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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

E o Tejo fez-se cemitério dos ares

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Duas vezes! Entre janeiro e fevereiro de 1943, por duas vezes, as águas do Tejo tingiram-se de sangue, o rio viu-se pejado de destroços e cadáveres. E, apesar de a Europa estar mergulhada em plena II Grande Guerra, o que trouxe a tragédia às portas de Lisboa foram dois inexplicáveis e brutais acidentes de avião que fizeram dezenas de mortos, mostrando à evidência que, apesar de as viagens por ar serem já corriqueiras, podiam acabar mesmo muito mal.

 

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A capital portuguesa era um entra e sai de estrangeiros aproveitando a neutralidade do País como plataforma rotativa da Europa para o resto do Mundo. Os aeroportos de Cabo Ruivo e Portela repartiam o movimento aéreo e, quatro anos após a estreia dos voos transatlânticos, aconteceu o primeiro grande desastre.

A 9 de janeiro de 1943, os jornais noticiavam a desgraça ocorrida nessa mesma manhã, quando um hidroavião comercial inglês se incendiou em pleno voo, precipitando-se de seguida, no rio, entre o Terreiro do Paço e Xabregas. Morreram 13 dos 15 ocupantes, quase todos curiosos que se propuseram apanhar boleia naquele voo experimental. Ileso, apenas um dos elementos da tripulação.

Tratava-se de testar o novo motor instalado no avião, o Golden Horn, da British Overseas Airways Corporation, que havia meses se encontrava no aeroporto marítimo de Cabo Ruivo devido a uma grave avaria.

As regras de segurança em vigor nesses tempos eram bem diferentes das que hoje conhecemos. Apesar de tal não ser legalmente permitido, era usual cidadãos aglomerarem-se junto à base aérea candidatando-se a participar em voos de curta duração, como este, até à “barra”. Nove dos mortos eram precisamente passageiros não formalmente autorizados.

Era 9h55 quando a aeronave descolou. Tudo correu de feição durante meia hora, mas, já no regresso, começaram a sair labaredas de um dos motores. O tenebroso espetáculo lançou o alarme entre quem assistiu, uma vez que o aparelho voava a baixa altitude.

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Frustrando as tentativas do capitão Lock, para amarar, acabaria por mergulhar no Tejo, por entre explosões subaquáticas que faziam elevar-se colunas de água. À superfície viam-se então destroços e corpos inanimados a boiar.

 

Em pouco tempo tinham acorrido ao local rebocadores e outras embarcações, mercantes e de pesca, bem como viaturas dos bombeiros aos quais pouco restou para além de transportar mortos e feridos ao Hospital de S. José, enquanto, em terra, se iam juntando cada vez mais pessoas, na ânsia de perceber o que se tinha passado. Salvaram-se apenas os dois radiotelegrafistas, um dos quais com ferimentos.

Os dias seguintes foram passados em busca do avião submerso, dos destroços e dos restantes cadáveres de portugueses e ingleses, que foram aparecendo junto às margens, num cenário desolador e tétrico.

No mês seguinte, o pesadelo voltou, ainda mais trágico e mortal.

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Foi ao final da tarde de 22 de fevereiro, dia carrancudo, fechado, anormalmente abafado, de trovoada.

Ao dar a segunda volta para amarar, quando aparentemente tudo decorria normalmente, um hidroavião da Pan American World Airways inclinou-se perigosamente para a direita e roçou com a uma das asas na água.

Selou-se, assim, o triste fim desse Yankee Clipper - Boeing 314 A. O mesmo que, em 1939, tão valorosamente, tinha empreendido o voo transatlântico inaugural.

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O brutal embate no Tejo, na zona da cala de Alcochete, a escassos 800 metros do aeroporto, provocou um enorme cachão visto pelos olhos estupefactos dos tripulantes das embarcações próximas, nomeadamente as duas lanchas, da Pan American Airways e da British Overseas Airways Corporation, que era suposto coadjuvar a descida do hidroavião.

