A vingança está na pedra
O edifício dos Paços do Concelho do Porto ergue-se imponente ao cimo da avenida dos Aliados. Parece estar ali desde sempre, mas tal não poderia ser mais enganador. Aquele que, em Portugal, foi o último monumento construído em granito, demorou um tempo recorde de 37 anos a ser levantado. Terá sido castigo divino ou praga rogada pela estátua andarilha?
Quando, naquele dia 24 de junho de 1920, a cidade se engalanou e os importantes da Invicta se juntaram para, simbolicamente, lançar a pedra fundamental, dificilmente imaginariam que a inauguração do novo edifício dos Paços do Concelho do Porto só se daria em 1957, depois de muitas peripécias e atrasos. Houve quem falasse em castigo divino pelos atrevidos projetos republicanos.
No ato solene original, como era costume na época, foram encerradas num cofre moedas em circulação e o auto da cerimónia, em folha de pergaminho ostentando iluminuras alusivas ao Porto e o brasão de armas da cidade. A caixa foi depositada na cavidade da denominada pedra fundamental, cimentada por José Gonçalves Barbosa de Castro, presidente da câmara, que morreria nesse mesmo ano, e Armando Marques Guedes, presidente da comissão executiva.
O projeto escolhido, do arquiteto António Correia da Silva (1880-1963) - responsável também pelo traço do Mercado do Bolhão – era bem mais grandioso e monumental – com seis pisos e cave - que o anteriormente proposto por Barry Parker, autor do arranjo urbanístico da cidade que então se executava e implicou a demolição, entre outros, do antigo edifício dos paços do concelho (na imagem) para a abertura da avenida das Nações Aliadas.
Ora, a igreja cedo se terá oposto a estas modernices que punham em causa a importância de monumentos religiosos e obrigaram até o bispo a sair do paço eclesiástico para os serviços municipais ali se instalarem até o seu novo espaço estar pronto.
Acresce que o edifício da câmara, tal como foi executado, relegou a igreja da Santíssima Trindade (na imagem) para as suas traseiras, usurpando a posição privilegiada e de destaque que aquela ocupava na malha urbana antiga. A torre central da Câmara é, até, ostensivamente mais alta do que a do templo católico, mesmo ali ao lado.
Durante muito tempo, este facto foi visto pelo povo como um ato deliberado, uma vingança – servida gelada, diga-se - dos republicanos face à resistência da igreja aos seus planos de modernização do Porto.
A animosidade entre a Primeira República em Portugal e a Igreja Católica foi tal que é justo, efabular se a enorme dificuldade em levar por diante a ansiada construção dos Paços do Concelho não seria motivada por má vontade divina.
É que, depois do aparato e dos trabalhos iniciais respeitantes aos alicerces, a construção esteve praticamente parada nos 27 anos seguintes, sendo retomada em 1947. “A obra de alvenaria, cantarias, terraços e torre demorou 20 anos a ficar concluída”, empregando muitas toneladas de granito, que foi necessário trazer das pedreiras de S. Gens.
O arquiteto António Correia da Silva, que viveria o suficiente para ver o edifício em pé, teria o possível desgosto de não acompanhar o processo até ao fim, já que foi substituído, em 1950, por Carlos Chambers Ramos, a quem coube alterar o primeiro plano e concluir a obra.
Mas, mesmo esta fase final não foi isenta de contratempos. As enormes rampas de acesso, que substituíram a escadaria inicialmente prevista, provaram ser um entrave ao fluir do trânsito nas ruas confinantes, pelo que foram derrubadas, num trabalho moroso e dispendioso.
Tão dispendioso, que o arquiteto Carlos Chambers Ramos (Diretor da Escola Superior de Belas Artes do Porto) suportou parte da despesa.
Finalmente, com festejos e pompa - tal como quando tudo começou - a 24 de junho de 1957, Dia de São João, o Presidente da República Américo Tomás, cortou a fita inaugural - na imagem, o banquete realizado nesse dia.
O Bispo-Auxiliar do Porto, D. Florentino de Andrade, esteve presente, selando o aval católico a tão grande monumento e mostrando à evidência que eram outros os tempos que então se viviam e bem diferentes as relações entre o Estado e a Igreja.
À margem
Quando se deu início à demolição dos antigos Paços do Concelho do Porto, na praça D. Pedro IV (hoje praça da Liberdade), foi apeada a impressionante escultura de João de Sousa Adão, executada pelo mestre pedreiro João da Silva, que encimava o edifício desde 1818.
Seria o início de uma itinerância para aquela obra de arte, na qual a Invicta é retratada como um valoroso guerreiro ataviado com elmo, lança e escudo, onde são visíveis as armas da cidade.
Durante o período em que a câmara ocupou o Paço Episcopal, a estátua esteve instalada em frente, como que velando pelo andamento da atividade municipal. Depois, no final dos anos 50 do século XX, seguiu para os jardins da Palácio de Cristal, daí, para o jardim do largo Arnaldo Gama e, de novo para o Palácio de Cristal, embora em diferente localização.
