Há 200 anos, num país francamente caótico...
Um rei limitado nos seus poderes, uma rainha em prisão domiciliária, um infante revoltoso e em armas, trocas de declarações e acusações que se desmentem dias depois, substituições no Governo, parlamento em sessão contínua para, logo depois, ser dissolvido…retrato caótico de Portugal, em 1823.
Há 200 anos, Portugal estava mergulhado num caótico pântano político, com o rei limitado nos seus poderes e prerrogativas; uma constituição contestada pelo mais alto representante do clero e pela rainha, um infante revoltoso, que arrasta consigo forças militares, e um parlamento posto em causa por este estado de coisas. Como se não bastasse, as contas públicas estavam exauridas e o nosso maior trunfo económico tinha-se esfumado, com a independência do Brasil. Isto sim, era uma crise política que, aliás, se estendia a Espanha, a braços com problemas de idêntico teor.
João VI tinha regressado do Brasil havia apenas dois anos e, muito provavelmente, já se teria arrependido. A Constituição liberal de 1822, que havia jurado, era vista como penalizadora para o poder do rei e da Igreja católica. As instituições funcionavam, mas era cada vez mais óbvia a oposição sentida, tendo ocorrido, nos dois anos anteriores, diversos atos de terrorismo antirrevolucionário e uma conspiração desmascarada.
Em fevereiro de 1823, o conde de Amarante tinha liderado uma rebelião sustida a tempo no Norte do País e, por esta altura do ano (final de maio), a rainha (na imagem) estava em prisão domiciliária, porque recusara jurar a dita Constituição.
Em maio, o seu filho Miguel, um jovem adulto de 20 anos que havia vivido toda a sua vida no Brasil, dá-se a conhecer ao País, sendo a face visível de uma revolta cujas hostes se instalam em Vila Franca de Xira. Estava em marcha o que ficou conhecido como a Vila Francada.
É aí, no Ribatejo, que o príncipe diz ao que vem. Quer a restituição da autoridade do pai e uma nova constituição, que reconcilie a nação com ela própria e com os outros estados europeus. Quer, no fim de contas - como por cá se ouviu no estertor final de um outro regime* - uma evolução na continuidade, em termos do poder que cabia à Casa Real e à Santa Madre Igreja, antes da revolução liberal.
Face a tão delicada e grave situação, as Cortes – que funcionariam como um parlamento - estão em sessão permanente, tentando perceber qual a melhor forma de dar volta aos contecimentos.
Instam D. João VI a, ouvindo o Conselho de Estado, fazer mudanças no Governo – uma remodelação, dir-se-ia hoje – escolhendo ministros mais fortes e capazes. O rei (na imagem) bem tentou, mas alguns dos convidados declinadram tal honra e aliaram-se à revolta.
O próprio monarca, rumou a Vila Franca… no mesmo dia em que se tinha declarado fiel à Constituição, apelado à confiança parlamentar e governamental, assumindo-se pleno detentor dos poderes que lhe assistiam e manifestando vontade de punir o filho rebelde.
Três dias depois, a 2 de junho, faz publicar em Diário do Governo uma proclamação em que contradizia tudo o que havia afirmado antes, preconizava uma nova Constituição, da qual emergiriam instituições mais compatíveis com a vontade, usos e necessidades da monarquia e do País.
Não havia volta a dar. As forças estavam maioritariamente com os rebeldes, com quem agora também estava o rei. Lutar seria, para além de infrutífero, suicida. E, assim, as Cortes – onde então estavam os mais acérrimos defensores do liberalismo - decidiram desistir, mas contestar. Previam conseguir negociar uma solução intermédia, de compromisso entre todas as partes, evitando o regresso ao absolutismo.
Estavam enganados. Todas as instituições resultantes do anterior estado de coisas foram “apagadas”; revogadas as “novidades” legislativas resultantes das Cortes, entretanto dissolvidas, como o foi a comissão que havia sido criada para redigir nova carta constitucional.
Terminou, assim, a primeira experiência portuguesa no liberalismo político, três anos após a auspiciosa revolução liberal, de 1820.
Mas, se pensa que este foi um período conflituoso e confuso…então ainda não viu nada. Em 1826, a morte de D. João VI, trará ao de cima uma ainda mais difícil teia de interesses e visões para o País. Os irmãos Miguel e Pedro vão pegar em armas um contra o outro, mergulhando Portugal noutra guerra com consequências desastrosas.
À margem
Quando a família real regressa à metrópole, em 1821, os franceses, cujas invasões haviam motivado este longo exílio de 13 anos, tinham abalado havia muito. D. Pedro, o herdeiro do trono de Portugal, decide ficar no Brasil. Mais! No ano seguinte, declara a independência daquele território importantíssimo e é proclamado o seu primeiro imperador.
Pela morte do pai, em 1826, é designado rei de Portugal. Teve os dois reinos na mão, mas acabaria por renunciar a ambos. Outorga a Carta Constitucional a Portugal, mas abdica do trono em nome da filha, Maria da Glória e vê-se, depois, na contingência de abdicar também do Brasil, em nome do filho, que viria a ser o imperador D. Pedro II. Mas, não se fica por aqui, porque os acontecimentos também não lho permitem, especialmente porque Miguel, o irmão mais novo, instala-se no trono, fazendo letra morta da nova Constituição.
Estala a luta entre as fações rivais, que só terminaria em 1834. Vence D. Pedro e os liberais, mas o monarca está cansado e doente, morrendo no mês seguinte ao início da sua regência.
Não se pense, no entanto, que tamanha confusão era exclusiva de Portugal. Na mesma época – abril/maio de 1823 - aqui ao lado, em Espanha, é o próprio rei que pede aos franceses para invadirem o País, onde os liberais não o deixavam governar. É sequestrado e temporariamente declarado louco.
Mas isso é outra história…
*A frase “evolução na continuidade” alude ao discurso de 1969, no qual Marcello Caetano assim caracterizou aquela que seria a sua ação como presidente do Conselho. Uns dirão que era mudar para ficar tudo na mesma, outros que se pretendia uma abertura em termos sociais e económicos, mas sem ruturas com o período anterior, de António de Oliveira Salazar.
Fontes
Vários autores, coordenação de Roberta Stumpf e Nuno Gonçalo Monteiro, 1822, Lisboa, Casa das Letras, 2022.
Programas 200 e 203 do podcast O Resto é História, programa da Rádio Observador coordenado por João Miguel Tavares, com o historiador Rui Ramos. E o Resto é História – Programas – Observador
A Vilafrancada, Parlamento.
A Vilafrancada (parlamento.pt)
Constituição de 1822
O regresso de D. João a Portugal
Evolução na Continuidade | NewsMuseum
Imagens
Constantino de Fontes. Desembarque d'el rei dom João acompanhado por uma deputação das Cortes: ... em 4 de julho d'1821 regressando do Brazil. [S.l.: s.n., 18--?].
Vilafrancada – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
O Portal da História - Cronologia do Liberalismo de 1823 a 1826 (arqnet.pt)
Imagem: Dom Miguel, [Lisboa, na Impressão de Alcobia, 1823], gravura, Biblioteca Nacional de Portugal.
Artigos | Brasiliana Iconográfica (brasilianaiconografica.art.br)
Carlota Joaquina - Rainha de Portugal (museusdoestado.rj.gov.br)