Seriam, ao invés, as primeiros a prestar socorro aos passageiros vivos que surgiram à tona. Dezasseis feridos foram transportados ao Hospital de São José.

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Só que o enorme navio voador tinha vindo dos Estados Unidos da América com lotação completa, transportando 39 pessoas.

Antecipou-se o pior para aquelas que não foram imediatamente resgatadas e as previsões estavam corretas.

O Tejo voltou tristemente a apresentar-se pejado de destroços, objetos aleatórios e muita correspondência destinada a vários pontos da Europa.

Começou-se o desmantelamento do aparelho e o resgate dos seus componentes enterrados no leito do rio, mas cinco dias depois ainda não tinham sido recuperados 18 dos malogrados ocupantes.

Um dos corpos foi encontrado em Paço de Arcos, vários quilómetros a jusante e, ao todo, morreram 24 pessoas.

Estes não seriam, no entanto, os únicos acidentes mortais associados ao desaparecido Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo.

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À Margem

O trágico voo de 22 de fevereiro foi muito noticiado também porque transportava um grupo de conhecidas artistas norte-americanas. Uma delas, Ivet Elsa Harnie Silver, e o primeiro secretário da embaixada dos Estados Unidos da América, William Walton Butterworth, foram os únicos a escapar sem ferimentos, conseguindo nadar até Alcochete, não sem que, antes, a atriz tivesse de se desenvencilhar do seu pesado casaco de peles. Jane Froman, também atriz e cantora, ficou gravemente ferida, mas sobreviveu. Carregaria para o resto da vida as marcas do acidente: as lesões físicas nas pernas e o peso de, à última hora, ter trocado de lugar com outra artista da Broadway - Tamara Drasin - que morreu no desastre.

Mas, nesse já duplamente trágico ano de 1943*, a 28 de julho, outro navio voador da British Overseas Airways Corporation, que havia descolado de Cabo Ruivo, despenhou-se antes de aterrar, na Irlanda, matando dez dos 25 ocupantes.

Em 15 de novembro de 1957, um Hidroavião da Aquila Airways com destino a Lisboa caiu ainda em solo britânico, causando 45 mortes.

O ano seguinte voltou a ser negro para a aviação em Portugal. A 9 de novembro, um Martin-Mariner da lusa ARTOP, que fazia ligações regulares entre Lisboa e o Funchal, partiu de Cabo Ruivo às 12h23. Cerca de uma hora depois envia uma mensagem de emergência anunciando a necessidade imediata de amarar. Foi a última vez que houve notícias da aeronave.

Apesar de aviões e navios civis e militares, terem, durante uma semana, analisado minuciosamente uma vasta área de oceano onde se presumia que tivesse tentado descer, nunca foi encontrado qualquer vestígio do aparelho e das 36 pessoas que transportava.

Mas isso é outra história…

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*Nesse fatídico mês de junho de 1943, caiu outro avião proveniente de Lisboa, desta vez do aeroporto da Portela.  Foi abatido por fogo alemão sobre o golfo da Biscaia. Curiosamente, neste também seguiam artistas, caso de Leslie Howard, ator e cineasta inglês, que na altura tinha sido nomeado embaixador cultural britânico para a Península Ibérica. O seu estatuto tornava-o prioritário para viajar, pelo que outros passageiros tiveram de abandonar o avião, para que ele pudesse voar…para a morte, com outras 16 pessoas.

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Já aqui antes tinha falado de quando Lisboa tinha dois aeroportos.

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Fontes

Cc | Diário de Lisboa | 1921-1990 (casacomum.org)

Diário de Lisboa

09 jan. 1943

10 jan. 1943

23 fev. 1943

24 fev. 1943

25 fev. 1943

26 fev. 1943

27 fev. 1943

 

Aviation Safety Network > (aviation-safety.net)

 

Relatório da Comissão de Inquérito às causas do acidente do hidroavião CS-THB, ocorrido em 9/novembro/1958.

