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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A fragata que teve muitas vidas…e um morte dolorosa

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Transportou carga preciosa e correu mundo, mas a maior parte da sua longa existência foi amarrada a terra, no Tejo. Foi prisão, escola e orfanato, até que desapareceu por entre labaredas. Para renascer, décadas depois, qual fénix testemunha de tempos que já não voltam.

Quando, naquele dia de 1878, na sua derradeira missão de mar, a D. Fernando II e Glória resgatou das chamas a tripulação do Laurence Boston, dificilmente se poderia prever que, menos de um século depois, chegaria a vez da própria fragata portuguesa ser tragada pelo fogo, praticamente nada restando da sua imponência ou sequer da sua existência. Muito menos se poderia imaginar que, após três décadas de abandono, pudesse renascer das cinzas.

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Então com 33 anos de atividade – havia sido construída em Damão e viajou para Lisboa em 1845 – aquela que foi a última fragata exclusivamente à vela da Marinha Portuguesa estava desatualizada. A viagem de instrução, à Madeira e aos Açores, estava destinada a ser a última.

E seria uma incursão sem história, não fosse, já no regresso, se ter deparado com o inusitado e trágico cenário da barca Laurence Boston. Em águas abertas, mas ainda próximo do arquipélago açoriano, um violento incêndio não dava tréguas.

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Em dois escaleres, os 12 tripulantes rumavam já ao desconhecido, em busca de socorro.

Foram içados para bordo, com os poucos pertences que conseguiram transportar.

Dali, todos puderam ver a impossibilidade de controlar o incêndio e de salvar o que havia ficado para trás.

Resignando-se a essa evidência, mas preocupado com as consequências de um casco assim, à deriva, o comandante Vasconcelos e Carvalho decidiu que o mais acertado era afundar a barca norte-americana.

Uma salva de nove tiros disparados pela D. Fernando II e Glória, selou o episódio e também a vida de navegação da fragata.

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De então em diante, aquela que foi a última “nau” da Carreira da Índia, viajante com o equivalente a cinco voltas ao mundo no currículo, quedar-se-ia no Tejo e seria alvo de numerosas afrontas.

Tal como o lendário Thermopylae, que veio morrer a Portugal, a fragata foi navio-depósito, viu as suas linhas e aprestos totalmente adulterados, toscamente acrescentados ou dilacerados. E foi escola de artilharia, prisão para crimes políticos, espaço de correção e ensino para rapazes órfãos.

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Até que, num funesto dia de 1963, ardeu irremediavelmente.

Não restou praticamente nada.

A bandeira nacional foi retirada antes de se converter em cinzas, mas a emblemática embarcação havia desaparecido perante os olhares impotentes dos que assistiam e apesar das tentativas para conter as labaredas e a salvar da ruína.

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A figura de proa, um D. Fernando II branco, quase etéreo, seria levada pouco depois, chamuscada, ofendida, símbolo da própria desolação que se manteria trinta anos!

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Durante esse período de tristíssima memória – em que esteve para ser vendida e as diversas ideias para a sua recuperação, foram sendo adiadas ou rejeitadas - a  imagem decrépita, escaveirada, retorcida, trôpega e deprimente da D. Fernando II e Glória assombrou o Mar da Palha.

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A salvação só chegaria a partir de 1990, com uma reconstrução total – apenas uma ou outra tábua do casco original e um pequeno retábulo integram a fragata atual – e o ansiado (re)lançamento à àgua, sete anos depois.

Aquele que é um dos mais antigos navios do mundo, apresenta-se hoje como museu vivo e ativo, que conta ao pormenor histórias de outras épocas. Tempos em que ali chegavam a viajar mais de 600 pessoas - tripulação, militares, colonos e degredados, que se acomodavam como podiam entre a carga variada, por vezes sem pôr o pé em terra meses a fio.

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À margem

Lenços de seda, atoalhados de Diu, café, velas de cera, cairo em rama e cabo, pimenta, sementes, e ainda uma coleção zoológica para o rei, um jacaré, um papagaio encarnado para o Ministro da Marinha e uma lata com drogas para o Presidente do Conselho de Saúde Naval. Estes foram alguns dos produtos exóticos transportados na viagem inaugural da D. Fernando II e Glória.

Mas, em 1852, foi incumbida da especialíssima tarefa de conduzir ao Funchal a viúva de D. Pedro IV, antiga imperatriz do Brasil, e a sua filha, a princesa Maria Amélia, bela, jovem e gravemente doente com tuberculose, que, aliás, morreria na ilha da Madeira.

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Um século depois da primeira viagem, a partir de 1945, já fundeada no Tejo, eram órfãos bem menos ilustres aqueles que ali encontravam porto de abrigo. A denominada Obra Social da Fragata D. Fernando II e Glória acolhia crianças e jovens pobres que viviam a bordo.

