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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Cineteatro: há 72 anos no coração de Alcácer

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Está devoluto há cerca de 30 anos, mas durante mais de quatro décadas, aquela foi a sala onde decorreram os principais espetáculos a que as gentes de Alcácer assistiram. Muitos tiveram ali a sua primeira experiência de cinema, namoros e convívios com os amigos.

 

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O cineteatro de Alcácer do Sal foi inaugurado em 1951. Esteve aberto à curiosidade popular dias antes e encheu na estreia, com o filme Frei Luís de Sousa. Apesar de a sétima arte não ser uma novidade na então vila, foi ali que muitos alcacerenses assistiram à sua primeira sessão de cinema, mas pelo palco também passaram inúmeros artistas de teatro e músicos. Abandonado há perto de três décadas, o emblemático edifício da avenida dos aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral, completa 72 anos de existência em 2022.

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Foi Francisco Serra de Sousa Lynce, ilustre advogado, delegado do Procurador da República e lavrador – herdeiro do grande proprietário José Serra Lynce, seu tio –, já então com mais de 60 anos de idade, que teve a iniciativa de mandar construir uma sala de espetáculos em Alcácer do Sal.

O arquiteto escolhido foi Amílcar Marques da Silva Pinto, embora só muito recentemente se tenha comprovado esta autoria. O seu desenho final é caracterizado por linhas simples, vãos circulares (óculos), pedra aparelhada nos cunhais e grandes envidraçados marcando a entrada.

 

O projeto, com claras influências modernistas, embora comprometido com outras linguagens estéticas, foi desenvolvido a partir de 1948 e sofreu várias alterações e aditamentos, até ser aprovado pela secção técnica da “Inspeção de Espetáculos”.

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Os pareceres e ajustes atenuaram a inspiração mais industrial preconizado pelo autor, mas que aquela entidade entendia não se adequar aos fins culturais a que se destinava o imóvel.

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No mesmo edifício, embora com entrada autónoma, estava previsto um salão de chá, que derivou no café Campino, local de paragem quase obrigatória nos trajetos norte-sul do País, durante muito tempo continuamente cheio de clientela, que ali buscava algo que comer ou beber a meio trajeto entre Lisboa e o Algarve. Mais tarde e aproveitando uma sala no primeiro andar, a atividade alargou-se à restauração.

A construção terá sido complexa, dada a localização em zona lodosa, que obrigou à utilização de numerosas estacas de pinho verde, cravadas a grande profundidade.

A sala tinha originalmente capacidade para 710 pessoas: 534 na plateia, 105 no 2º balcão e 71 no 1º balcão.

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Nos tempos iniciais, pelo menos até 1966, foi a empresa do próprio Serra Lynce a responsável pela gestão do cineteatro, pela mão de Jorge Portugal Branco. Nesse período, as sessões realizavam-se aos fins-de-semana e às quartas-feiras, com grande aposta nos maiores sucessos de Hollywood, mas também na produção nacional.

Como era de lei, as longas-metragens eram sempre antecedidas de documentários sobre a atualidade: filmes sobre Angola, o funeral de John Fitzgerald Kennedy ou a inauguração da Ponte Salazar são alguns exemplos ali vistos.

Pelo palco passaram igualmente as mais conhecidas companhias nacionais de teatro, peças ensaiadas por amadores da terra e bandas de música locais, assim como grupos itinerantes de revista ou variedades.

Nos anos 70/80, o sócio-gerente do cineteatro foi Francisco de Almeida e Moura. O empresário, que já frequentava Alcácer do Sal, nomeadamente com um cinema ambulante que aqui se fixava durante a Feira Nova, em outubro, também explorou os cinemas do Montijo e da Baixa da Banheira, no concelho da Moita.

Nessa época, a sala estava classificada como cinema de 3ª classe e teatro de 2ª classe. Entre a oferta ao dispor do público, havia dias específicos para filmes indianos ou pornografia.              

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A atividade cinematográfica prolongou-se até aos anos 90, embora a fase final fosse um lento, mas consistente declínio, quer na qualidade da filmografia, quer na degradação do próprio espaço, à falta de obras de manutenção e modernização que fizessem a sala acompanhar os desafios dos novos tempos. António Manuel Madeira Freitas foi o último a explorar o recinto de espetáculos.

Tal como tantos outros cinemas, o de Alcácer do Sal não resistiu ao advento de outros divertimentos que, por esses mesmos anos, captaram a atenção do público e o desviaram das salas tradicionais.

Há muito que se encontra abandonado, em ruínas, uma sombra do que foi, uma memória apenas do que representou para os alcacerenses que ali passaram muitos momentos de diversão.