19581109-0_PBM5_CS-THB.pdf (aviation-safety.net)

 

Leslie Howard – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Jane Froman - Wikipedia

Tamara Drasin - Wikipedia

 

Imagens

Aviation Safety Network > (aviation-safety.net)

Naval History and Heritage Command

Harris & Ewing

 

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Doca - Artur João Goulardt, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/AJG/002993

 

Abril de 1943 - Bic Laranja (sapo.pt)

Imagens de filme do arquivo norte-americano montados por Spielberg. O que se passava no Tejo em Abril de 1943.

Chamas sobre o rio (sapo.pt)

A morte voltou a 23 de Fevereiro (sapo.pt)

 

Napoleão, conquistador de palcos e tabuleiros

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Tem nome de rei lendário e de imperador, ambos grandes líderes e estrategas militares, mas não foi pela força das armas que conquistou fama. Artur Napoleão afirmou-se, desde criança, pela mestria nas teclas e pela inteligência que o fez vencer algumas batalhas bem dramáticas, no tabuleiro.

Quem o vê, assim, pequeno, infantil, feminino até, e inocente, olhando candidamente para nós, não calcula o génio desta criança. Os pés de Artur Napoleão* não chegavam sequer ao chão, mas, aos sete anos deu o seu primeiro recital de piano e pasmou toda a gente com a mestria com que dominava as teclas.

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A partir daqui, o prodígio nascido no Porto em 1843, não mais parou. Tocou por toda a Europa e foi recebido com os maiores elogios. O mesmo nas “Américas”, do Norte e do Sul. Foi, aliás, no Brasil, onde se apresentou pela primeira vez aos 14 anos, que acabaria fixar-se mais tarde.

Teve uma vida de colunável, como hoje se diria, já que era assiduamente mencionado nos jornais e requisitado para os salões de alta sociedade.

Viajou muito, por vezes com estadias demoradas em meios culturalmente muito férteis como Paris, Londres ou Nova Iorque, onde assistiu a todos os espetáculos da moda – do teatro, à música e ao desporto.

Conviveu, tocou e foi gabado pelos nomes sonantes da época, como Berlioz ou Liszt, e isto sem ter frequentado qualquer conservatório, já que aprendeu informalmente com o pai e com alguns dos maiores mestres do seu tempo.

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Tocou ainda para as mais importantes casas reais europeias, que queriam ver a criança extraordinária a quem o pai também não se coibia de “roubar” um ano ou dois sempre que podia, para acentuar a singularidade do talento do filho, não escapando às críticas que o apontavam como explorador dos dotes do pequeno Artur.

Mas, o músico conseguiu fazer uma transição suave e elegante entre o menino-prodígio e o jovem dândi, “pianista virtuose” e, depois, o homem célebre e influente, sem se perder inebriado com o próprio sucesso, como tantas vezes acontece quando a ribalta chega tão cedo.

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Aos 25 anos, escolheria viver no Brasil, tornando-se o mais importante comerciante de partituras e instrumentos musicais daquele País, dando a conhecer muitos artistas brasileiros que se tornariam notáveis, sendo também por isso nomeado patrono da Academia Brasileira de Música.

Não só vendia e ensinava peças de sua autoria, como continuou a compor e a atuar com enorme êxito, por todo o mundo, mantendo-se na mais alta roda onde quer que estivesse, até ao final da vida, em 1925.

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Mas, o seu nome ficaria também ligado a outra atividade: é apontado como o introdutor do xadrez no “País irmão” e o dinamizador da primeira partida à distância, entre uma equipa brasileira e outra argentina, fazendo uso do telégrafo para comunicar as jogadas.

Isto deu o pontapé de saída para muitos outros desafios, tornando este jogo de tabuleiro uma atividade muito popular por aquelas paragens, pelo menos entre uma certa elite intelectual a que pertencia.

Artur Napoleão era, sem dúvida, um talento nas teclas e no tabuleiro, com uma carreira longa e triunfante.

