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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A vingança está na pedra

edificio dos paços do concelho do porto apos 1957

O edifício dos Paços do Concelho do Porto ergue-se imponente ao cimo da avenida dos Aliados. Parece estar ali desde sempre, mas tal não poderia ser mais enganador. Aquele que, em Portugal, foi o último monumento construído em granito, demorou um tempo recorde de 37 anos a ser levantado. Terá sido castigo divino ou praga rogada pela estátua andarilha?

 

Quando, naquele dia 24 de junho de 1920, a cidade se engalanou e os importantes da Invicta se juntaram para, simbolicamente, lançar a pedra fundamental, dificilmente imaginariam que a inauguração do novo edifício dos Paços do Concelho do Porto só se daria em 1957, depois de muitas peripécias e atrasos. Houve quem falasse em castigo divino pelos atrevidos projetos republicanos.

No ato solene original, como era costume na época, foram encerradas num cofre moedas em circulação e o auto da cerimónia, em folha de pergaminho ostentando iluminuras alusivas ao Porto e o brasão de armas da cidade. A caixa foi depositada na cavidade da denominada pedra fundamental, cimentada por José Gonçalves Barbosa de Castro, presidente da câmara, que morreria nesse mesmo ano, e Armando Marques Guedes, presidente da comissão executiva.

paços do concelho entre 1818 e 1916.GIF

O projeto escolhido, do arquiteto António Correia da Silva (1880-1963) - responsável também pelo traço do Mercado do Bolhão – era bem mais grandioso e monumental – com seis pisos e cave - que o anteriormente proposto por Barry Parker, autor do arranjo urbanístico da cidade que então se executava e implicou a demolição, entre outros, do antigo edifício dos paços do concelho (na imagem) para a abertura da avenida das Nações Aliadas.

construção do edifício vendo-se a igreja.GIF

Ora, a igreja cedo se terá oposto a estas modernices que punham em causa a importância de monumentos religiosos e obrigaram até o bispo a sair do paço eclesiástico para os serviços municipais ali se instalarem até o seu novo espaço estar pronto.

Acresce que o edifício da câmara, tal como foi executado, relegou a igreja da Santíssima Trindade (na imagem) para as suas traseiras, usurpando a posição privilegiada e de destaque que aquela ocupava na malha urbana antiga. A torre central da Câmara é, até, ostensivamente mais alta do que a do templo católico, mesmo ali ao lado.

torres do edifício dos paços do concelho e da ig

Durante muito tempo, este facto foi visto pelo povo como um ato deliberado, uma vingança – servida gelada, diga-se - dos republicanos face à resistência da igreja aos seus planos de modernização do Porto.

A animosidade entre a Primeira República em Portugal e a Igreja Católica foi tal que é justo, efabular se a enorme dificuldade em levar por diante a ansiada construção dos Paços do Concelho não seria motivada por má vontade divina.

construção paços do concelho porto.GIF

É que, depois do aparato e dos trabalhos iniciais respeitantes aos alicerces, a construção esteve praticamente parada nos 27 anos seguintes, sendo retomada em 1947. “A obra de alvenaria, cantarias, terraços e torre demorou 20 anos a ficar concluída”, empregando muitas toneladas de granito, que foi necessário trazer das pedreiras de S. Gens.

O arquiteto António Correia da Silva, que viveria o suficiente para ver o edifício em pé, teria o possível desgosto de não acompanhar o processo até ao fim, já que foi substituído, em 1950, por Carlos Chambers Ramos, a quem coube alterar o primeiro plano e concluir a obra.

Mas, mesmo esta fase final não foi isenta de contratempos. As enormes rampas de acesso, que substituíram a escadaria inicialmente prevista, provaram ser um entrave ao fluir do trânsito nas ruas confinantes, pelo que foram derrubadas, num trabalho moroso e dispendioso.

construcao das rampas de acesso.GIF

Tão dispendioso, que o arquiteto Carlos Chambers Ramos (Diretor da Escola Superior de Belas Artes do Porto) suportou parte da despesa.

