmantelado durante décadas na posse de pelo menos seis donos diferentes e foi finalmente resgatado e devolvido ao antigo esplendor.

Semelhante em luxo e aparato, apenas a uma outra cama também de origem portuguesa, mas patente em terras de Espanha*.

A “nossa” tem a melhor das proveniências, pois pertenceu até aos anos 50 do século XX à ilustre Casa Cadaval. Sobreviveu ao exílio de duas gerações que os seus proprietários cumpriram após a vitória liberal de 1834; ao desaparecimento do palácio onde estava armazenada, vítima das obras da Grande Exposição do Mundo Português, e à transferência para outro palácio da família, em Sintra.

A falta de liquidez fez com que fosse parar às mãos do colecionador açoriano Augusto de Athayde, que a ofereceu à mulher.

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Apesar de inicialmente detestar a espalhafatosa cama, em especial as carantonhas, que pareciam observá-la chorando nos intrincados adornos, acabou por ser a única pessoa em três séculos (a cama é do século XVII) que se sabe tê-la usado para dormir.

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Mal sabia Maria da Graça Athayde que o denominado “leito Cadaval” tinha sido criado para outros fins, nomeadamente para expor insignes mortos durante as cerimónias fúnebres, como aconteceu com o corpo do pobre D. Afonso VI (ver à Margem).

Era uma verdadeira cama de Estado, destinada a outras atividades importantes, como a consumação de um casamento para selar a união de duas importantes famílias, ou o ainda mais importante nascimento de um ansiado herdeiro.

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Servia, igualmente, para ser apreciada, como símbolo de poder e estatuto social, ao muito seleto grupo com autorização para penetrar em íntimos aposentos.

Novas dificuldades financeiras fizeram os Athayde perder o vistoso ninho, que voltou a andar de mão em mão, entre negociantes de antiguidades, deslumbrando, mas não logrando encontrar comprador devidamente encantado e endinheirado.

Para tal desígnio tentou-se aliciar fundações, mecenas ou museus suficientemente abonados, mas só em 2016, foi possível chegar a um acordo, por 360 mil euros.

Seguiram-se 13 meses de restauro que se revelaram extremamente desafiantes**.

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O “leito Cadaval” tinha sido montado e desmontado vezes sem conta, frequentemente sem os devidos cuidados e método.

Daí, que o primeiro passo fosse desagrupar totalmente as suas 1700 peças, que incluem dez tipos de pregos, seis qualidades de madeira - com predominância de pau-preto moçambicano - para além dos extravagantes ornamentos em prata e cobre.

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Todos os fragmentos deste intrincado puzzle com 145 quilos – ainda por cima sem instruções, usando apenas fotografias antigas como guia – foram cuidadosamente limpos, restaurados, retificados e, finalmente, montados.

Embora se tenha ficado a conhecer intimamente esta peça de mobiliário extraordinária pela riqueza e qualidade que ostenta, muito pouco continua a ser conhecido sobre a sua origem, quem a encomendou, construiu ou estreou e que satisfações e prazeres obteve do uso da mesma.

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O resultado de tão minucioso trabalho pode, no entanto, ser agora apreciado no Palácio Nacional de Sintra, onde o “leito Cadaval” assume um natural papel de destaque.

 

 

 

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À Margem

Até esta peça de mobiliário ter sido identificada em 1953, as camas de aparato, misto de peça de mobiliário e joia, eram em Portugal uma espécie aves raras. Sabia-se que existiam, pelos relatos escritos, mas nunca se tinha visto nenhuma.

Documentação da época dá conta, aliás, da utilização de uma destas estruturas nas cerimónias fúnebres de D. Afonso VI, ocorridas em setembro de 1683, a poucos passos da sala onde hoje se pode apreciar – à distância, é certo – o leito de prata que pertenceu aos duques de Cadaval.