Ao que consta, a única pateada de que foi alvo ocorreu precisamente na sua terra natal, onde tem honras de nome de rua – como, aliás, em outras cidades portuguesas.

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Foi em 1858. O teatro encheu-se com portuenses indignados e enraivecidos por os programas do concerto estarem escritos em francês. Uma afronta imperdoável!

 Os violentos apupos só terminaram quando o jovem, desesperado com o barulho e a exaltação dos seus conterrâneos, se deitou no banco com as mãos na cabeça. O recital pôde então continuar, mas o pai do artista teve de se escapar de forma discreta, temendo pela própria integridade física. O susto, no entanto, valeu-lhe uma choruda receita, já que o espetáculo esgotou.

Faria as pazes com a Invicta em 1865, quando foi convidado para dirigir parte da festa de inauguração do Palácio de Cristal e participou em diversas iniciativas durante a Exposição Internacional do Porto, que ali teve lugar.

 

À margem

No Rio de Janeiro, Artur Napoleão encontraria duas pessoas com grande relevância na sua vida: Lívia Avelar, a jovem com quem casaria apesar da oposição do futuro sogro, e o conhecido escritor Machado de Assis, que, por sua vez, desposaria a portuense Carolina Novaes, que Artur, íntimo da família, havia sido incumbido de acompanhar na viagem para o Brasil, e que escolheu o pianista para padrinho do enlace.

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Para além da arte, os amigos Assis e Napoleão, duas das mais importantes figuras da cena cultural da cidade, partilhavam a paixão pelo xadrez, participaram em inúmeros torneios e contribuíram decisivamente para a divulgação da modalidade.

Bem informado e culto como era, talvez Artur soubesse do entusiasmo que outro Napoleão sentia por este jogo de tabuleiro. E, muito provavelmente, também teria ouvido falar d’O Turco, apresentado como um autómato – sim, um robô inteligente em pleno século XIX! - capaz de jogar xadrez com um humano.

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Durante 84 anos, andou de exibição em exibição e convenceu meio mundo, inclusive o próprio Napoleão Bonaparte, que jogou contra esta máquina - até ao dia em que se soube ser um embuste, pois escondia no interior um jogador de carne e osso encarregue de manipular as peças.

Mas isso é outra história…

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*O nome completo é Artur Napoleão dos Santos, mas foi sempre apenas pelos dois primeiros que foi conhecido na sua intensa vida profissional e artística.

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Já aqui antes falei de outra criança-prodígio portuguesa ao piano

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Fontes

Alexandre Raicevich de Medeiros, Uma memória ímpar: a trajetória de Artur Napoleão na sociabilidade musical dos dois continentes (1843-1925), tese para obtenção do título de doutor ao programa de pós-graduação em História da Universidade do Rio de Janeiro – História Política, Rio de Janeiro, 2013.

Disponível aqui: BDTD: Uma memória ímpar: a trajetória de Arthur Napoleão na sociabilidade musical de dois continentes (1843-1925) (uerj.br)

 

Fernando Manuel de Menezes Falcão Martinho, Arthur Napoleão: o homem e a sua época em Portugal e no Brasil, dissertação para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre no ensino da música, Universidade de Aveiro, 2015.

Disponível aqui: Arthur Napoleão.pdf (ua.pt)

 

Academia Brasileira de Música

Acadêmicos – ABM (abmusica.org.br)

Napoleão Bonaparte e o xadrez - Mearas Escola de Xadrez

Arthur Napoleão – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Abertura Napoleão – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

O Turco – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Machado de Assis - Wikiwand

Hemeroteca Digital - A arte musical : revista publicada quinzenalmente (cm-lisboa.pt)

Arthur Napoleão.pdf (ua.pt)

Linha do Tempo: Ernesto Nazareth – Vitrola dos Sousa

 

Imagens

Arquivo Municipal do Porto

Gisa (cm-porto.pt)

Cota: F-NV/FG-M/7/55

Foto Guedes*

*A partir da tela a óleo pintada por Miguel de Novaes (acervo da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.