 

 

banquete inaugural do edificio 1957 com americo to

Finalmente, com festejos e pompa - tal como quando tudo começou - a 24 de junho de 1957, Dia de São João, o Presidente da República Américo Tomás, cortou a fita inaugural - na imagem, o banquete realizado nesse dia.

O Bispo-Auxiliar do Porto, D. Florentino de Andrade, esteve presente, selando o aval católico a tão grande monumento e mostrando à evidência que eram outros os tempos que então se viviam e bem diferentes as relações entre o Estado e a Igreja.

O_Porto,_encimava_o_antigo_edifício_dos_paços_do

 

À margem

o porto sendo apeado do antigo edificio dos paços

Quando se deu início à demolição dos antigos Paços do Concelho do Porto, na praça D. Pedro IV (hoje praça da Liberdade), foi apeada a impressionante escultura de João de Sousa Adão, executada pelo mestre pedreiro João da Silva, que encimava o edifício desde 1818.

Seria o início de uma itinerância para aquela obra de arte, na qual a Invicta é retratada como um valoroso guerreiro ataviado com elmo, lança e escudo, onde são visíveis as armas da cidade.

o porto em frente ao paço episcopal onde funciona

Durante o período em que a câmara ocupou o Paço Episcopal, a estátua esteve instalada em frente, como que velando pelo andamento da atividade municipal. Depois, no final dos anos 50 do século XX, seguiu para os jardins da Palácio de Cristal, daí, para o jardim do largo Arnaldo Gama e, de novo para o Palácio de Cristal, embora em diferente localização.

Mas, não ficaria por aqui. Em 2002, decidiu-se requalificar o mais antigo edifício da Câmara do Porto, também conhecido como Casa dos 24 - por aí se reunirem os representantes dos 24 mesteres (profissões) existentes no Porto na Idade Média - época à qual remonta.

o porto de costas (2).jpg

O polémico projeto do arquiteto Fernando Távora, partiu destas ruínas para erigir uma torre moderna, meramente evocativa da anteriormente existente, junto à Sé, mas foi buscar a estátua granítica, O Porto, voltando a dar-lhe o local de destaque que merecia, embora de costas para a cidade - porque a ideia era que fosse vista de dentro do imóvel - o que não agradou.

Escusado será dizer que tornou a mudar (em 2013), desta vez para a área frontal à sede do Banco de Portugal, na mesma praça da Liberdade, de onde saíra tantos anos antes.

Acrescente-se que esta estátua é “herdeira” de uma outra, provavelmente tardo-romana e de bastante mais rude talhe, referida pelo menos desde o seculo XIII e que, tal como esta, andou de poiso em poiso, até à demolição do edifício dos Açougues*, onde se encontrava em início do século XIX, altura em que desapareceu, nunca mais sendo vista.

Mas isso é outra história…

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*A demolição do edifício dos Açougues – matadouro e venda de carne - deveu-se à abertura da praça da Penaventosa, hoje largo Dr. Pedro Vitorino.

 

Fontes

Câmara Municipal do Porto

Edifício Paços do Concelho | Câmara Municipal do Porto (cm-porto.pt)

 

Associação Empresarial do Porto

SABIA QUE… O EDIFÍCIO DA CÂMARA TEM FAMA DE TER TAPADO A IGREJA DA TRINDADE DE PROPÓSITO? – Associação Comercial do Porto (cciporto.com)

Texto de Joel Cleto

 

O centenário da Avenida da Cidade 1916-2016

Os Paços do Concelho - No Centenário da Avenida da Cidade 1916-2016 (up.pt)

 

Arquivo Municipal do Porto

Gisa (cm-porto.pt)

Traslado do Auto Comemorativo da Colocação da Pedra Fundamental do Edifício dos Paços do Concelho do Porto

Cota: D-MAN/2-38

Informação relativa à estátua “O Portto”

PT-CMP-AM/PRI/GBB/3789-3790/F.NP:CMP:1:29.33

 

Sistema de Informação para o Património Arquitetónico

Monumentos

Texto de Patrícia Costa e Ana Filipe

 

Açougues – Cabido, nº 123 – venda dos açougues e pardieiros junto deles que Martim Pelágio fez ao Ilmº Cabido, ano de 1282 – f (apha.pt)

Texto de José Ferrão Afonso

 

Histórias da cidade: as andanças de uma estátua - Portal de notícias do Porto. Ponto.

