Os japoneses deixaram Lisboa com os olhos em bico
Os relatos oficiais são sóbrios nas descrições – afinal, tratava-se de uma visita de grande importância política e económica - mas os jornais dão conta do espanto e curiosidade que a delegação japonesa despertou. Nunca por cá se havia visto grupo tão exótico e extravagante, para mais, curioso de experimentar os divertimentos em voga na Lisboa de 1862.
A primeira embaixada japonesa à Europa em cerca de dois séculos chegou a 16 de outubro à Capital portuguesa. Vinda à boleia num navio francês, foi recebida com as maiores deferências e honras, ao som de uma barulhenta salva de tiros, redimida pela banda de música que, depois da atrapalhação face à aparência incomum dos recém-chegados, se fez ouvir, em jeito de boas-vindas. Menor pompa não seria de esperar, já que quem assim era acolhido vinha como emissário do imperador do Japão*, figura longínqua, que inspirava respeito e admiração.
Foi uma seleção de três enviados especiais com nomes impronunciáveis***, óbvia e necessariamente acompanhados de intérprete e cinco subalternos cujas funções não se descortinou, que seguiram para audiência ao mais alto nível com o chefe de Governo, o muito influente Duque de Loulé, com quem conferenciaram mais de duas horas, fosse porque a comunicação não era fácil, ou porque tinham muito a dizer uns aos outros.
A 19, no Paço da Ajuda, foi a vez do Rei de Portugal receber tão importantes mensageiros do País do Sol Nascente, os primeiros a deslocar-se ao ocidente após um ostracismo a que os nipónicos se auto relegaram duzentos anos antes, propositadamente ignorando os ventos que sopravam do mundo ocidental.
Aí, perante outros elementos da família real e da corte, reiteraram-se mutuamente puros sentimentos e os termos do tratado assinado dois anos antes e que havia dado o pontapé de saída para o reatar das ligações entre os dois países.
D. Luís, puxando dos galões, lembrou a longa relação prévia, iniciada quando os portugueses foram os primeiros europeus a pôr o pé naquelas paragens distantes.
Manifestou intenção de ver desabrochar este novo vínculo, com vantagens para ambas as partes.
Estava selado o pacto também com a entrega de oferendas trazidas de longe.
O jovem monarca português, embalado pela boa vontade, colocou carruagens à disposição e patrocinou estadia no Hotel muito acertadamente denominado “Bragança”, em homenagem à dinastia que era a sua e que havia muito nos governava.
Embora em missão formal, os japoneses fizeram questão de passear pela cidade - para pasmo geral – e conhecer alguns dos divertimentos mais em voga na nossa Capital.
Se a sua presença causava estranheza e atraía multidões embasbacadas, seria interessante saber com que opinião ficaram estes ilustres visitantes de costumes tão diferentes e estranhos aos seus próprios.
O que pensariam dos que lhes acenavam ao passar e dos que os visitaram para prestar cumprimentos?
Como não conseguiam passar despercebidos, soube-se logo que 31 elementos da comitiva asiática haviam ido experimentar os famosos banhos a vapor do doutor Nilo**.
Numa época em que o banal cidadão não tinha água corrente em casa para beber, quanto mais para tomar banho, hábito salutar que, por maioria de razão, ainda não havia sido adotado pelos portugueses, os visitantes nipónicos afirmavam-se assim como “criaturas asseadíssimas” e respeitadoras das leis da higiene...embora, à primeira, vista assim não parecesse, constatava um jornalista, intrigado com tamanha contradição.
Consta que visitaram o Real Teatro de São Carlos, mas disso não se deu pormenor…
Depois - pasme-se! - foram ao circo, anunciados com o mesmo alarde de qualquer outra atração ou aberração.
E o recinto, que se erguia à entrada da rua do Salitre, encheu-se para os ver, para gáudio do proprietário, Thomas Price.
Sempre mantendo a compostura, os embaixadores observavam as acrobacias equestres, as formas voluptuosas adivinhadas sob os insinuantes fatos das amazonas, as patetices dos palhaços e a perícia de um conhecido rabequista.
Enquanto isso, todo o público ignorava os artistas, concentrando a atenção naquele estranho grupo, propositadamente instalado numa tribuna guarnecida de seda e damasco, concebida para os acolher e melhor mostrar aos demais.
Entre os milhares que assistiam, cochichava-se sobre os elaborados penteados, que culminavam num lustroso rolo de cabelo; admiravam-se as indumentárias volumosas e chamativas; abriam-se as bocas de espanto ao ver o inusitado e aparentemente desconfortabilíssimo calçado; tremia-se de receio com as espadas e punhais que ostentavam.
Os lisboetas ficaram intrigados com tudo o que viam, embora não se tenham deixado cativar pelas feições peculiares dos estrangeiros.
Não se sabe se, depois de tal banho de público num local que se sabe abafado, pleno de fumo e odores variados, necessitaram novamente do efeito purificador da imersão em águas quentes.
Desconhece-se também – mas seria deveras interessante conhecer - o conteúdo dos extensos apontamentos que os japoneses registavam, enquanto examinavam com a mesma avidez – mas menos aparato – aqueles que os perscrutavam.
A hora da abalada, nove dias depois da chegada a este retângulo no extremo da Europa, não destoou de todas as outras movimentações por Lisboa, sendo seguida por rios de gente, que queria, ainda que à distância, ter um último vislumbre do excêntrico conjunto que tanta excitação originou.
