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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (87): a sorte grande no sapatinho

 

largo trindade coelho em dia de extracao de lotari

Ansiosos, expectantes, esperançosos. Centenas de homens e algumas – poucas – mulheres aguardam o momento que pode mudar as suas vidas para sempre. Há um século, os tempos eram difíceis e, para muitos, ganhar a sorte grande era, de facto, a única hipótese para ultrapassar a miséria. Não admira, pois, que nos dias de extração da lotaria, se aglomerassem no largo fronteiro ao edifício da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, acotovelando-se para saber se pertenciam ao grupo dos afortunados.

Para esses, nada seria como antes. Para a esmagadora maioria, a vida lá teria de continuar com as mesmas dificuldades e uma réstia de fé numa futura taluda. Para a próxima é que é!

largo trindade coelho em dia de extracao de lotari

Essa confiança, alimentada na compra de cada bilhete, dava alento para suportar as agruras do quotidiano. Lamentavelmente, não pagava as contas.

Pelo simbolismo próprio da quadra - que intensifica os sentimentos, tornando os bons ainda melhores e os maus verdadeiramente tristes - mas também pelos prémios habitualmente mais chorudos, a Lotaria do Natal é talvez o mais aguardado dos sorteios, havendo até quem só jogue por esta altura. Este ano, anda à roda no dia 27 de dezembro.

A lotaria em Portugal é genericamente bem mais antiga, pois foi criada em 1783, por decreto da rainha D. Maria I. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa estava assim autorizada a explorar este jogo, revertendo os lucros para o Hospital Real, a Casa dos Expostos e a Academia Real de Ciências. A primeira apoteótica extração demorou uns épicos 34 dias, durante os quais meninos acolhidos naquela instituição retiraram manualmente todos os 22.500 bilhetes, alguns dos quais premiados, das enormes rodas de madeira onde estavam convenientemente misturados.

aspeto da assistencia em dia de extracao da lotari

 

Desde aí muito mudou. Este popular jogo chegou a estar suspenso, passou por várias mãos e formatos até ser finalmente entregue em exclusivo à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (1893) e adotar o título formal de Lotaria Nacional, em 1955.

extracao da lotaria.jpg

 

A atual sala de extrações data de 1903 e o largo, que assistiu a tantas expetativas frustradas - foi de São Roque, passando a homenagear o jornalista Trindade Coelho, logo após a implantação da República - é hoje conhecido de muitos como “do cauteleiro”, devido à estátua que ali consagra aquela personagem indissociável da lotaria. Na voz do povo dificilmente deixará de ser o largo da Misericórdia.

Mantêm-se os fins solidários iniciais e a esperança dos que adquirem as cautelas. É raro, mas já aconteceu, algum vencedor estar ali mesmo, ouvindo ao vivo os números do pequeno papel que tem na mão.

aspeto da assistencia em dia de extração da lota

 

Será uma alegria indiscritível para quem ganha e também para os pregoeiros que, todas as semanas, se vestem a rigor e afinam as vozes para cantar a sorte de outrem.

Talvez seja desta!

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A Lotaria Clássica é sorteada todas as segundas-feiras, às 21h45, com transmissão televisiva na RTP2. Os sorteios da Lotaria Popular realizam-se na sala de extrações da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, às quintas-feiras, pelas 12:30.

A mítica sala, que se situa num dos claustros seiscentistas da Casa-Professa de São Roque, tem o traço de Adães Bermudes e é visitável mediante marcação.

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Nota: as imagens apresentadas têm datas entre 1920 e 1926.

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Fontes

Jogos Santa Casa - Jogar - Lotaria Clássica

A lançar dados desde o século XIII (dn.pt)

Texto de Marina Marques, Diário de Notícias – 27 jul 2012

Lotaria Nacional - 235 anos de tradição - Revista BICA

Texto de Paulo Rosa - Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

Santa Casa abre portas | Sala de Extrações da Lotaria Nacional - Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (scml.pt)

O Largo de São Roque ou do Cauteleiro que é o Largo Trindade Coelho | Toponímia de Lisboa (wordpress.com)

 

Imagens

Arquivo Fotográfico Municipal

Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001664

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001665

 

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)

Empresa Pública Jornal O Século

PT/TT/EPJS/SF/001-001/0004/1376ª

PT/TT/EPJS/SF/001-001/0004/1375A

PT-TT-EPJS-SF-006-01459

A cura nas alturas e o mal na terra

 

inauguracao com d carlos e d amelia.JPG

 

Na inauguração do sanatório para tísicos, o casal real foi recebido com extraordinárias manifestações de jubilo pelas gentes da Guarda, mas o País urbano rebelava-se já contra a ditadura instaurada na semana anterior. Os revigorantes ares da serra e os pretensos milagres do Dr. Sousa Martins, não seriam suficientes para salvar a monarquia.