MONUMENTOS DESAPARECIDOS: Antigos Paços do Concelho e a Praça de D. Pedro. (Cidade do Porto)

PORTO, DE AGOSTINHO REBELO DA COSTA AOS NOSSOS DIAS: ARTES E OFÍCIOS - X (portoarc.blogspot.com)

Antiga Casa da Câmara (Porto) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Imagens

Arquivo Municipal do Porto

https://gisaweb.cm-porto.pt/

Edifício dos Paços do Concelho do Porto após 1957

 F.P:CMP:10:685

Guilherme Bonfim Barreiros

Torres do edifício dos Paços do Concelho e Igreja da Santíssima Trindade

F.NP:2.GBB:1:91.21.23.24.26

Várias fases de construção dos Paços do Concelho da cidade do Porto, entre 1936 e 1947.

F.P:CMP:7:24.1.a.7

Vários aspetos da construção dos acessos ao edifício da Câmara Municipal do Porto

Código parcial 3110:3703

 

Emílio Biel

Praça D. Pedro IV  e edifício dos Paços do concelho entre 1818 e 1916.

D-PST/33

 

Aspeto parcial da fachada principal do Paço Episcopal, sede da Câmara Municipal do Porto entre 1916 e 1957, vendo-se no lado esquerdo, a estátua "Porto",

PT-CMP-AM/PRI/GBB/3789-3790/F.NP:CMP:1:29.33

 

Construção do edifício dos Paços do Concelho do Porto, vendo-se a igreja da Santíssima Trindade

APMF Cliché Foto Beleza, cedido por Miguel Figueiras, pertencente ao espólio de Manuel Caetano de Oliveira. Aqui: Os Paços do Concelho - No Centenário da Avenida da Cidade 1916-2016 (up.pt)

 

Vários aspetos do jantar na sala dos Passos Perdidos, em honra do Presidente da República, Américo Tomás. Destacando-se o Presidente da Câmara Municipal, José Machado Vaz; o Bispo-Auxiliar do Porto, Dom Florentino de Andrade; o Ministro das Obras Públicas, Eduardo Arantes de Oliveira.

PT-CMP-AM/PUB/CMPRT/DSH/1697/F.P:CMP:7:35.1.a.10

 

Ficheiro:O Porto, encimava o antigo edifício dos paços do concelho na praça nova, 1818, João de Sousa Alão (escultor), João da Silva (mestre pedreiro).JPG – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Estátua O Porto sendo apeada do antigo edifício dos Paços do Concelho

Aurélio Paz dos Reis

Aqui: MONUMENTOS DESAPARECIDOS: Antigos Paços do Concelho e a Praça de D. Pedro. (Cidade do Porto)

 

O porto, de costas

PORTO, DE AGOSTINHO REBELO DA COSTA AOS NOSSOS DIAS: ARTES E OFÍCIOS - X (portoarc.blogspot.com)

 

 

Instantâneos (98): à procura da Glória numa calçada

calçada da gloria 1.jpg

No início do século XX, a calçada da Glória, em Lisboa, era o mais radical desafio que colocava à prova os novíssimos automóveis que então chegavam ao mercado. Os representantes das marcas internacionais desdobravam-se em “aventuras” para mostrar as capacidades dos seus veículos e promover a aquisição por parte das camadas mais endinheiradas, mas quem se divertia era o povo, que acorria aos magotes, para ver as hesitantes viaturas treparem pela ladeira, evitando o movimento pendular dos elétricos, que já por lá andavam desde 1885.

rua barata salgueiro.jpg

Banalizada que estava a subida da rua Barata Salgueiro (na imagem), paragem original destes destemidos do automobilismo, a calçada da Glória passou a ser o grande objetivo.