Recebiam instrução náutica, para poderem ser úteis como marinheiros ou pescadores, nomeadamente na frota nacional de bacalhoeiros, mas os menos aptos para a marinhagem podiam ter o primeiro contacto com os ofícios de carpinteiro ou sapateiro. Aprendiam também as primeiras letras e números, havendo mesmo uma área transformada em sala de aula, com carteiras e quadro.

O local mais temido, era o chamado “porão dos ratos”, armazém de cabos, roldanas e outros aprestos, mas também recinto onde eram cumpridos os castigos, destinados a vergar os mais rebeldes e insubordinados.

Enquanto se limpavam as ruas destes garotos sem eira nem beira, livrando-os dos perigos morais a que a ociosidade e a libertinagem amiúde conduzem, inculcavam-se os valores do Estado Novo. Não era à toa, portanto, que a Obra Social dependia da Legião Portuguesa, a milícia criada para “defender o património espiritual da Nação e combater a ameaça comunista e o anarquismo”.

Mas isso é outra história…

 

Fontes

Visita Guiada e dramatizada à fragata D. Fernando e Glória – Marinha Portuguesa; COOLture Tours

Visita com o marinheiro Sardinha (marinha.pt)

Revista da Armada (marinha.pt)

Revista da Armada nº203, 09-10.1988

Texto de M. do Vale c/alm.

Revista da Armada nº19, 04.1973

O Navio (marinha.pt)

Comissão Cultural de Marinha

Comissão Cultural de Marinha

Américo Vidigal Alves, A Obra Social da Fragata D. Fernando II e Glória - Assistência, Educação e Trabalho no Estado Novo; Lisboa, Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras e Escola Naval.

Legião Portuguesa (Estado Novo) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Imagens

Bem-vindo - Marinha Portuguesa - Archeevo

Fragata D. Fernando e Glória

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Fragata D. Fernando e Glória com o seu primitivo aparelho

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Armada e pano carregado

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Desarmada e com cestos da gávea

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Fragata D. Fernando e Glória a arder

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Combate ao incêndio

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Após o incêndio

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A figura de proa – imagem publicada no Diário de Notícias de 05.04.1963

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Alunos trabalhando com cabos, a bordo. (fonte: recorte da revista In Frein Studen [s.l., s.n., s.d] in Noticiário 23), obtida em Américo Vidigal Alves, A Obra Social da Fragata D. Fernando II e Glória - Assistência, Educação e Trabalho no Estado Novo; Lisboa, Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras e Escola Naval.

Fragata atualmente, em Cacilhas

Fragata D. Fernando II e Glória | CM Almada (cm-almada.pt)

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E é já uma mão cheia! Osaldahistoria completa cinco anos e eu nem acredito, porque me recordo bem de toda a hesitação, o receio, os ensaios, a pesquisa, a luta com as questões informáticas, que não domino. Lembro-me bem dos primeiros tempos em que escrevia só para mim, porque tinha uma certa vergonha de divulgar, de não agradar, de errar.

Mantenho esses receios. A cada post, pergunto-me se investiguei tudo o que havia a investigar, se o português está correto, se me escapou alguma coisa, se está muito longo, ou muito curto…

Conservo também o encanto pela descoberta de novos temas, o alvoroço quando encontro uma informação há muito procurada, o espanto pelas histórias que a história tem, mais ardilosas e emocionantes do que muitos filmes.

Comovo-me com algumas personagens que vou “desenterrando”, indigno-me com as injustiças com que me deparo, rejubilo com as conquistas…como se estivessem a acontecer hoje, perante os meus olhos.

E alimento-me da vontade de aprender. Sempre.

Agradeço ao público sempre crescente que me acompanha nesta jornada. Agradeço os silenciosos, os opinativos, os que questionam e me obrigam a saber mais, os interessados. Os de sempre e os novos, muitos, felizmente.

Muito obrigada!

 

Instantâneos (100): nada se perde, tudo apodrece

 

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Felizes. Triunfantes. Dir-se-ia que acabaram fisgar um belo peixe e vão chegar eufóricos a casa, mostrando à mãe o que levam para o jantar. Estes rapazes parecem respirar a costumeira despreocupação da juventude, temperada com uma pitada de rebeldia e uma boa dose de atrevimento na forma como olham para a câmara. Mas, este instantâneo com um século esconde uma realidade bem menos sorridente e, se as fotografias tivessem a capacidade de exalar o odor do local onde foram captadas, já teríamos, certamente, fugido todos a correr ou, pelo menos, sucumbido às náuseas que, sem dúvida, nos assaltariam.

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Por isso, olhe de novo, veja o aspeto macilento do peixe. Perceba que tudo em volta é podridão e fedor. Estamos numa das fábricas de guano de Lisboa, o local mais insalubre da cidade, o espaço mais repulsivo, o antro da repugnância.