 

Quando, em 1907, D. Carlos e Dona Amélia se deslocaram à Guarda para inaugurar a primeira estrutura de altitude criada em Portugal para o tratamento de tuberculosos, foram brindados com uma receção apoteótica. Noutras paragens, Portugal estava em ebulição e, mesmo durante a visita, houve sinais de estar a monarquia já ferida de morte. Nem os revigorantes ares daquela região ou os pretensos milagres de Sousa Martins, que daria nome ao sanatório, seriam capazes de a salvar.

aspeto de uma das ruas decoradas para receber os r

 

Foi a 18 de maio. As reais pessoas foram recebidas por um “extraordinário concurso de povo” daquela cidade e vindo das cercanias, que as vitoriavam, aplaudiam e lhes lançavam flores. Queimaram-se girandolas de foguetes e as ruas, pejadas de gente, estavam decoradas com “flamulas, galhardetes, arcos triunfais”, bandeiras e “outros enfeites surpreendentes”. Nas janelas, apinhadas, viam-se colchas de seda.

multidao em volta do sanatório no dia da inaugura

 

Foi, portanto, em ambiente de grande festa – na qual nem faltou um orfeão de 350 crianças cantando um inédito hino de homenagem à rainha (imagem 8) - que se inaugurou o sanatório da Guarda.

 

À semelhança de outras estâncias já existentes na Europa, visava tratar os tísicos pelo efeito dos puros e frescos ares que se respiravam na montanha – mil metros acima do nível do mar.

um dos pavilhoes do sanatório da guarda.JPG

 

Seguiam-se indicações científicas obtidas após uma célebre expedição à Serra da Estrela, realizada em 1881, em que participou o médico Sousa Martins, grande entusiasta da ideia.

Para Dona Amélia - empenhada pessoalmente e desde a primeira hora no tratamento desta doença, que matava 15 a 20 mil pessoas por ano em Portugal - o sanatório seria uma conquista deveras especial.

os tres corpos do espaço do sanatório.JPG

enfermaria dos pobres.JPG

O belo complexo tinha sido desenhado por Raúl Lino e possuía todas as comodidades de topo existentes na altura: instalações para 28 doentes pobres, igual número para remediados e 20 lugares para ricos, para além de seis chalés que os muito ricos podiam alugar, gerando receitas para os gastos de funcionamento.

galeria de cura.JPG

 

Ali residiram, durante décadas, as esperanças de milhares de tísicos que rumavam à Guarda em busca da cura, mas, sobretudo, de um lampejo de esperança contra aquele mal que tantas vezes era uma sentença de morte.

Durante as cerimónias – missa, receções, discursos – “não houve o mais insignificante incidente desagradável”.

oefeao de crianças.JPG

A visita demorou poucas horas e, na viagem de regresso, que também se fez de comboio, a composição foi aclamada nas estações por multidões anónimas, “pessoas gradas”, pelos dignitários dos diversos concelhos e até por bandas de música e fogo-de-artifício.

Esta unanimidade de “manifestações imponentes”, promovida por “gente pura da Serra”, onde não chegavam ainda “contaminações e paixões políticas que tudo adulteram”, teve uma única exceção: apesar de terem sido “delirantemente aclamados” por “mais de oito mil pessoas” e representantes de diversas instituições locais, na Covilhã, a câmara municipal não se fez representar.

Justificando a inusitada ausência, o jornal informa laconicamente que aquela entidade era composta por amigos do senhor Abel Andrade.

Quem?

Pois bem, após aturada pesquisa, percebe-se que Abel Andrade era o diretor-geral da Instrução Pública, um reformador com novas ideias para o sector, que tinha sido suspenso algum tempo antes por João Franco, o líder do governo do País que, embora tenha garantido moderação, havia instituído a ditadura exatamente na semana anterior a esta calorosa inauguração do Sanatório da Guarda.