A primeira marca a arriscar tal proeza terá sido americana Locomobile, representada entre nós pela F. Street & Cª.

 

´calçada da gloria.GIF

Estas carruagens sem cavalos estavam ainda na transição para o que seriam os modernos automóveis com motores de combustão interna e eram a vapor, com uma estrutura pequena e fácil de conduzir.

A interessante experiência, como lhe chamou uma revista, foi um sucesso.

O sr. Fish, ao volante, acompanhado por três pessoas, subiu a ingreme encosta em 110 segundos num Locomobile Dos-a-dos (na imagem, em passeio na Boca do Inferno).  

passeio pela boca do inferno.GIF

Correu tão bem a subida e a assustadora descida, que dias depois repetiu a façanha e passou a utilizar tal prova na sua publicidade, anunciando os Locomobile como os únicos com capacidade para superar a Calçada da Glória.

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É claro que não ficariam sozinhos por muito tempo, porque logo outras marcas tentaram ultrapassar tal teste, algo nada fácil naqueles tempos, diga-se, com as viaturas a escorregar mais do que a acelerar declive acima.

Não foi bem o caso de Tavares de Melo, com um Darracq por si adaptado com uma caixa de velocidades especialmente criada para ajudar a transpor a subida, ainda por cima com oito pessoas no interior, o que logrou conseguir em igual número de minutos.

Ainda assim a ascensão foi morosa e aos ziguezagues, evitando os elevadores e as irregularidades do pavimento. A descida foi marcada por duas paragens, uma delas “violenta”, não sabemos se acidental, se para provar “a eficácia dos potentes freios do veículo”, depois batizado “Zico pedal”.

rampa da corticeira.GIF

Seguiu-se a Sociedade Portuguesa de Automóveis. Com o seu De Dion Bouton modelo Populaire subiu calçada “sem o mínimo esforço”. Não contente, em outubro de 1905, após firmar o recorde Paris – Lisboa, com uma portentosa média de 34 quilómetros por hora, ainda subiu a antes temida encosta. Ao volante estava o intrépido Francisco Martinho.

No ano seguinte, foi a vez da equipa Estevão de Oliveira Fernandes e José da Silva Vacondeus, que, após prova do Km da Valada, avançou facilmente pela calçada aos comandos de um Züst.

No Porto também havia uma encosta igualmente desafiante. A rampa da Corticeira era até considerada inultrapassável, até que, em 1910, o representante da Ford – Albino Moura – com um Modelo T, percorreu os 300 metros com inclinação de 29 graus em apenas 32 segundos (na última imagem).

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Fontes

José Carlos Barros Rodrigues, A Implantação do Automóvel em Portugal (1895-1910), Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2012. pp128-131

Hemeroteca Digital de Lisboa

Tiro & Sport

15 mai. 1904

15 jun. 1904

31 out. 1905

Tiro Civil

01 mai. 1903

Illustração Portugueza

16 mai. 1910

 

Imagens

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Rua Barata Salgueiro - Paulo Guedes, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/PAG/000458

Calçada da Glória - Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000604

Calçada da Gloria com elevador - 1900+–+Calçada+da+Glória.jpg (1024×768) (slideplayer.com.br)

Hemeroteca Digital de Lisboa

Illustração Portugueza

Rampa da Corticeira

16 mai. 1910

Anúncio - Gazeta do Caminho-de-Ferro, 1903

Tiro Civi

Passeio pela Boca do Inferno

1 mai. 1903

 

O inigualável fascínio de Onofroff

celebra fascinador onofroff.GIF

 

Os portugueses renderam-se ao fascinador da moda, enchendo os seus espetáculos, hesitando entre o medo e a admiração por tão estranhos poderes para controlar as mentes alheias. O vocabulário “onofroffriano” encheu os jornais e até a política.

