Cera ou não cera, eis a diversão!
Em setembro de 1862 anunciava-se um espetáculo jamais visto em Lisboa. O espanhol Sebastian Malagariga y Codina prometia deslumbrar com as suas figuras de cera, tão verídicas que se confundiam com os heróis e vilões que pretendiam retratar. Tudo para impressionar o público que acorria em massa à Capital do reino, não para contemplar estas atrações em particular, mas para presenciar o ansiado matrimónio real. Nunca a cidade vira tanto divertimento junto, nem tanta gente ávida de o experimentar.
A 29 de setembro, dia em que a corveta Bartolomeu Dias partia de Génova trazendo a bordo a já nova rainha de Portugal, casada por procuração pouco antes, em Turim, o acréscimo de movimento era evidente. Lisboa transbordava de povo vindo de Norte a Sul, que proporcionava um colorido especial pelas roupas extravagantes e fora de moda, próprias de quem vive longe das tendências emanadas de Paris.
A mala-posta, os comboios, as diligências e os vapores viajavam cheios, tanto mais que algumas companhias decretaram “meio preço” durante os festejos. A cidade engalanava-se e ilumina-se para receber a jovem soberana, alugavam-se janelas para mirones e os comerciantes esfregavam as mãos de contentes, faturando extraordinariamente.
Com os magotes de provincianos, que se acomodavam como podiam nos poucos alojamentos hoteleiros disponíveis, em quartos alugados e em casas de familiares, vinham também uns quantos amigos do alheio, sempre em busca de momentos de confusão, pedintes e novos espetáculos destinados a entreter uma tão vasta plateia nos dias anteriores e seguintes ao enlace de D. Luís I e de D. Maria Pia (na primeira imagem).
É assim que, enquanto se apregoavam desfiles náuticos no Tejo, um café-concerto e o circo de Madame Turnour, os teatros Gimnásio, Variedades e da Rua dos Condes, assim como o D. Maria II, divulgavam a estreia de novas peças e récitas.
O Circo Price (na imagem), instalado à entrada da rua do Salitre, alardeava a abertura oficial da sua época em Portugal, embora com preços da anterior.
A praça do Campo de Sant’Ana recebia a primeira tourada do ano e, no Real Teatro de S. Carlos, inaugurava-se solenemente a temporada lírica.
Ao mesmo tempo que se oferecia um bodo a 400 pobres, perspetivavam-se cinco dias de gala na corte e igual período de encerramento das repartições públicas.
Em, paralelo, o mencionado escultor Sebastian Malagariga y Codina, proveniente de Barcelona, apresenta, pela primeira vez no nosso País, a sua exposição de figuras de cera.
A mostra podia ser visitada na rua oriental do Passeio Público, que é como quem diz, na lateral da vasta área vedada e ajardinada existente na zona onde depois se rasgou a avenida da Liberdade (na imagem).
O espanhol não se alonga sobre o que o visitante pode ver, mas as figuras de cera, então muito populares, representavam personagens históricas ou famosas, recriando quadros reais, quanto mais tétricos melhor - nas imagens, Henrique VIII e três das suas mulheres e a rainha Elizabeth I, em cera.
Impressionavam pela semelhança com verdadeiras pessoas, dada a cor, a plasticidade da cera e a arte do escultor. Uma obra muito conhecida deste que então visitava Lisboa era a decapitação de Juan de Padilla e seus associados no mercado de Villalar, uma cena da Guerra das Comunidades de Castela, 1520-1522 (na imagem 3).
Era também o vislumbre de episódios históricos aquilo que prometia um outro divertimento instalado no mesmo local: o Grande Ciclorama e Panorama dos irmãos Rosi. Ali, quem pagasse um bilhete de 100 reis, podia ver imagens arrepiantes – e infelizmente novamente tão atuais - como a guerra da Crimeia ou a tomada de Sebastopol (na próxima imagem); a destruição da esquadra turca (Guerra Russo-Turca (1768–1774) ou paisagens da cidade de Londres.
Nos últimos dias, já apresentava toda uma nova coleção de “vistas”, com batalhas sanguinolentas ocorridas dois anos antes e, pasme-se, imagens da recente partida de Maria Pia a caminho de Portugal.
Por fim, oferecia, os retratos estampados em relevo sobre cartão dos dois principais heróis da unificação italiana, Garibaldi e Vítor Emanuel, precisamente o pai da princesa italiana agora monarca dos portugueses.
Era, por essa altura, já um ambiente de final de festa o que se vivia... Bem longa festa, por sinal.