Acresce que a educação era, por aqueles dias, o assunto mais polémico em cima da mesa. Em fevereiro tinha estalado a crise estudantil em Coimbra, quando os universitários se revoltaram pela forma como um até então desconhecido candidato ao doutoramento em Direito, José Eugénio Dias Ferreira, foi vexado em plena defesa, por um grupo de professores examinadores percetivelmente conluiados nesse sentido.

estudantes a chegada as cortes em lisboa.JPG

O caso, rapidamente interpretado como político, fez escalar os protestos. Houve estudantes expulsos, greves e manifestações por todo o País. O tema, obviamente, foi adotado pelos republicanos, que se desdobravam em iniciativas e comícios cada vez mais inflamados, numa cadência semelhante à intensificação, por João Franco, das leis restritivas à liberdade de expressão – o primeiro julgamento por crime de liberdade de imprensa ocorre a 14 de maio – e punitivas dos que se opunham ao rei e ao seu governo.

estudantes em comicio de teofilo braga.JPG

 

Menos de um ano após a inauguração do sanatório da Guarda, D. Carlos e o príncipe Luís Filipe são assassinados em plena Praça do Comércio. Dois anos depois, cai a monarquia e é implantada a República, mas não a paz social.

O Sanatório, esse, só é extinto em 1974, ano de outra revolução que bem conhecemos.

 

À margem

vista geral do sanatório da guarda.JPG

Os edifícios do Sanatório Sousa Martins, – hoje tristemente em ruínas – ali estão, indiferentes a todas estas movimentações, aguardando por um projeto que os recupere e lhes dê uma nova vida, como eles deram a tantos que ali encontraram a tratamento para os males dos pulmões.

Por agora estão tão decrépitos como o estava a monarquia portuguesa em 1907.

sanatorio.jpg

 

tratando um candidato.JPG

A instituição deveu muito do seu dinamismo a José Lopo de Carvalho, que a dirigiu, mas ganhou o nome do também médico José Sousa Martins. Este, que tanto lutou pela sua concretização, já não veria o sanatório a funcionar, pois matara-se uma década antes da inauguração (1897). “Desenganado” de duas doenças terminais - tuberculose e uma grave lesão cardíaca – optou por colocar um ponto final na vida, com uma injeção de morfina.

doutor sousa martins.JPG

 

Nas homenagens de que foi alvo, nas preces que ainda lhe são dirigidas por outros “desenganados” da medicina convencional, nas promessas que são feitas em sua memória e a troco da cura, contínua vivo, pelo menos na fé dos mais desesperados.

 

Mas isso é outra história...

 

 

 

Fontes

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Illustração Portugueza

N55 – 11 mar. 1907

Nº66 – 27 mai. 1907

Nº234 – 15 ago. 1910

Nº236 – 29 ago. 1910

 

Efemérides | A Greve Académica de 1907 (cm-lisboa.pt)

 

Biblioteca Nacional de Portugal (em linha)

www.purl.pt

Diário Illustrado

37º anno; Nº12.231 – 18 mai. 1907

37º anno; Nº12.232 – 19 mai. 1907

 

Os saberes e poderes da reforma de 1905, de José Viegas Brás e Maria Neves Gonçalves; Entretextos - Universidade Lusófona – Instituto de Ciências da Educação – Junho 2010. Disponível em: Microsoft Word - Entretextso nº22- Saberes e Poderes da Reforma de 1905.docx (core.ac.uk)

 

 

Conhecer, tratar e combater a “peste branca” – A tisiologia e a luta contra a tuberculose em Portugal (1873-1975) de Ismael Cerqueira Vieira; CITCEM-Centro de Investigação Transdiciplinas – Cultura, Espaço e Memória; Edições Afrontamento;

Disponível aqui: CITCEM (up.pt)

 

Almanaque Republicano: BREVE RESUMO DA REVOLTA ESTUDANTIL DE 1907 (arepublicano.blogspot.com)

 

A greve académica de 1907, duas repercussões políticas e educacionais, de Maria Neves Leal Gonçalves; Revista Lusófona de Educação – Observatório de Políticas da Educação e de Contextos Educativos da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Doutoranda da Universidade de Évora - set 2007. Disponível em:

659-Texto do artigo-2364-1-10-20090720.pdf

 

João Franco - Infopédia (infopedia.pt)

www.monumentos.gov.pt

José Tomás de Sousa Martins – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Imagens:

Illustração Portugueza

Disponível na Hemeroteca Digital de Lisboa

https://correiodaguarda.blogs.sapo.pt/sanatorio-sousa-martins-memoria-589561 

https://fg.secure.force.com/fgDetalhePDI?tipo=1&idpdi=a0L2000000WvIxtEAF 

 

...

