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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Há 200 anos, num país francamente caótico...

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Um rei limitado nos seus poderes, uma rainha em prisão domiciliária, um infante revoltoso e em armas, trocas de declarações e acusações que se desmentem dias depois, substituições no Governo, parlamento em sessão contínua para, logo depois, ser dissolvido…retrato caótico de Portugal, em 1823.

Há 200 anos, Portugal estava mergulhado num caótico pântano político, com o rei limitado nos seus poderes e prerrogativas; uma constituição contestada pelo mais alto representante do clero e pela rainha, um infante revoltoso, que arrasta consigo forças militares, e um parlamento posto em causa por este estado de coisas. Como se não bastasse, as contas públicas estavam exauridas e o nosso maior trunfo económico tinha-se esfumado, com a independência do Brasil. Isto sim, era uma crise política que, aliás, se estendia a Espanha, a braços com problemas de idêntico teor.

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João VI tinha regressado do Brasil havia apenas dois anos e, muito provavelmente, já se teria arrependido. A Constituição liberal de 1822, que havia jurado, era vista como penalizadora para o poder do rei e da Igreja católica. As instituições funcionavam, mas era cada vez mais óbvia a oposição sentida, tendo ocorrido, nos dois anos anteriores, diversos atos de terrorismo antirrevolucionário e uma conspiração desmascarada.

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Em fevereiro de 1823, o conde de Amarante tinha liderado uma rebelião sustida a tempo no Norte do País e, por esta altura do ano (final de maio), a rainha (na imagem) estava em prisão domiciliária, porque recusara jurar a dita Constituição.

Em maio, o seu filho Miguel, um jovem adulto de 20 anos que havia vivido toda a sua vida no Brasil, dá-se a conhecer ao País, sendo a face visível de uma revolta cujas hostes se instalam em Vila Franca de Xira. Estava em marcha o que ficou conhecido como a Vila Francada.

 

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É aí, no Ribatejo, que o príncipe diz ao que vem. Quer a restituição da autoridade do pai e uma nova constituição, que reconcilie a nação com ela própria e com os outros estados europeus. Quer, no fim de contas - como por cá se ouviu no estertor final de um outro regime* - uma evolução na continuidade, em termos do poder que cabia à Casa Real e à Santa Madre Igreja, antes da revolução liberal.

Face a tão delicada e grave situação, as Cortes – que funcionariam como um parlamento - estão em sessão permanente, tentando perceber qual a melhor forma de dar  volta aos contecimentos.

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Instam D. João VI a, ouvindo o Conselho de Estado, fazer mudanças no Governo – uma remodelação, dir-se-ia hoje – escolhendo ministros mais fortes e capazes. O rei (na imagem) bem tentou, mas alguns dos convidados declinadram tal honra e aliaram-se à revolta. 

O próprio monarca, rumou a Vila Franca… no mesmo dia em que se tinha declarado fiel à Constituição, apelado à confiança parlamentar e governamental, assumindo-se pleno detentor dos poderes que lhe assistiam e manifestando vontade de punir o filho rebelde.

Três dias depois, a 2 de junho, faz publicar em Diário do Governo uma proclamação em que contradizia tudo o que havia afirmado antes, preconizava uma nova Constituição, da qual emergiriam instituições mais compatíveis com a vontade, usos e necessidades da monarquia e do País.

Não havia volta a dar. As forças estavam maioritariamente com os rebeldes, com quem agora também estava o rei. Lutar seria, para além de infrutífero, suicida. E, assim, as Cortes – onde então estavam os mais acérrimos defensores do liberalismo - decidiram desistir, mas contestar. Previam conseguir negociar uma solução intermédia, de compromisso entre todas as partes, evitando o regresso ao absolutismo.

Estavam enganados. Todas as instituições resultantes do anterior estado de coisas foram “apagadas”; revogadas as “novidades” legislativas resultantes das Cortes, entretanto dissolvidas, como o foi a comissão que havia sido criada para redigir nova carta constitucional.

Terminou, assim, a primeira experiência portuguesa no liberalismo político, três anos após a auspiciosa revolução liberal, de 1820.