Mas, não ficaria por aqui. Em 2002, decidiu-se requalificar o mais antigo edifício da Câmara do Porto, também conhecido como Casa dos 24 - por aí se reunirem os representantes dos 24 mesteres (profissões) existentes no Porto na Idade Média - época à qual remonta.
O polémico projeto do arquiteto Fernando Távora, partiu destas ruínas para erigir uma torre moderna, meramente evocativa da anteriormente existente, junto à Sé, mas foi buscar a estátua granítica, O Porto, voltando a dar-lhe o local de destaque que merecia, embora de costas para a cidade - porque a ideia era que fosse vista de dentro do imóvel - o que não agradou.
Escusado será dizer que tornou a mudar (em 2013), desta vez para a área frontal à sede do Banco de Portugal, na mesma praça da Liberdade, de onde saíra tantos anos antes.
Acrescente-se que esta estátua é “herdeira” de uma outra, provavelmente tardo-romana e de bastante mais rude talhe, referida pelo menos desde o seculo XIII e que, tal como esta, andou de poiso em poiso, até à demolição do edifício dos Açougues*, onde se encontrava em início do século XIX, altura em que desapareceu, nunca mais sendo vista.
Mas isso é outra história…
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*A demolição do edifício dos Açougues – matadouro e venda de carne - deveu-se à abertura da praça da Penaventosa, hoje largo Dr. Pedro Vitorino.
Fontes
Câmara Municipal do Porto
Edifício Paços do Concelho | Câmara Municipal do Porto (cm-porto.pt)
Associação Empresarial do Porto
Texto de Joel Cleto
O centenário da Avenida da Cidade 1916-2016
Os Paços do Concelho - No Centenário da Avenida da Cidade 1916-2016 (up.pt)
Arquivo Municipal do Porto
Traslado do Auto Comemorativo da Colocação da Pedra Fundamental do Edifício dos Paços do Concelho do Porto
Cota: D-MAN/2-38
Informação relativa à estátua “O Portto”
PT-CMP-AM/PRI/GBB/3789-3790/F.NP:CMP:1:29.33
Sistema de Informação para o Património Arquitetónico
Texto de Patrícia Costa e Ana Filipe
Texto de José Ferrão Afonso
Histórias da cidade: as andanças de uma estátua - Portal de notícias do Porto. Ponto.
MONUMENTOS DESAPARECIDOS: Antigos Paços do Concelho e a Praça de D. Pedro. (Cidade do Porto)
PORTO, DE AGOSTINHO REBELO DA COSTA AOS NOSSOS DIAS: ARTES E OFÍCIOS - X (portoarc.blogspot.com)
Antiga Casa da Câmara (Porto) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Imagens
Arquivo Municipal do Porto
Edifício dos Paços do Concelho do Porto após 1957
F.P:CMP:10:685
Guilherme Bonfim Barreiros
Torres do edifício dos Paços do Concelho e Igreja da Santíssima Trindade
F.NP:2.GBB:1:91.21.23.24.26
Várias fases de construção dos Paços do Concelho da cidade do Porto, entre 1936 e 1947.
F.P:CMP:7:24.1.a.7
Vários aspetos da construção dos acessos ao edifício da Câmara Municipal do Porto
Código parcial 3110:3703
Emílio Biel
Praça D. Pedro IV e edifício dos Paços do concelho entre 1818 e 1916.
D-PST/33
Aspeto parcial da fachada principal do Paço Episcopal, sede da Câmara Municipal do Porto entre 1916 e 1957, vendo-se no lado esquerdo, a estátua "Porto",
PT-CMP-AM/PRI/GBB/3789-3790/F.NP:CMP:1:29.33
Construção do edifício dos Paços do Concelho do Porto, vendo-se a igreja da Santíssima Trindade
APMF Cliché Foto Beleza, cedido por Miguel Figueiras, pertencente ao espólio de Manuel Caetano de Oliveira. Aqui: Os Paços do Concelho - No Centenário da Avenida da Cidade 1916-2016 (up.pt)
Vários aspetos do jantar na sala dos Passos Perdidos, em honra do Presidente da República, Américo Tomás. Destacando-se o Presidente da Câmara Municipal, José Machado Vaz; o Bispo-Auxiliar do Porto, Dom Florentino de Andrade; o Ministro das Obras Públicas, Eduardo Arantes de Oliveira.
PT-CMP-AM/PUB/CMPRT/DSH/1697/F.P:CMP:7:35.1.a.10
Estátua O Porto sendo apeada do antigo edifício dos Paços do Concelho
Aurélio Paz dos Reis
Aqui: MONUMENTOS DESAPARECIDOS: Antigos Paços do Concelho e a Praça de D. Pedro. (Cidade do Porto)
O porto, de costas
PORTO, DE AGOSTINHO REBELO DA COSTA AOS NOSSOS DIAS: ARTES E OFÍCIOS - X (portoarc.blogspot.com)