 

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Há quatro anos encontrei a solução para aliar o meu ímpeto para a escrita, a minha paixão pela história e a enorme curiosidade de jornalista que, no íntimo, nunca deixei de ser.

Hoje, mantenho a mesma vontade de saber mais, de conhecer e de contar os episódios do passado com que me vou cruzando e que captam a minha atenção.

Percebi que a realidade é, genericamente, o melhor enredo que se pode escrever e que, por vezes, é tão extraordinária que mais parece ficção.

Continuo, felizmente, a encantar-me e a emocionar-me com as personagens que descubro – ou que me descobrem – e com as suas vidas:  trágicas, heroicas ou simplesmente, cómicas. Quanto menos exploradas e conhecidas, melhor!

O sal da história é hoje uma parte importante da minha vida, da minha sanidade mental e da minha satisfação intelectual.

Para isso também contribuem - muito - as reações dos leitores: atentas, interessadas, pertinentes, motivadoras e – agradeço profundamente – sempre em crescendo desde 2017.

Tenho “clientes” de sempre, mas também muitos novos aderentes que se tornaram fieis. 

A todos e todas, o meu muito obrigada!

Cristiana Vargas

 

 

A trágica poetisa e o poderoso republicano

 

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Rita apareceu morta na propriedade do homem mais importante da terra que, embora viúvo, tinha sido pai poucos meses antes... Imagina-se o choque e o falatório naquele longínquo ano de 1883.

 

Numa época em que às mulheres estava reservado o papel de castas e submissas criaturas, Rita saiu do lar paterno, ganhou dois processos em tribunal, investiu numa educação esmerada e publicou um livro. Depois, decidiu morrer, mas ligou para sempre o seu desaparecimento ao nome do homem mais poderoso da terra.

Rita Pereira de Mattos e José Jacinto Nunes viveram em Grândola na segunda metade do século XIX, a escassas centenas de metros um do outro. Na primavera de 1883, a jovem apareceu morta nas traseiras da casa do conhecido político, onde hoje estão instalados os Paços do Concelho.

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O caso deve ter chocado a pacata vila e o povo não terá tardado a tecer as suas interrogações. Teriam uma ligação amorosa? Estaria Rita enamorado do homem mais importante da vila? Era louca e suicidara-se?

Jose jacinto nunes1.JPG

A notoriedade de José Jacinto Nunes contribuiu, muito provavelmente, para que a tragédia fosse alvo de todas as especulações, na mesma medida em que, imagina-se, o seu poder, seria determinante para que todos dessem os seus palpites à boca pequena e nada “transpirasse” para os jornais*.

José Jacinto Nunes viveria ainda muitos anos (1839 – 1931). Teve uma carreira notável, longa, cheia de sucessos e digna de enorme admiração.

A existência de Rita foi igualmente invulgar, mas plena de desgostos. Só não sabemos se o amor pelo distinto político foi a razão de ter sido tão fatalmente curta.

Rita Pereira de Mattos foi uma poetiza de mérito, apesar de ter morrido aos 30 anos.

 

santiago do cecem.JPG

 

Amargura, tristeza e desespero são sentimentos marcantes nas palavras que escreveu, espelho da sua vida, malgrado ter nascido em berço de alguma abastança, numa família de médios proprietários rurais de Abela, Santiago do Cacém (na imagem), a 13 de setembro de 1852.

 

 

rita pereira de matos2 - Cópia.JPG

Tendo sido a única sobrevivente de um conjunto de pelo menos oito filhos, imagina-se o desvelo e a expetativa com que foi criada pelos pais.

Mas, o destino tem destas coisas.

Bem cedo, Rita inicia o seu calvário, primeiro com a morte de uma irmã com quem mais privou, depois, em 1870, com o falecimento da mãe.

Passados sete anos, poucos meses após ter contraído segundas núpcias, o pai interpõe um processo de interdição por prodigalidade. Quer provar que a filha “se acha em estado anormal das suas faculdades mentais e incapaz de reger a sua pessoa e bens”.