À Margem
Portugal reatou relações com o Japão em 1860, com o Tratado de Paz, Amizade e Comércio, assinado em Tóquio por representantes de ambos os Estados e que se mantém em vigor.
O Japão voltava a abrir-se ao ocidente, mas fê-lo ponderada e vagarosamente.
Quando, em 1862, esta embaixada estabeleceu contactos entre nós, mas também com a França, o Reino Unido, a Prússia, a Rússia, os Países Baixos e, ainda, com os Estados Unidos da América (na imagem, a receção com Napoleão III, em Paris), o que pretendia era aprender sobre os ocidentais, reiterar a vontade de os contactar, mas procrastinar os progressos que então se faziam de abertura dos portos ao estrangeiro e que suscitaram alarme social entre os japoneses.
Novos embaixadores voltariam a Portugal em 1864. Das oferendas do imperador japonês trazidas pelos seus representantes nas duas ocasiões nasceu uma nova sala no Palácio da Ajuda, ironicamente batizada de Sala Chinesa, como então se denominavam os espaços decorados com objetos orientais, muito ao gosto da época.
Foram recebidos rolos de seda - com a qual se cobriram todas as paredes - espadas ornamentais, pinturas, biombos, peças de mobiliário, uma sela com arreios, caixas, jarras e estatuetas representativas da cultura nipónic, que ainda lá estão e já foram alvo de exposições dedicadas.
As relações entre portugueses e japoneses, longas mas nem sempre fáceis, foram marcadas por intensas trocas comerciais e evangelização, a partir de 1543, mas extintas cerca de um século depois, quando o novo poder no Japão decretou a expulsão de todos os estrangeiros e o encerramento do País ao mundo ocidental.
Durante o processo e em sucessivas operações, foram mortos muitos cristãos, apontados como mártires que ali deram a vida pela fé: leigos, na maioria japoneses, mulheres, crianças, samurais e sacerdotes de diversas congregações. Entre estes estavam vários portugueses, que encontraram a morte das formas mais diversas, todas atrozes: queimados vivos, degolados, espancados, afogados num tanque gelado e, claro, crucificados.
Mas isso é outra história…
…………………………………….
*Osahito ou Kõmei, embora o país fosse liderado igualmente por Tokugawa Iemochi, o então 14.º Xogum.
**José Romão Rodrigues Nilo
***Takénoõnchy Simodzoukeno Camy, Matsoudaira Ivamino Camy e Kiôgok’ Notono Camy.
..............
Fontes
Biblioteca Nacional (em linha)
www.purl.pt
A Revolução de Setembro
18.10.1862
19.10.1862
21.10.1862
22.10.1862
23.10.1862
26.10.1862
Digigov – Diário do Governo Digital
Diário de Lisboa – Folha Official do Governo Portuguez
20.10.1862
22.10.1862
27.10.1862
Portugal em 1862, Lelio Lenoir, Lisboa, Imprensa de J. G. de Sousa Neves, 1863
Portugal em 1862 - Lelio Lenoir - Google Livros
A-Lingua-Portuguesa-no-Japão1.pdf (socgeografialisboa.pt)
As singularidades da Sala Chineza no Palácio da Ajuda: contextualização histórica e contributos para a sua museografia, António Cota Fevereiro, MIDAS - Museus e estudos interdisciplinares, 2022.
Disponível aqui: As singularidades da Sala Chineza no Palácio da Ajuda: contextualização histórica e contributos para a sua museografia (openedition.org)
Início - Mártires do Japão (pontosj.pt)
Entrevista a Alexandra Curvelo e Ana Fernandes Pinto conduzida por Leonídio Paulo Ferreira
″Armas dos portugueses foram decisivas para a unificação do Japão″ (dn.pt)
Texto de Ana Maria Ramalho Proserpio
Expresso | As visitas dos Japoneses à Europa
Imagens
Gaspard-Félix Tournachon (1820-1910). Nadar Atelier. Paris 1862. - Bibliothèque nationale de France, département Estampes et photographie, FT 4-NA-235 (2) - https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b53065342g?rk=42918;4#
Gaspard-Félix Tournachon (1820-1910). Nadar Atelier. Paris 1862. - Bibliothèque nationale de France, département Estampes et photographie, FT 4-NA-237 (5) - https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b53117521c/
Por F. Kayser (Original piece of photograph is owned by nl:Geldmuseum) - ユトレヒトの貨幣博物館が所蔵する文久遣欧使節の写真31枚を収めた記念アルバム(福沢諭吉の新たな写真発見 オランダで - MSN産経ニュース), Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=8880063
Fichier:First Japanese Embassy to Europe Fukuzawa.jpg — Wikipédia (wikipedia.org)
Fichier:First Japanese Embassy to Europe Fukuzawa.jpg — Wikipédia (wikipedia.org)
Nadar Atelier
ENKI KOSHO SHISETSUDAN (1) (archive.org)
Rei de Portugal D. Luís I (1838 - 1889), "o Popular (albertolopesleiloeiro.com.br)
Acrobacias com cavalos e amazonas - Los piratas de la Savana [Material gráfico] / Circo y Teatro de Price, 1874, Biblioteca Nacional de Espanha (pormenor).