 

Arquivo Público do Estado do Maranhão

Arthur Napoleão · APEM - Acervo Digital (cultura.ma.gov.br)

Daniel Lemos Cerqueira

 

Wikimedia Commons

File:Artur Napoleão (Maio 1889) - Emilio Biel e C.ª (Museu Bordalo Pinheiro).png - Wikimedia Commons

A partir de original de Emil Biel com dedicatória de Artur Napoleão a Rafael Bordalo Pinheiro pertencente ao acervo do Museu Bordalo Pinheiro (Lisboa)

Alexandre Raicevich de Medeiros, Uma memória ímpar: a trajetória de Artur Napoleão na sociabilidade musical dos dois continentes (1843-1925), tese para obtenção do título de doutor ao programa de pós-graduação em História da Universidade do Rio de Janeiro – História Política, Rio de Janeiro, 2013.

Disponível aqui: BDTD: Uma memória ímpar: a trajetória de Arthur Napoleão na sociabilidade musical de dois continentes (1843-1925) (uerj.br)

Arquivo Nacional, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=73410629

 

 

 

 

Instantâneos (99): a ilha dos galegos

 

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Uma corda, um pau e um chinguiço* era tudo o que os galegos precisavam para levar meia Lisboa aos ombros, de um lado para o outro. A comunidade era conhecida ao longe pelos imprescindíveis apetrechos, o boné e a chapa de identificação que o município, a dada altura, os obrigou a envergar. E eram tão numerosos e requisitados, que chegaram a ter uma ilha própria.

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Andavam por todo o lado, mas era ali, em pleno Chiado, no centro do então denominado largo da Duas Igrejas - por se situar entre os templos do Loreto e de Nossa Senhora da Encarnação - que um numeroso grupo de galegos escolheu assentar arraiais. Aquela “bolacha” de calçada passou a ser o local por excelência para quem precisava dos seus préstimos para um qualquer frete.

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Assumiam mudanças de toda a espécie – eram exímios no transporte em padiola de peças de mobília, independentemente da dimensão e peso – o carrego de compras, fardos e caixas de mercadoria para os estabelecimentos comerciais, recados e…cartas de amor.

 

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Quantos bilhetes apaixonados não terão as suas mãos calejadas entregue às escondidas, contrariando olhares curiosos da mãe ciosa ou da vizinha bisbilhoteira? Quem diz de amor, diz de lascívia, ajudando a ludibriar os cônjuges desprevenidos…

Os galegos, participavam também no esforço de combate a incêndios, acorrendo e colaborando com os bombeiros, puxando as bombas ou os carros de escadas, sempre que para tal eram chamados, através de uma espécie de campainha que existia numa esquina próxima.

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E tinham a serventia de substituir o envergonhado proprietário na avaliação de um qualquer objeto que, em hora de aperto, se pretendia pôr “no prego” sem dar nas vistas. Consta até que eram bons a regatear o melhor preço, mais que não fosse, porque disso dependia a generosidade do seu pagamento.

Eram ainda e de forma muito expressiva os aguadeiros de serviço. Devidamente identificados e nas bicas previamente atribuídas dos chafarizes da cidade, enchiam os seus barris, que depois carregavam Lisboa adentro, apregoando o precioso líquido quando ainda teimava em só correr nas casas mais abastadas.

Aos poucos foram desaparecendo, substituídos por empresas especializadas ou promovidos a outras atividades mais lucrativas, como o comércio, onde provaram ter igual tino e obstinação.

 

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*O chinguiço era uma pequena almofada em forma de meia-lua que colocavam no pescoço para atenuar a dor e o desconforto de arrastar grandes pesos.

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Fontes

Mário Costa, O Chiado Pitoresco e elegante, Lisboa, Município de Lisboa, 1965.

Museu de Lisboa

Vinham da Galiza e faziam fretes aos lisboetas (timeout.pt)

Texto de Eurico de Barros

Hemeroteca Digital de Lisboa

Illustração Portugueza, 21 set. 1908.

