As estranhas mortes no Francfort Hotel
Uma história cheia de coincidências bizarras, que mais parece o enredo de um livro policial, mas aconteceu em Lisboa, naquele violento verão de 1923, num insuspeito hotel do Rossio.
Uma bela alemã precipita-se da janela do terceiro andar de um hotel de Lisboa, encontrando a morte na calçada. Face à escassez de indícios óbvios sobre o que aconteceu, os jornais multiplicam-se em especulações e teorias. Até no Senado se fala sobre o assunto, instando-se a polícia a apresentar resultados, tanto mais que Margarithe Isolda foi a terceira mulher a morrer naquele local e da mesma forma.
Parece o enredo de um livro policial, mas esta estranha e dramática coincidência, chamemos-lhe assim, aconteceu mesmo e provocou imensa celeuma na opinião pública.
Apesar de, naquele Portugal de 1923, a violência e a instabilidade andarem pelas ruas, não sendo, de forma nenhuma, estranhas à população, todos queriam saber o que tinha acontecido à formosa mulher.
O trágico voo para a morte aconteceu pelas três horas da manhã do dia 17 de junho. Ouviu-se um grito lancinante, que acordou todos os hóspedes e fez os empregados do Francfort Hotel, no Rossio, andarem pelos corredores, tentando perceber de onde provinha o alarmante som. No exterior, alguém acabaria por dar o alerta: uma jovem jazia no pavimento, ainda viva, mas agonizante. O sangue manchava-lhe a pele branca e o cabelo loiro, confundindo-se com o vermelho do roupão que vestia.
Os cabos telefónicos ampararam-lhe a queda, mas não impediram o impacto no solo, que acabaria por ser fatal.
Socorrida e transportada ao Hospital de São José, foi submetida a uma intervenção cirúrgica. Em vão.
Às 4h30, o corpo de Margarithe Magdalene Isolda Mayer Stromfelt deu entrada na morgue.
Soube-se depois que tinha 25 anos de idade. Viera para o nosso País menos de um ano antes, ensinar alemão às crianças da família do “importante capitalista” José Duarte de Figueiredo, no Luso. Elegante, educada, fria no trato, teria a mão pesada, pois dela se conta ter dado uma bofetada a uma das alunas – o que teria motivado o despedimento – e a uma das criadas do hotel. Nos dias anteriores ao fim, mostrava-se triste e angustiada, mal comendo.
No local, a polícia iniciava averiguações, até porque houve quem jurasse a pés juntos que, momentos antes da queda, se viu a sombra de um homem junto da cidadã alemã. Tal visão levou até à detenção de um hóspede instalado no mesmo piso, mas essa hipótese parece ter sido rapidamente posta de lado.
Estranhamente, acrescentamos, as forças de segurança, neste caso lideradas pelo chefe Murtinheira, descartaram logo a possibilidade de ali ter ocorrido um crime. Estranhamente, porque, segundo os jornais, no referido hotel, no curto espaço de um ano, três senhoras haviam procedido de igual forma, o que, para não dizer outra coisa, é uma casualidade espantosa.
Não obstante, a polícia apontou primeiro para suicídio e, sendo esta possibilidade pouco verosímil, em face das pistas, entendeu como boa a curiosa versão de sonambulismo.
Mais uma vez, a comunicação social, fazia eco destas linhas de investigação e também dos boatos e conjecturas diversas, sempre apontando mais para crime do que para uma realidade menos sumarenta.
Estas troadas, aliás chegaram a ser repetidas em sessão do Senado, por Joaquim Crisóstomo da Silveira Júnior. Em intervenção sobre este “caso sensacional”, o senador urgia o ministro do Interior a chamar a atenção dos directores da polícia de investigação.
Lembrou as suspeitas emergentes sobre o dono do hotel que, segundo uma das teorias em circulação, com “audácia e arrojo”, abusando “da sua situação especial”, entraria “pelo quarto das hospedas (sic) para fins desonestos, coagindo-as a ceder aos seus desejos”, pelo que elas, em desespero, se viam obrigadas a atirar-se da janela. Sendo que “também se afirmava como verdadeiro que o referido proprietário gratificava generosamente quem conseguisse “evitar a publicidade do aludido caso, e sobretudo, impedir a remessa do processo de investigação para juízo”.