Quis o acaso, que ao real enlace se associassem mais dois momentos de júbilo, o primeiro aniversário da rainha passado no seu novo País, a 15 de outubro, e o dia de anos do rei, a 31, o que fez prolongar este período de verdadeiro êxtase coletivo por mais de um mês.
De modo que já tinha entrado novembro quando a normalidade, o que quer que isso fosse, lentamente se reinstalava, com cada um a regressar às suas terras e afazeres e Lisboa a cair na rotina costumeira.
Foi então que se anunciou mais um divertimento inesperado: a extraordinária exposição de répteis vivos de Madame Cabana…
À margem
Contrariamente ao que afirmava, Malagariga y Codina não foi o primeiro a expor figuras de cera em Lisboa. Cerca de 64 anos antes, numa loja perto do Real Theatro de S. Carlos, mostrava-se, entre outras curiosidades, a admirável máquina do corpo humano, esculpida naquele material. Em finais de 1810, era o italiano Luíz Chiappi, que apresentava as suas criações, num bazar da rua do Loreto – ao Chiado – entre as quais um D. Sebastião duvidoso; uma representação em cera de Tapôm, um chinês muito conhecido na Lisboa daqueles tempos, e a figura da destemida Maria Manuela Sanches, que manobrara uma bateria na defensa de Saragoça contra os Franceses, no ano anterior, todos devidamente ataviados com traje adequado e cabeleira, para mais fielmente retratarem a pessoa que lhes serviu de inspiração.
É essa parecença espantosa, aliás, o trunfo dos muitos museus de figuras de cera existentes em todo o mundo, entre os quais, ressaltam os “de” Madame Tussaud e o Musée Grevin, em Paris.
De resto, pela sua verosimilhança, há muito que a cera colorida era usada para modelos anatómicos de cariz científico, nomeadamente para o estudo de determinadas patologias, o que persistiu até ao século XX.
No Hospital de Santo António dos Capuchos (Lisboa), por exemplo, subsiste uma perturbante coleção de 254 máscaras - provenientes dos serviços de dermatologia do Hospital dos Capuchos e do Hospital do Desterro – que exemplificam tridimensionalmente muitas patologias hoje felizmente desaparecidas, que deixavam marcas horripilantes nos doentes.
Menos medonhos, mas igualmente verídicos são três esculturas em cera muito raras existentes no Palácio Nacional da Ajuda. São os bustos de D. Maria I, D. Carlota Joaquina e D. João VI, modelados pelo pintor e escultor Joaquim Rafael. Impressionam porque ali, aparentemente, não houve a tentativa, tantas vezes presente em representações de monarcas, de “adoçar” ou aprimorar as reais feições, que se mostram quase humanas, no esplendor da sua imperfeição exatamente retratada.
Mas isso é outra história…
Fontes
Biblioteca Nacional de Portugal
A Revolução de Setembro, 01.10.1862, 02.10.1862, 03.10.1862, 04.10.1862, 05.10.1862, 09.10.1862, 11.10.1862, 28.10.1862, 01.11.1862.
Hemeroteca Municipal de Lisboa
Olisipo, 10.1962, texto de Ernesto Soares.
Patricia Delayti Telles, Os bustos régios de Joaquim Rafael - Imagens de marca no retrato em cera em Portugal, Centro de Estudos em Arqueologia Artes e Ciências do Património - Universidade de Coimbra, 2021.
Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt › download
Coleções – CH | Lisboa Central (min-saude.pt)
Imagens
Arquivo Municipal de Lisboa
Circo Price – reprodução de uma gravura - José Artur Leitão Bárcia, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000883.
Passeio Público – reprodução de uma gravura – Estúdio Mário Novais, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/MNV/000062
Casamento de D. Luís com D. Maria Pia de Saboia, óleo sobre tela, imagem de Horácio Novais.
A decapitação de Juan de Padilla e seus associados Wellcome V0041767.jpg - Wikimedia Commons
Fragmento del Panorama de Sebastopol, de Franz Roubaud, Ciclorama - Wikipedia, la enciclopedia libre
The Grotesque 100-Year Old Wax Figures on Display in Brooklyn - Atlas Obscura
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How Marie Tussaud Created a Wax Empire | Smart News| Smithsonian Magazine
ttps://www.chlc.min-saude.pt/patrimonio-cultural/colecoes/lisboasos.blogspot.com/2011/03/flor-da-pele-coleccao-de-dermatologia.html
Fotografia Pedro Lobo, em Patricia Delayti Telles, Os bustos régios de Joaquim Rafael - Imagens de marca no retrato em cera em Portugal, Centro de Estudos em Arqueologia Artes e Ciências do Património - Universidade de Coimbra, 2021.