 

Imagens

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000243

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000093

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000807

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000809

José Artur Leitão Bárcia

PT/AMLSB/POR/053293

 

 

 

Ninguém quer os ossos do Visconde

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Há pelo menos 20 anos que se sabe onde está o túmulo de António Caetano de Figueiredo. Só não foi já vendido e as ossadas de tão ilustre alcacerense colocadas numa qualquer vala comum, porque ainda não apareceu quem desse o valor pedido.

Quando morreu, nesse setembro de 1883, António Caetano de Figueiredo, 1º e único Visconde de Alcácer do Sal, era uma das pessoas mais respeitadas e abastadas deste concelho alentejano. Os seus restos mortais ficaram depositados no Cemitério de Nossa Senhora da Piedade, em Setúbal, onde se lhe juntaram a mulher e um irmão desta. Mais de um século depois, negociou-se a trasladação do túmulo para a terra natal, mas nada aconteceu. Aquele que chegou a ser o homem mais importante de Alcácer do Sal, reconhecido como benemérito até hoje, só não foi parar a uma vala comum, porque ainda não apareceu alguém interessado em adquirir o sepulcro.

Como não tinha filhos, o Visconde distribuiu herdades e outros bens por sobrinhos e afilhados, mas feitas que foram as partilhas, caiu no esquecimento.

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Em fevereiro de 2000, a Câmara de Setúbal faz publicar na imprensa anúncio onde comunica que, de acordo com o regulamento municipal em vigor, 24 jazigos abandonados prescreviam a favor daquele município.

Entre estes, estava o nº 73 do Cemitério de Nossa Senhora da Piedade, concessionado aos Viscondes de Alcácer do Sal e com último movimento registado em 1897.

O alerta chega a Alcácer. Logo, alguns responsáveis municipais na área da cultura e património encaram com interesse trazer para “casa” os ossos de tão ilustre homem, antigo presidente da câmara, provedor da Santa Casa da Misericórdia e fundador da mais antiga filarmónica do concelho, que conserva o seu nome.

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O então edil alcacerense comunica a pretensão ao seu congénere setubalense, pedindo apenas tempo para acertar pormenores. Do outro lado, recebe total disponibilidade para que o Visconde possa ser trasladado, oferecendo-se até o jazigo, degradado e sem grande valor arquitetónico, mas todo em pedra de lioz.

Realizam-se reuniões e deslocações a Setúbal. Estuda-se o local onde implantar o sepulcro de António Caetano de Figueiredo: no cemitério local ou num arruamento público.

Propôs-se a abertura de consulta a três agências funerárias, às quais competiria o transporte dos féretros, e a canteiros, encarregues de desmontar, laje a laje, o jazigo, coordenar o transporte, limpar, restaurar e remontar tudo já na outra cidade do Sado.

Falou-se até na possibilidade de abrir inquérito público para que fosse o povo de Alcácer a escolher onde repousaria o “seu” Visconde.

Adiantavam-se três possíveis localizações: o largo em frente à casa onde morou e que foi batizado em sua homenagem; a zona fronteira à coletividade que fundou ou na placa relvada do largo 25 de abril, uma das principais entradas em Alcácer, junto à ponte metálica sobre o rio.

Em novembro de 2001, o município setubalense informa ter aprovado, em abril desse mesmo ano, a tão falada trasladação dos restos mortais da família dos viscondes de Alcácer e a cedência de todas as peças arquitetónicas passíveis de recuperação do respetivo jazigo. Obviamente, todos custos deveriam ser suportados pelo congénere alcacerense.

No processo, só volta a haver informação sobre o tema em 2003, aludindo-se a uma reunião que não sabemos se se terá realizado, porque, depois dessa data, há um total silêncio. De um lado e do outro, de resto, alteraram-se os interlocutores e parece ter-se perdido a memória sobre o assunto.