 

À margem

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A avenida dos Aviadores, batizada em homenagem a Gago Coutinho e Sacadura Cabral, este último com ligações familiares à terra, onde o tio desempenhou por largos anos as funções de administrador do concelho, foi sendo urbanizada a partir do início do século XX, mas é das artérias que maiores transformações têm sofrido ao longo dos tempos. O traçado central, com área ajardinada, é de Gonçalo Ribeiro Telles e data dos anos 60. Para além de comércio e dependências bancárias, ali se situa a estação local dos CTT e as instalações de lar e centro de dia da Aurpicas – Associação Unitária de Reformados, Pensionistas e Idosos do Concelho de Alcácer do Sal, no local antes ocupado pela Casa do Povo.

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Ali existiam ainda alguns edifícios emblemáticos entretanto demolidos, como o lar José Godinho Jacob, substituído por prédios; a vivenda pertencente à família Carraça e que chegou a albergar um infantário; as casas dos magistrados e o antigo quartel dos Bombeiros Voluntários de Alcácer do Sal, que deu lugar a um hotel, ainda em construção.

No espaço do antigo cinema anuncia-se agora um condomínio com piscinas e terraços que, ironicamente, mantém o título de “Teatro”, embora prometa ser bem menos popular em termos de frequência que a antiga sala de espetáculos, mais que não seja pelos preços já anunciados para os imóveis.

Mas isso é outra história…

 

Fontes

Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal 

Coleção Jornal Voz do Sado

jan 1960 

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/12/03/06/04 

Cultura e eventos/Cinema no Cineteatro de alcácer do Sal – Movimento de bilheteira 1970-1990 

 PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/12/03/01 

Cultura e eventos/Cartazes 

Informações gentilmente fornecidas por Baltasar Flávio da Silva

Imagens 

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal 

PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/198 

PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/160 

PT/ AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0029 

PT/ AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/2877 

PT/ AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/2899 

PT/ AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/2907 

 

 

O veleiro mais rápido do mundo veio morrer a Portugal

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Foi o navio mais veloz do seu tempo. As imponentes e numerosas velas; a proa aguçada, com a enigmática figura de elmo e espada; as amplas entranhas onde cabiam toneladas de chá… Tudo fazia do Thermopylae uma verdadeira obra de arte da engenharia naval. Pena que tenha “morrido” com estrondo às mãos da Marinha de Guerra Portuguesa, que o havia comprado para servir de navio-escola.

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Pertencia a uma nova classe de navios na encruzilhada entre o passado e o futuro. Numa época de viragem em que as embarcações a vapor ameaçavam vencer os veleiros, os clippers da segunda metade do século XIX - com estrutura em ferro, forrada a madeira, por sua vez coberta com cobre - eram o último fôlego e o pináculo do aperfeiçoamento da navegação à vela. E o Thermopylae foi um dos seus melhores exemplares.

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A 5 novembro de 1869, carregado de granito e Whisky, zarpa para o trajeto inaugural e faz história. Estabelece um novo recorde de velocidade - ainda por bater - entre Londres e Melbourne.

Esta vitória marcaria o tom da existência deste navio, encarregue de transportar sobretudo chá e arroz entre a China, Inglaterra e Austrália; madeira do Canadá e lã australiana. Competia directamente com o famoso Cutty Sark, e saía quase sempre vencedor.

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Mas, a abertura do canal do Suez, nesse mesmo mês, apressaria o triunfo da ainda insipiente navegação a vapor, pois aquele acesso estratégico entre a Europa e a Ásia Meridional não era viável para veleiros. Em vez de percorrerem 32 mil milhas, cruzar o equador por quatro vezes, percorrer em latitude todo o Atlântico, atravessar o Índico em latitude e longitude e dobrar duplamente o Cabo da Boa Esperança, com a nova passagem, os navios percorriam apenas 20 mil milhas numa viagem de ida e volta.

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Foi nesse contexto que a sorte do Thermopylae começou a mudar.

Em 1890 foi vendido a uma empresa canadiana, pondo fim a mais de vinte anos de sucesso e admiração em épicas viagens transoceânicas.

Passa de mão em mão, vê a altivez dos seus mastros ser reduzida, sofre alterações para adaptar-se a novos serviços e enfrenta problemas de insubordinação a bordo.

Para terminar esta agonia, surge a possibilidade de voltar a engrandecer-se, ao ser vendido à Marinha de Guerra Portuguesa, com o objetivo de assumir o honroso e importante papel de navio-escola. Custou ao erário público 1.800 libras esterlinas e foi rebatizado com o nome do conhecido matemático, professor e cosmógrafo real do século XVI, Pedro Nunes.

A Armada, estava então muito depauperada, com meios escassos e obsoletos O objetivo era, no âmbito da aquisição de um conjunto mais vasto de embarcações, criar condições para defender os nossos interesses ultramarinos, em resposta ao humilhante ultimato britânico de 1890.

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Entrou na barra do Tejo em 29 de maio de 1896 e, em 20 de agosto, foi incorporado.

Mas, não chegaria a brilhar, sequer a navegar, porque, embora mantivesse o aspeto majestoso de outrora, quando inspecionado na doca do Arsenal, percebeu-se a verdadeira extensão da desgraça.