Sabe-se bem a relativa facilidade com que, naqueles tempos, uma mulher podia ser considerada insana, simplesmente por não se ajustar à conduta dela esperada. No caso de Rita, embora as testemunhas atestassem “acessos de loucura” passados, a apreciação final foi que estava “em perfeito juízo”, demonstrando até “prudência e sensatez não muito vulgares em pessoas do seu sexo e da sua idade”.

livro rita pereira de mattos.JPG

Rita entendia que sentir tristeza era “justíssimo”. Afinal, vivia “isolada do mundo”, “sem mãe, sem irmãos, sem família”, refugiando-se no trabalho e no estudo, já que se encontrava no fim do processo de educação a que se havia proposto. Efetivamente, como demonstra a poesia que deixou, a sua instrução terá ultrapassado em muito o expectável para alguém da sua condição.

Em 1880, o pai morre e ignora-a no testamento. Após nova batalha legal, acaba por conseguir herdar o que lhe cabia por direito.

 

Não deve ter sido nada fácil, como mulher jovem e “desamparada”, impor-se, viver sozinha ou acompanhada apenas por uma criada, como se sabe que acontecia no final da sua vida.

grandola avenida jorge nunes.JPG

 

Mas, em 1882, a publicação da sua obra – Prelúdios - poderá ter dado à poetisa a sensação de dever cumprido, porque, logo em janeiro do ano seguinte, começa a preparar a sua morte.

No testamento que então mandou lavrar, para além de dispor dos seus bens, traça claras diretrizes sobre a organização do enterro e como deveria ser amortalhada. Demonstrando a importância que atribui ao trabalho, determina regras específicas para a reedição da sua poesia.

Exatamente três meses depois, a 4 de abril, esgueirou-se por uma janela e desapareceu na noite.

casa de jose jacinto nunes atuais paços do concel

O alerta foi dado pela criada, às duas horas da madrugada, mas já o dia raiava quando Rita foi encontrada, sem vida, afogada no poço da propriedade de Jacinto Nunes. Tudo em redor indicava que a jovem “espontaneamente” ali se lançara, provavelmente em resultado da “grande exaltação nervosa” de que padecia nos últimos tempos e que se agravara nos meses anteriores a este trágico desfecho.

residencia em grandola atuais pacos do concelho.JP

 

Talvez nunca saibamos se estava louca, se sofria por amor ou sequer se José Jacinto Nunes alguma vez para ela olhou.

O que sabemos é que, precisamente uma semana antes de ter firmado o testamento onde preparava legalmente a sua morte, nasceu em Grândola uma menina, fruto da relação deste importante político e proprietário com uma jovem de 24 anos que a hipocrisia então reinante deu como incógnita no registo de batismo da filha.

Embora as suas palavras mostrem que a angústia vinha de longe, terá sido esta a gota de água que, aos 30 anos, fez transbordar o copo do sofrimento de Rita? 

A vida é maga,

sorri, afaga

de gozo embriaga

tem crenças mil;

mas quem podera,

na primavera,

morrer co'a hera do lindo abril

 

Nem um momento

d'abatimento

cruel tormento

sofrer aqui!

Viver sem norte

é mais que a morte, 

é dor mais forte

que já senti (...)

Rita Pereira de Mattos

1876

 

À margem

José_Jacintho_Nunes_-_Galeria_Republicana_(Março

José Jacinto Nunes nasceu em Pedrogão Grande. Foi em Coimbra, onde cursou Direito, que cresceu o seu pensamento político liberal e democrático, mas seria em Grândola, onde casou e fez vida, que se tornaria verdadeiramente importante e poderoso.  Ali chegado com apenas 27 anos, nomeado administrador do concelho, em pouco tempo casaria com uma jovem de uma das melhores famílias locais.

Foi presidente daquele município alentejano cerca de meio século; regionalista e republicano convicto desde a primeira hora, foi também deputado e senador, teve obra publicada, mas apesar da sua importância nacional, o poder de Lisboa não o parecia aliciar, pelo que dedicou a maior parte da sua atividade a defender Grândola e a reivindicar obras e conquistas relevantes para a terra que o adotou.

maria da natividade2.jpg

Casado com Maria da Natividade Paes e Vasconcelos (na imagem), teve cinco descendentes, três mulheres e dois homens, sendo Jorge de Vasconcelos Nunes o que mais se destacaria, pois seguiu as pisadas do pai.

 

 

 

 

 

maria lucia nunescom os filhos.jpg

 

Aos 43 anos, viúvo, com os filhos ainda pequenos, envolve-se com Maria Lúcia Feio, que trabalharia em sua casa. Do relacionamento, nasce, em dezembro de 1882, Maria Lúcia Nunes (na imagem, com os quatro filhos), que reconheceria como filha, com cujos descendentes manteria contacto, mas que, no final, não seria mencionada no seu testamento.