Não sabemos o desfecho deste caso, porque, efectivamente, poucos dias depois destas declarações, estando a tese de sonambulismo adotada pela polícia, os jornais calaram-se sobre o assunto, após um mês de intenso noticiário.
Pequeno grande pormenor: desde 1917 que o dono do Francfort Hotel, sobre quem recaíram os ultrajantes rumores, era Alexandre de Almeida, o “pai” da hotelaria em Portugal. Nascido no Luso (outra coincidência), concelho da Mealhada, tornou-se empresário, chegando a explorar um vasto conjunto de unidades hoteleiras: Palace Hotel do Buçaco, Palace Hotel da Curia, Hotel Astória (Coimbra), Miradouro (Buçaco), Praia-Mar (Carcavelos), Metrópole e, claro, o Francfort, ambos em Lisboa.
À margem
Lisboa não teve um, mas dois Francfort: o Hotel Francfort, na rua de Santa Justa (nesta imagem), e o Francfort Hotel, no Rossio, pertencentes, respectivamente, aos irmãos João e Artur Silva*.
Foi no Francfort Hotel que, em 1912, morreu o 2º tenente da Armada, Alberto Soares, linchado pela multidão que o perseguiu, alegadamente por injúrias à República e por ser suspeito de ligações a uma enorme explosão que por aqueles dias tinha lançado pelos ares um prédio na Costa do Castelo.
Mas se, para variar, falarmos de nascimentos, podemos acrescentar que foi em grande parte com os muitos trabalhadores do Francfort Hotel que, em 1908, se deu a criação da Associação de Classe dos Empregados dos Hotéis e Restaurantes, sendo longa a história de greves, reivindicações e rebentamento de petardos ali decorridas entre 1922 e 1924. Anos depois, já encerrado, viria a ser ocupado por trabalhadores do comércio do distrito de Lisboa, noutra época quente e dada a atentados bombistas, em 1975.
A curiosidade e, obviamente, as confusões provocadas pela duplicação do nome, serviu até de inspiração a um romance (2014), de David Leavitt, que decorre em clima de tensão sexual e política, durante a Segunda Guerra Mundial. Intitula-se Dois Hotéis de Lisboa….
Mas isso é outra história
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* Embora irmãos, estes nada tenham que ver com o anterior nome do hotel: “Irmãos Unidos”, que, aliás, prevaleceu num conhecido restaurante situado no mesmo edifício.
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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Jornal A Capital
20 jun 1923
27 jun 1923
30 jun 1923
3 jul 1923
4 jul 1923
5 jul 1923
9 jul 1923
11 jul 1923
19 jul 1923
20 jul 1923
Fundação Mário Soares
http://casacomum.org/cc/diario_de_lisboa/
Diário de Lisboa
17 jun 1923
18 jun 1023
10 jul 1923
Debates Parlamentares
Sessão 11 jul 1923
https://debates.parlamento.pt/catalogo/r1/cs/01/06/01/062/1923-07-11?sft=true#p3
https://restosdecoleccao.blogspot.com/2018/11/francfort-hotel.html
https://restosdecoleccao.blogspot.com/2018/11/restaurante-e-hotel-irmaos-unidos.html
https://restosdecoleccao.blogspot.com/2019/01/hotel-francfort.html
http://sindicatos.cgtp.pt/hotelaria-sul/2015/07/31/historia-do-sindicato-de-hotelaria/
https://pt.scribd.com/doc/13094843/Curia-Palace-Hotel
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/ocupacao-do-hotel-francfort/
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
António Castelo Branco
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACB/000059
Armando Maia Serôdio
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FDM/001614
Eduardo Alexandre Cunha
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/002611
Fotografia Alvão Ldª
PT/AMLSB/ALV/000018
https://www.kindpng.com/imgv/TRbbmwo_falldown-sleep-down-dead-death-fall-falling-transparent/