A milagrosa fórmula 606
Muitos foram os nomes atribuídos à terrível doença que espalhou o terror e a vergonha, particularmente entre os boémios, mas que não poupou qualquer grupo social. Não espanta, pois, que o mundo tenha dado vivas e cantado de alegria com a descoberta da milagrosa fórmula 606.
Doença das mil caras ou das bubas, morbo gálico ou napolitano, mal serpentino, ou, simplesmente, avaria…muitas foram as designações que teve, durante mais de quatro séculos. Tornou-se o grande terror mundial, porque podia atacar qualquer um, não olhando a caras ou riqueza, deixando marcas para sempre e provocando a morte, para além de dores horrorosas e vergonha. Até que chegou o 606, uma espécie de “bala mágica”, que prometia acabar com a moléstia, cujo nome maldito ninguém queria dizer.
Em 1910, finalmente, cantou-se vitória. O cientista alemão Paul Ehrlich (na imagem) tinha concebido um composto químico eficaz para combater o treponema – o ser microscópico causador de todo este pesadelo - sem que, no processo, o doente morresse também, como até então era tristemente frequente.
A descoberta deu-se no teste laboratorial número 606 com diferentes substâncias – mais propriamente a 606ª experiência de modificação da estrutura química do arsenical - daí ter-se assim batizado a combinação “milagrosa”.
A euforia entre os grupos mais afetados - desde logo as prostitutas e os boémios em geral - foi tão grande que até se escreveram canções, verdadeiras odes ao novo medicamento, o único, em mais de quatrocentos anos que mostrava eficácia perante a tenebrosa enfermidade, cujo nome, começado por “s”, ninguém queria pronunciar.
Curiosamente, é também através da poesia, no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, que temos a primeira referência em Portugal à tão temida…sífilis.
É Pedro Homem quem “canta” este mal francês, que afeta os mais ricos e libertinos. Estávamos no final do século XV e, com o vaivém dos Descobrimentos, trocas comerciais, chegada e abalada de gente de todo o mundo, em pouco tempo, o medo – e a doença - tinham-se instalado.
Mas, como não se sabia bem qual a origem do problema ou a forma de o evitar, também as tentativas de o travar pareciam infrutíferas, verificando-se uma verdadeira pandemia venérea, sem que de tal houvesse consciência.
A ligação das prostitutas a este mal, no entanto, parecia a única certeza, para além de que ele se dispersava inexoravelmente, por vezes em exércitos inteiros, nos prostíbulos, mas também nos banhos públicos e, depois, nas casas de cada infetado.
Em alguns países, como França, os enfermos - reconhecidos pelas pústulas volumosas e repugnantes que lhes cobriam o corpo - eram tratados com grande desumanidade, escorraçados e até recusados pelos médicos.
Entre nós, pelo contrário, criou-se a Casa das Boubas, no Hospital de Todos os Santos, em Lisboa (na imagem), destinada a estes doentes, e - coisa nunca vista em parte alguma - havia incursões pelas ruas em busca de gente afetada pela temida maleita, de quem se pretendia cuidar.
Durante séculos, os tratamentos eram extremamente limitados, à base de mercúrio, que provocava terríveis efeitos secundários, e de um preparado produzido a partir da madeira de guaiaco, uma árvore proveniente do Haiti, que foi trazida pela armada de Cristóvão Colombo. Segundo alguns autores, no regresso, esta também deu boleia à própria sífilis.
A doença terá sofrido mutações, enfraquecido em algumas épocas e recrudescido noutras, mas nunca desapareceu.
Foi assim que se chegou ao século XX, com o mesmo pavor, embora carregando mais certezas sobre a forma de contágio e os cuidados para não a contrair, que passavam, sobretudo, pela abstinência de contactos sexuais fortuitos que, como se pode calcular, não era grande proteção porque exigia racionalidade numa matéria pouco dada a isso.
É, portanto, compreensível o entusiasmo e a esperança que a descoberta do composto 606 provocou. Foi o culminar feliz de outros avanços e experiências decorridos no século XIX.
Mas, não se livrou de ataques, da classe médica e científica e de insuspeitas áreas da sociedade: a polícia alemã receava que o fim do medo resultasse no incremento da prostituição e a Igreja Ortodoxa Russa, por exemplo, defendia que as doenças venéreas eram castigos de Deus pelos comportamentos imorais. Logo, não deviam ser tratadas.
O 606 foi posto no mercado sob a designação comercial Salvarsan. Em poucos anos, a combinação original foi substituída por uma mais fácil de utilizar, a 914. Ambas, embora eficazes nas lesões cutâneas, não erradicavam a doença do organismo, o que só viria a ser uma realidade com a descoberta da penicilina, em 1928.