Foi ali mesmo, no então Paço Real de Sintra, nas salas das Pegas e dos Cisnes – assim denominadas por terem estes animais profusamente pintados nos tetos.

São espaços amplos e suficientemente desafogados para acolher os que acorreram para ver pela última vez o monarca afastado do trono pelo ambicioso irmão, o nosso rei D. Pedro II.

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São espaços bem diferentes dos exíguos aposentos onde D. Afonso VI (na imagem) passou os últimos nove anos da sua vida, apenas saindo para assistir à missa na capela contígua.

A cuidadosa e demorada exposição dos seus restos mortais em tão luxuoso féretro seria para que não restassem dúvidas sobre o seu fim, que permitiria a D. Pedro finalmente ascender ao trono?

Durante o longo período de cárcere, D. Afonso VI era escrupulosamente vigiado por homens de confiança de Nuno Álvares Pereira de Melo, precisamente o 1º Duque de Cadaval, figura-chave da nova ordem instituída após a Restauração, de 1640.

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Este importante fidalgo foi crucial na tomada do poder por parte de D. Pedro II. Foi também ele o responsável pelo processo de anulação do casamento de D. Afonso VI com D. Maria Francisca de Saboia (na imagem), para que esta pudesse ficar livre para casar com o cunhado. Vários foram os que atestaram a incapacidade do rei par consumar uma relação sexual.

Mas isso é outra história…

 

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*Está na Basílica de Santa Maria de Elche, em Alicante. Foi doado pelo 7.º Duque de Aveiro, Gabriel Ponce de León e Lencastre (1667 – 1745).

** O trabalho de restauro foi levado a cabo pela Archeofactu.

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Fontes

Coleções em foco – Palácio Nacional de Sintra – O leito de prata dos Duques de Cadaval; textos de Celina Bastos, Maria João Ferreira, Joan Castaño Garcia, Teresa Leonor M. Vale, Hugo Xavier, Manuel Lemos, Maria João Petisca, Isabel Tissot e Mathias Tissot; Parques de Sintra Monte da Lua - março 2020. Disponível em:

O leito de prata dos duques de Cadaval - Celina Bastos, Maria João Ferreira, Inês Ferro, Joan Castaño García, Teresa Leonor M. Vale, Hugo Xavier, Manuel Lemos, Maria João Petisca, Isabel Tissot, Matthias Tissot - Google Livros

 

O leito de prata dos Duques de Cadaval - Parques e Monumentos de Sintra (parquesdesintra.pt)

“Leito Cadaval:” uma raridade nas colecções portuguesas | Património | PÚBLICO (publico.pt)

Texto de Lucinda Canelas com informação recolhida junto de Isabel Tissot, técnica da Archeofactu, empresa responsável pelo restauro e da Parques de Sintra-Monte da Lua.

A prisão de D. Afonso VI - Acontecimentos do Palácio Nacional de Sintra (parquesdesintra.pt)

Visita contextualizada ao Palácio Nacional de Sintra

 

 

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Gabriel de Lencastre, Duque de Aveiro – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Imagems

Leito Cadaval

João Krull; Archeofactu, fotos da autora

 

Imagens captadas na Exposição patente no Palácio Nacional de Sintra:

Cerimónias fúnebres de Maria Luísa de Orleães, Rainha de Espanha – Óleo sobre tela de Sebastian Munôz - The Hispanic Society of America, New York; Cortesia do Museu

 

Maria Adelaide de Saboia após o nascimento do filho, em primeiro plano, apresentado ao bisavô, Luís XIV – gravura inserida no Almanach pour lán de gràce MDCCV – Coleção particular

 

O leito de prata dos duques de Cadaval : Fernando Montesinos (coord.) : Free Download, Borrow, and Streaming : Internet Archive

 

  1. Afonso VI por Roque Gameiro - A TRIBO DOS PINCÉIS: Quadros da História de Portugal (1917), Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=60013887

 

  1. Maria Francisca, por Jean Petitot - Royal Collection, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=61068177