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Face à indecisão, sabe-se que o jazigo já foi, em conjunto com outros, a hasta pública, não tendo surgido alguém interessado em adquiri-lo pelo valor proposto – mínimo de 15 a 25 mil euros - o que implicaria a alienação e consequente passagem das ossadas para uma zona subterrânea ou para área comum do cemitério: ilustres em vida e misturados com outros indigentes, na morte, sempre niveladora.

Para já, o Visconde de Alcácer, a sua mulher, Maria Paula Leite de Figueiredo e o irmão desta, Francisco Paula Leite (júnior), que também foi presidente da Câmara Municipal de Alcácer e figura proeminente na terra, continuam lá, à espera que alguém lhes queira dar uma última morada. Mas, até quando?

 

À margem

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O visconde de Alcácer do Sal morreu em Setúbal, no faustoso solar de sua propriedade situado na rua da Praia, atual avenida Luísa Todi. No edifício (na imagem), onde hoje está instalado o Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, não há, que se saiba, qualquer menção a esta origem. António Caetano de Figueiredo tinha rumado àquela cidade procurando cura para os males de que padecia havia muito, mas nem os ares da serra, nem os banhos no Sado, o livraram do cancro que o vitimou em 6 de setembro de 1883, cerca de um mês antes de se cumprirem 74 anos sobre o dia em que havia nascido, na freguesia de Nossa Senhora do Monte (Vale de Guizo).

Maria Paula Leite de Figueiredo, morreu de ascite*, sete anos depois do marido. Filha de Francisco de Paula Leite, coronel das milícias locais, também presidente de câmara e filho de Dâmaso Xavier dos Santos, conhecido e importante lavrador e político liberal do Cartaxo.

No jazigo repousa também o cunhado do Visconde, Francisco de Paula Leite (júnior), filho do anteriormente referido e igualmente edil em Alcácer. Morreu de congestão pulmonar, em 1897.

Fica por explicar a identidade do grupo de pessoas que, segundo o velho guarda do cemitério, anualmente, durante décadas, visitava o sepulcro, depositando flores.

A este não teria, certamente, passado despercebido se fosse uma banda de música a tocar marcha fúnebre, como desejou para a eternidade o alcacerense Manuel Augusto de Matos, tendo até deixado herança para que se cumprisse tal homenagem ao homem que tanto tinha feito pela terra. De pouco lhe valeu a preocupação.

Mas isso é outra história…

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*A ascite ou 'barriga d'água' é a acumulação "anormal de líquido rico em proteínas no interior do abdómen, no espaço entre os tecidos que revestem o abdómen e os órgãos abdominais. A ascite não é considerada uma doença mas sim um fenómeno que está presente em várias doenças, sendo a mais comum a cirrose hepática".

Fontes

Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/12/06A/02/002

 

Arquivo Municipal de Setúbal

Cemitério de Nossa Senhora da Piedade

Registo de inumações

 

Arquivo Distrital de Setúbal

Registos Paroquiais

Setúbal – Santa Maria da Graça

Informação recolhida junto do Sector de Cemitérios do Município de Setúbal

 

Bandas Filarmónicas (bandasfilarmonicas.com)

 

António Cunha Bento; Inês Gato Pinho, Maria João Pereira Coutinho, Património Arquitetónico (coordenação técnica), César Mexia de Almeida (investigação e texto) Civil de Setúbal e Azeitão, Setúbal, Estuário História, Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2019.

 

Ascite: o que é, sintomas, causas e tratamento - Tua Saúde (tuasaude.com)

Revisão médica: Dr.ª Clarisse Bezerra, Médica de Saúde Familiar, setembro 2022

 

Imagens

Cristiana Vargas

 

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0409

A partir de Arquivo Pessoal de Fernando Gomes. Recolha efetuada no âmbito do projeto Notícias e fotografias de Alcácer do Sal - séculos XIX e XX, 2016

 

Edificio MAEDS - Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Museu de Arqueologia e Etnografia de Setúbal - 2022 | Dicas incríveis! (dicasdelisboa.com.br)