O casco do Thermopylae estava totalmente arruinado pela ação do insidioso teredo*. O dano era tal que, aliás, não se aconselhava a reparação e a ideia de o converter em navio-escola torna-se uma miragem.

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Não torna a sulcar as águas.

Parcialmente desmastreado, fundeado no Tejo, passa a servir de depósito de carvão para os navios a vapor que o haviam destronado, função pouco exigente para tão sofisticada embarcação, mas que, resignadamente, exerceu durante uma década… até que, no dia 13 de Outubro de 1907 voltou a ser protagonista, embora pelas piores razões.

 

Nesse domingo realizava-se a Festa da Bandeira (nas duas imagens anteriores), uma organização da Liga Naval Portuguesa que levou à baía da Cascais muita animação, desfiles e regatas, bem como manobras militares.

Foi precisamente durante um exercício da esquadrilha de torpedeiros que o histórico veleiro encontrou o seu fim. Ao embate do primeiro torpedo, partiu-se em dois, afundando-se em meio minuto, envolto numa nuvem de pó de carvão e poeira.

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O Thermopylae, que falhou o propósito de ensinar a arte da vela, desaparecia assim após uma curtíssima carreira como alvo para a instrução de tiro com torpedos móveis.

Este fim está, no entanto, associado a outras tristes ironias.

O último comandante do histórico veleiro que acabou submerso foi João Augusto de Fontes Pereira de Mello, autor de submergíveis e criador do primeiro protótipo para um submarino totalmente português, que, ingratamente, nunca chegaria a passar da fase de testes.

Paralelamente, o disparo fatal, conta a tradição oral, foi dado pelo próprio rei D. Carlos, que, menos de quatro meses depois, tombaria, ferido de morte, também ele condenado, sem saída, ultrapassado, pelos novos tempos que ditavam outras formas de ver o mundo.

 

À margem

O Thermopylae não foi o único veleiro célebre a passar por Portugal. No ano anterior ao afundamento do seu concorrente direto, também o Cutty Sark foi comprado para o nosso País, por um armador que o baptizou com o seu nome: Ferreira (de Joaquim António Ferreira e Cª). Por cá ainda voltou a ser rebaptizado como Maria do Amparo, navegando até 1922, altura em que, com melhor sorte que o seu rival, foi adquirido para Inglaterra, onde se iniciou a sua recuperação como navio de recreio e posterior musealização.

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Em 2007, durante uma operação de restauro, foi destruído por um incêndio, que obrigou à sua reconstrução quase total. Hoje, renascido das cinzas, pode ser visitado em Greenwish, tornando-se, assim, o sobrevivente da época de ouro dos velozes clippers.

É caso para dizer que, na viagem final, foi o Cutty Sark que levou a melhor.

Os supersticiosos poderiam achar que esta imortalidade foi magia da bruxa que ostenta na proa, ou que, ao invés, o azar do Thermopylae deriva de apresentar no mesmo local o desditoso rei Leónidas (na imagem), que morreu lutando no estreito de Termopilas*, defendendo a Grécia durante uma invasão persa.

Mas isso é outra história…

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*Teredo:molusco bivalve, acéfalo e alongado, que vive em madeiras submersas, por exemplo, de embacações ou estacas, perfurando-as. = BUSANO, GUSANO, TEREDEM

**à letra, Termopilas significa “portões quentes”, designação que deriva da existência de nascentes sulfurosas de onde brota água aquecida.

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Nota: o Thermopylae foi desenhado por Bernard Waymouth, construído pela Walter Hood e Comp. para a Aberdeen Line.

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Fontes:

Thermopylae, História do Clipper mais veloz do mundo, de António Fialho, Augusto Salgado, Carmen Soares, Jean-Yves Blot e Jorge Freire, Câmara Municipal de Cascais; 2008.

Revista da Armada – Publicação Oficial da Marinha; nº385, ano XXXIV – abr. 2005; texto de António Manuel Gonçalves CTEN. Disponível em: Página Inicial | Revista de Marinha

Hemeroteca Digital de Lisboa

O Occidente

16º ano, XVI volume, Nº536 – 11 nov 1893

17º ano, XVII volume, Nº543 – 11 jan 1894

 

 

 

Dicionário Priberam Online de Português Contemporâneo

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Cutty_Sark

 

Arquivo Histórico da Marinha

Marinha Portuguesa - Archeevo

 

Imagens

Hemeroteca Digital de Lisboa

Illutração Portugueza

Nº87, 21 out. 1907

San Francisco History Center, San Francisco Public Libraryhttp://sflib1.sfpl.org:82/record=b1035984~S0, domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=47879218

Thermopylae (clipper) - Wikiwand

Clipper Thermopylae – Victoria Harbour History

Thermopylae and the Cutty Sark - Shipping Wonders of the World

The tea clipper 'Thermopylae' | Royal Museums Greenwich (rmg.co.uk)

 

Clipper Ship Thermopylae (f2s.com)

 

Leonidas

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