A produção em grandes quantidades ainda teve de esperar cerca de década e meia, mas poria um ponto final na longa carreira da sífilis,
Esta avariose, de quando em vez, ainda dá um ar da sua (des) graça, mas já dificilmente assusta alguém.
À margem
A origem da sífilis é, ainda hoje, alvo de debate. O que é certo é que o pesadelo começou logo após o segundo regresso de Colombo e que cada povo atirou as culpas de tão infame doença àquele que lha passou. Assim, não é de estranhar que, por exemplo, para os franceses fosse “mal napolitano”, pois aí a haviam contraído; “mal alemão”, para os polacos e “mal britânico”, no Taiti. Seguindo a mesma lógica, para os portugueses, era inicialmente denominada de sarna de Castela, e, no Ceilão ou no Japão, era conhecida como mal português.
O mais comum, no entanto, era “mal gálico”, pois foi entre o exército de Carlos VIII, de França, com cerca de 38 mil homens, que primeiro se tomou consciência da doença, enquanto carregava sobre o reino de Nápoles.
O nome sífilis foi adotado em 1530, mas só se generalizou no século XIX, ainda assim, evitando-se essa palavra maldita, não fosse atrair o azar.
O “batismo” foi feito pelo médico italiano Girolamo Fracastoro que, num poema, atribuiu a doença a um castigo do sol, que terá virado a sua ira contra o pastor Syphilus, por venerar outra divindade.
A verdade é que apenas os idosos e as crianças pareciam a salvo e, no final do sec. XIX, cerca de 1/3 da população europeia estaria infetada.
A somar a este tenebroso passado, a sífilis ficaria associada a uma “experiência” científica totalmente inaceitável em pleno século XX. Foi nos Estados Unidos da América, 400 homens negros foram usados como cobaias sem que disso fossem informados, deixando-se neles progredir este mal sem qualquer medicação. Foi entre 1932 e 1972, em Tuskegee, Alabama, às mãos do serviço público de saúde norte-americano.
Mas isso é outra história…
.......................
Nota: a sífilis desenvolve-se em três estádios. Primeiro surge uma pequena ferida na zona genital que cicatriza em poucas semanas. A infeção, no entanto, permanece, pelo que depois surgem machas em diferentes partes do corpo, por vezes com febre, dores de garganta, caroços no pescoço e axilas e queda de cabelo. Na terceira fase, podem surgir lesões irreversíveis no coração, no cérebro e em outros órgãos.
Nota 2: – Sobre a fórmula 606, o francês Paul Lack cantou um curioso poema de Valentin Pannetier e Marcel Hamel. Raoul Ponchon escreveu outro não menos interessante com a mesma inspiração.
Fontes
Germano de Sousa, Impacte social da sífilis, algumas considerações históricas, in Medicina Interna, vol. 03, nº3, 1996. Pp184-192.
Célia Cristina Rodrigues Lopes, As mil caras de uma doença – Sífilis na sociedade coimbrã no início do século XX – Evidências históricas e paleopatológicas nas coleções identificadas de Coimbra, Tese de Doutoramento em Antropologia, Ramo de especialização: Antropologia Biológica, Universidade de Coimbra, 2014.
Geraldo Augusto Fernandes, O amor pela forma no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Tese de Doutoramento em Literatura Portuguesa, Universidade de São Paulo, 2011.
Hemeroteca Digital de Lisboa
Illustração Portugueza, nº246, 07.11.1910, O 606, texto de Aquilino Ribeiro, em Paris.
Museu da Saúde: “Morbos e Pecados – A Sífilis em Portugal” - INSA (min-saude.pt)
"La Formule 606" - Doenças Sem Fim - UNIGE
www.phonobase.org/audio/AC-2010/2010-02_2264.mp3
Sífilis – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Estudo da sífilis não tratada de Tuskegee – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Imagens
Paul Ehrlich e o 606: abrindo o caminho para a cura das doenças infecciosas: - Xarope de Letrinhas
File:Paul Ehrlich and Sahachiro Hata.jpg - Wikimedia Commons
Description: German Dr Paul Ehrlich and Japanese Dr Sahachiro Hata
Source: Hata Memorial Museum, Shimane
Um em cada cinco londrinos do século 18 estavam com sífilis, aponta estudo (uol.com.br)
Paul Ehrlich (1854-1915) at work in his laboratory
Paul Ehrlich (1854-1915) at work in his laboratory | Wellcome Collection
O 606 ou Salvarsán (historiadelamedicina.org)
Triagem de alto rendimento | Basicmedical Chave (basicmedicalkey.com)
File:Hospita Real de Todos os Santos.jpg - Wikimedia Commons . gravura de Jaime Martins Barata.
La sífilis | Gomeres (fundacionindex.com)