 

Noite após noite, em salas esgotadas, o público ficou boquiaberto, deslumbrado, agarrado a todos os movimentos daquele homem jovem e delicado. Presos ao seu olhar magnético e às suas manobras de hipnotismo, sonambulismo, magnetismo e transmissão de pensamentos, que arrancavam suspiros angustiados das plateias, onde até se verificaram desmaios. Foi assim, no inverno de 1894, quando passou por Portugal o mais aclamado fascinador daqueles tempos. Mas, se no nosso País, sem qualquer drama, se multiplicaram experiências paralelas, de desafio e até troça aos dons de Onofroff; em Espanha, chegou a haver confrontos físicos e a igreja conseguiu que as sessões fossem proibidas, obrigando o prestigiador a rumar à América Latina.

Real coliseu de lisboa.jpg

Não há como a bonomia portuguesa para estes assuntos. Por cá, o sucesso foi retumbante e pacífico. Enrique Onofroff, que havia firmado meia dúzia de atuações com a Companhia Alegria para se apresentar no Real Coliseu, da rua da Palma, viu o seu contrato sucessivamente renovado e só depois de mais de um mês a encher salas em Lisboa – ainda atuou no Coliseu dos Recreios, partilhando o palco com a sua mulher – é que rumou ao Porto, para novos triunfos.

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A estreia deu-se a 30 de janeiro, com grande expetativa suscitada pelas notícias dos jornais e pela fama que precedia o fascinador. Ninguém quis faltar e até a primeira sociedade lisboeta, nem sempre entusiasmada com estes divertimentos populares, fez questão de marcar presença neste “espetáculo curiosíssimo e de sensação”, ou não fosse a “mais extraordinária novidade da época”.

As opiniões dividiam-se sobre os “truques” preferidos, mas obviamente que as experiências de hipnotismo encantavam a assistência. Não há nada como ver um nosso semelhante fazer uma triste figura, imitando animais, tremendo de frio ou despindo-se devido ao calor, só porque um estranho lhe colocou as mãos nos ombros e, assim, tomou controlo da sua mente.

Foi enchente atrás de enchente. algo surpreendente, se tivermos em conta que o Real Coliseu dispunha de 3650 lugares mais 38 camarotes. Um sucesso de bilheteira nunca visto e que deu bom dinheiro a ganhar a Onofroff e aos empresários.

onofroff 1900.GIF

E, era tanto o público que procurava assistir, que roçava o ridículo ler sucessivos anúncios do “irrevogável” último espetáculo, que no dia seguinte eram desmentidos por mais uma apresentação.

E, houve muito quem quisesse “cavalgar a onda” dessa notoriedade. O ator J. R. Chaves, apregoando ser o único rival de Onofroff, mostrava-se com idêntico reportório no Teatro do Príncipe Real. No Circo da Ribeira Nova, eram os palhaços Tonino e Antonette que brilhavam com uma “paródia a Onofroff”, enquanto a revista Olaré Quem Brinca, com sessões no Teatro do Rato, criou um novo quadro intitulado “O Onofroff da política”, isto quando os jornais já usavam o vocabulário “onofroffiano” como metáfora para a realidade, dizendo que o governo tentava hipnotizar a oposição e outras pérolas semelhantes.

Por cá não há notícia da classe médica ou da Igreja terem perdido o sono com o célebre fascinador, que até convidava os clínicos a assistir. No país vizinho, por outro lado, chegou a haver cenas de pugilato, com os espetadores divididos entre crentes e céticos quanto aos talentos do homem em palco.

onofroff (2).jpg

O mais grave, no entanto, foi que o bispo de Madrid e a Sociedade Espanhola de Higiene não descansaram enquanto o seu “trabalho” não foi avaliado pela Academia de Medicina, que acabaria por decidir pelo cancelamento dos espetáculos, alegando riscos para o público participante em tais experiências e decretando que a hipnose deveria manter-se na esfera médica, pois era perigosa em mãos leigas.