 

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Não há, no entanto, lugar para nojos, porque é também lugar de trabalho, onde indivíduos se afadigam espalhando o peixe putrefacto que ali chega diariamente, acomodando-o para que se decomponha ainda mais, até que não reste nada a não ser uma substância muito útil, mas extremamente desagradável até chegar a esse nível de apuro e transformação.

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O pescado é uma das principais matérias-primas usadas nesta unidade, mas também ali chegam batatas e produtos hortícolas em fim de vida - noção que, no início do século XX, seria bem diferente da que hoje impera – e outros despojos bem mais macabros, como cães e cavalos mortos, vísceras descartadas no matadouro e tudo o mais que se entenda ter fácil deterioração.

A Câmara de Lisboa – como outras – chegava a concessionar a recolha de animais para este fim, ajudando a “engordar” o adubo orgânico, enquanto limpava a rua de rafeiros indesejáveis.

Enfim, outros tempos bem mais agrestes, para homens e animais.

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Tempos em que, como bem se pode ver, não existiam preocupações com a saúde de quem labutava nestas fábricas, ou dos que habitavam nas imediações e frequentemente se queixavam do cheiro e das moscas que conspurcavam tudo em volta.

O conceito presente numa fábrica de guano, esse, é intemporal e usado pelo homem desde que há memória.

Continua a ser atual e proveitoso, também como forma de retirar matéria orgânica dos aterros e transformá-la em algo útil. Trata-se, afinal, de fazer compostagem, reciclando o lixo orgânico que rejeitamos diariamente.

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Num País com uma tão vasta costa e forte tradição pesqueira, como é fácil de imaginar, proliferaram unidades um pouco por todo o território, sem lei, nem ordem, e em especial nas localidades com indústria conserveira – Olhão, Peniche, Setúbal, Sesimbra, Nazaré, Trafaria e Lisboa (Alcântara) são alguns exemplos.

Com o aperto das normas, a maior parte fechou e outras adaptaram-se, chegando aos nossos dias.

…………………..

O lixo é repugnante, mas já qui antes falei de pessoas que enriqueceram a partir do lixo:

O “rei” que transformou lixo em dinheiro e poder - O sal da história (sapo.pt)

O português que enriqueceu com sobras peixe … e muita persistência - O sal da história (sapo.pt)

 

Fontes

Arquivo Municipal de Lisboa

Contrato de adjudicação

PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0003/035

Antiga fábrica de adubos orgânicos

PT/AMLSB/CMLSBAH/COPA/001/51061

 

Concessão a François Pierre Auguste

PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0004/020

 

Esteves Pereira, Guilherme Rodrigues, Portugal. Diccionário Histórico, Chorográphico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico Vol. V, Lisboa, João Romano Torres e Cª – Editores, 1911. p. 26. Disponível aqui: https://archive.org/stream/portugaldicciona05pere/portugaldicciona05pere_djvu.txt

 

Direção-Geral do Património Cultural

Forte de Nossa Senhora da Saúde da Trafaria

http://monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=32962

 

Conservas de Portugal – Museu Digital da Indústria Conserveira, A Indústria Conserveira na Construção da Malha Urbana no Algarve: OLHÃO (6), texto de Armando Filipe da Costa Amaro

Disponível aqui:

https://conservasdeportugal.com/a-industria-conserveira-na-construcao-da-malha-urbana-no-algarve-das-estruturas-produtivas-a-habitacao-operaria-1900-1960-6/

 

Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Benjamim Pereira, Atividades Agro-Marítimas em Portugal; Coleção Portugal de perto; Lisboa, Etnográfica Press, 1990. Disponível aqui:

https://books.openedition.org/etnograficapress/6428

 

Peniche Surf News,Memórias de Peniche, texto de Luís Rafa Matos. Acessível aqui:

http://penichesurfnews.weebly.com/blog_opiniao/memrias-de-peniche

Francisco Castelo, Fototeca Municipal de Lagos, Cem anos de Indústria Conserveira em Lagos - A memória em imagens –1º Congresso da Associação de Municípios Terras do Infante, Centro Cultural de Lagos – 2019. Aqui:

Cem anos de Indústria Conserveira em Lagos

Biblioteca Nacional de Portugal, em linha.

www.purl.pt

Diário Illustrado, 06.07.1892

O Paiz, 05.11.1895

 

Imagens

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)

Empresa Pública do Jornal O Século, Fotografias de 1921-1925

Autor não identificado, 1922.

Documentos: PT/TT/EPJS/SF/006/02714, PT/TT/EPJS/SF/006/02800, PT/TT/EPJS/SF/006/02803, PT/TT/EPJS/SF/006/02836, PT/TT/EPJS/SF/006/03087, PT/TT/EPJS/SF/006/03173, PT/TT/EPJS/SF/006/03174