José Jacinto Nunes era já então uma figura nacional.

Com a luta política ao rubro, participava em comícios, congressos e chegaria a ser preso.

Nesse mesmo ano em que foi pai novamente, a publicação Galeria Republicana traça-lhe o retrato de um homem tão altivo, quanto lutador, honesto e de elevado carácter. 

 

grandola implantacao da republica.JPG

 

É ainda nessa época de tantos acontecimentos, em que o desespero de Rita Pereira de Mattos atinge o seu auge, que a Câmara de Grândola é apontada como a única no país declaradamente republicana, três décadas antes da implantação da república.

Mas isso é outra história…

 

…………………….

Agradeço a Teresa Guerreiro ter-me dado a conhecer Rita Pereira de Mattos, um tema que iria entroncar na sua própria ascendência, pois é bisneta de Maria Lúcia Feio e de José Jacinto Nunes.

…………………..

Agradeço a simpatia e a eficiência dos técnicos da Biblioteca e do Arquivo Municipal de Grândola, em especial Daniela Sousa, facilitando o acesso à documentação, mesmo à distância.

………………….

*Obviamente, não vi todos os jornais da época, mas não encontrei qualquer notícia nos que consultei.

…………………….

Fontes

Rita Pereira de Mattos – uma chamma de fogo sombrio, de Idálio Nunes e José Abreu, Edições Município de Grândola - 2021.

Prelúdios – Poesias de Rita Pereira de Mattos; Edição fac-simile; Edições Município de Grândola - 2021

 

Arquivo Distrital de Setúbal

Arquivo Distrital de Setúbal - DigitArq (arquivos.pt)

Tribunal Judicial de Santiago do Cacém: Autos de Interdição por Prodigalidade - 1877

PT/ADSTB/JUD/TJCSTC/1/011/00009

Paróquia de S. Julião - Registo de óbitos

PT/ADSTB/PRQ/PSTB03/003

Paróquia de Grândola - Registo de óbitos

PT/ADSTB/PRQ/PGDL02/003/00003

Paróquia de Grândola – Registo de casamentos

PT/ADSTB/PRQ/PGDL02/002/00001

Paróquia de Abela – Registo de batismos

PT/ADSTB/PRQ/PSTC01/001

 

 

Arquivo Municipal de Grândola

Administração do Concelho de Grândola; correspondência expedida a diversas autoridades

PT/AMGDL/ACGDL/BC/I/00012

Fundo Administração do Concelho de Grândola; Procuradoria, Registo de documentos

PT/AMGDL/ACGDL/BJ/I/00010

 

Catálogo da exposição Jacinto Nunes Republicano e Municipalista; Município de Grândola - 22 out-17 nov. 1910. Disponível aqui:

FINAL exposição.indd (cm-grandola.pt)

Comunicação A Grândola de Jacinto Nunes: uma República antes da Revolução?, de Idálio Nunes - apresentada em 24 de Outubro de 2010, no 3.º Encontro de História do Alentejo Litoral, organizado pelo Centro Cultural Emmerico Nunes em parceria com o Município de Grândola. Disponível aqui:

NUNES, Idálio, A Grândola de Jacinto Nunes - uma República antes da Revolução.pdf (cm-grandola.pt)

 

Elementos genealógicos recolhidos por Carlos Francisco Chainho

 

Roteiro Republicano da vila de Grândola. Disponível aqui:

Roteiro Republicano da Vila de Grândola.pdf (cm-grandola.pt)

 

Jorge de Vasconcelos Nunes, Memória Alentejana.pdf (uevora.pt)

 

Imagens

Catálogo da exposição Jacinto Nunes Republicano e Municipalista; Município de Grândola - 22 out-17 nov. 1910. Disponível aqui:

FINAL exposição.indd (cm-grandola.pt)

 

Roteiro Republicano da vila de Grândola. Disponível aqui:

Roteiro Republicano da Vila de Grândola.pdf (cm-grandola.pt)

 

Grândola - VIAJANDO PELO MUNDO (weebly.com)

 

https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=43654113

Hemeroteca Digital - Galeria Republicana N.º 5 (Março 1882), Domínio público

Fotografias de famíia - Teresa Guerreiro

História – Câmara Municipal de Santiago do Cacém (cm-santiagocacem.pt)

 

Arquivo Municipal de Almada

https://apps.cm-almada.pt

PT/AHALM/AHN/004/000003

https://www.portaldoanimal.org