Talvez por isso, Onofroff, que então tinha apenas 31 anos de idade e afirmava ter estudado medicina e psicologia, em Roma, rumou à América Latina, por lá permanecendo com grande êxito em vários países.

Se o público o seguia onde quer que fosse, também a polémica era inevitável, porque nem tudo foram rosas do outro lado do oceano. Em Santiago do Chile foi preso por fraude, tendo acontecido o mesmo em Lima, no Peru, quando um dos hipnotizados não regressou desse estado, por muito que Onofroff o tentasse recuperar.

 

À margem

Ao contrário de Stuart Cumberland, que se apresentava sobretudo em grupos restritos da alta sociedade, Onofroff trabalhava para o grande público, enchendo salas com grande facilidade. Acabaria por ser visto também por alguns nomes sonantes, como a rainha Vitória ou o conhecido escritor Oscar Wilde, quando passou por Londres, em 1890. Impressionou o poeta nicaraguense Rubén Dário, que o apoiou quando as autoridades científicas do País questionaram a veracidade da atuação de Onofroff, em 1895.

onofroff 1929.GIF

O fascinador teve uma carreira longa, praticamente até 1930. Assim, em 1920,  já no regresso à Europa, deslumbrou o jovem Salvador Dali, que o viu em Figueras, quando era ainda um adolescente.

O pintor espanhol, aliás, baseará muitas das suas bizarras obras num universo de sonho e onirismo que bem poderia ser inspirado num estado de hipnose ou confusão mental como aquele que o fascinador sugestionava nos seus públicos.

 

Mas isso é outra história…

 

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Para saber mais sobre esses fascinadores de outros tempos:

O homem que leu os pensamentos do rei…e de quem mais lhe pagou para isso - O sal da história (sapo.pt)

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Nota: tal como em 1894, o nome Onofroff ainda "vende". Assim, ao longo dos tempos, houve quem se aproveitasse desse facto. Pelo menos dois homens intitularam-se Onofroff, um nos anos 40 do século XX e e outro na atualidade. Ambos se dedicam à mesma atividade, mas não com o mesmo sucesso.

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

Diário Illustrado

30 jan. 1894 a 04 mar. 1894

19 mai 1894

 

Xaqueline Estévez Gil; David Simón Lorda; Jessica Otilia Pérez Triveño; María Victoria Rodríguez Noguera; Manuel Fernández de Aspe, Hipnotismo, Medicina y Psiquiatría en Galicia a Finales del Siglo XIX y Primeros Años del XX (del dr. Sánchez Freire al Ilusionista Hipnotizador Onofroff), in História interdisciplinar da loucura, psiquiatria e saúde mental VII (ed.  Ana Leonor Pereira, João Rui Pita),Coimbra, Sociedade de História Interdisciplinar da Saúde – Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra /Grupo de História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia, 2017. Disponível aqui: HILPSM VII NOVO (uc.pt)

 

Texto de Victor Ramés, em:

Fama y descrédito de Onofroff, el hipnotizador (Segunda Parte) - Diario Alfil (www-diarioalfil-com-ar.translate.goog)

 

Don Quixote: jornal illustrado de Angelo Agostini - Google Livros

 

 

Restos de Colecção: Real Colyseu e Paraizo de Lisboa (restosdecoleccao.blogspot.com)

 

Imagens

Diário Illustrado

03 mar. 1894

 

Onofroff Ilusionista hipnotizador Telepatia Artista Ca. 1900 Foto Assinada | eBay

ONOFROFF, EL HIPNOTIZADOR CON “OJOS TERRIBLES” (elsantiagoquenuncaaburria.blogspot.com)

Cartel teatro conservatorio manresa. 1929. fasc - Sold through Direct Sale - 44899425 (todocoleccion.net)

Arquivo Municipal de Lisboa

Eduardo Alexandre Cunha

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001109