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Mas, se pensa que este foi um período conflituoso e confuso…então ainda não viu nada. Em 1826, a morte de D. João VI, trará ao de cima uma ainda mais difícil teia de interesses e visões para o País. Os irmãos Miguel e Pedro vão pegar em armas um contra o outro, mergulhando Portugal noutra guerra com consequências desastrosas.

 

À margem

Quando a família real regressa à metrópole, em 1821, os franceses, cujas invasões haviam motivado este longo exílio de 13 anos, tinham abalado havia muito. D. Pedro, o herdeiro do trono de Portugal, decide ficar no Brasil. Mais! No ano seguinte, declara a independência daquele território importantíssimo e é proclamado o seu primeiro imperador.

Pela morte do pai, em 1826, é designado rei de Portugal. Teve os dois reinos na mão, mas acabaria por renunciar a ambos. Outorga a Carta Constitucional a Portugal, mas abdica do trono em nome da filha, Maria da Glória e vê-se, depois, na contingência de abdicar também do Brasil, em nome do filho, que viria a ser o imperador D. Pedro II. Mas, não se fica por aqui, porque os acontecimentos também não lho permitem, especialmente porque Miguel, o irmão mais novo, instala-se no trono, fazendo letra morta da nova Constituição.

Estala a luta entre as fações rivais, que só terminaria em 1834. Vence D. Pedro e os liberais, mas o monarca está cansado e doente, morrendo no mês seguinte ao início da sua regência.

Não se pense, no entanto, que tamanha confusão era exclusiva de Portugal. Na mesma época – abril/maio de 1823 - aqui ao lado, em Espanha, é o próprio rei que pede aos franceses para invadirem o País, onde os liberais não o deixavam governar. É sequestrado e temporariamente declarado louco.

Mas isso é outra história…

 

*A frase “evolução na continuidade” alude ao discurso de 1969, no qual Marcello Caetano assim caracterizou aquela que seria a sua ação como presidente do Conselho. Uns dirão que era mudar para ficar tudo na mesma, outros que se pretendia uma abertura em termos sociais e económicos, mas sem ruturas com o período anterior, de António de Oliveira Salazar.

 

Fontes

Vários autores, coordenação de Roberta Stumpf e Nuno Gonçalo Monteiro, 1822, Lisboa, Casa das Letras, 2022.

Programas 200 e 203 do podcast O Resto é História, programa da Rádio Observador coordenado por João Miguel Tavares, com o historiador Rui Ramos. E o Resto é História – Programas – Observador

 

A Vilafrancada, Parlamento.

A Vilafrancada (parlamento.pt)

 

Constituição de 1822

CRP-1822.pdf (parlamento.pt)

 

O regresso de D. João a Portugal

BNDigital

 

  1. Miguel - Infopédia (infopedia.pt)

 

Evolução na Continuidade | NewsMuseum

 

Imagens

BNDigital

Constantino de Fontes. Desembarque d'el rei dom João acompanhado por uma deputação das Cortes: ... em 4 de julho d'1821 regressando do Brazil. [S.l.: s.n., 18--?]. 

 

Vilafrancada – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

O Portal da História - Cronologia do Liberalismo de 1823 a 1826 (arqnet.pt)

 

Imagem: Dom Miguel, [Lisboa, na Impressão de Alcobia, 1823], gravura, Biblioteca Nacional de Portugal.

 

File:Entrada Triunfante de Sua Majestade o Senhor D. João VI e de seu Augusto Filho da capital.png - Wikimedia Commons

Artigos | Brasiliana Iconográfica (brasilianaiconografica.art.br)

Carlota Joaquina - Rainha de Portugal (museusdoestado.rj.gov.br)

Dandy mais dandy não há

 

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Eram os reis das extravagâncias no vestir, no estar e no gastar. Ambos tinham a pretensão de ter mudado a forma dos lisboetas elegantes se apresentarem à sociedade. Acabaram por servir de inspiração a Eça de Queiroz, às caricaturas de Bordalo e às paródias de Carnaval.

 

Jerónimo Colaço* (1844-1884) e Joaquim Abreu de Oliveira** (1860-1914) eram os mais extravagantes dandys do seu tempo. As suas chegadas a Lisboa eram aguardadas com intensa curiosidade, pois significavam um desfilar do que havia de mais moderno - ainda que ridículo - mais vistoso e passível de provocar o falatório geral. Ambos foram embaixadores de Portugal no estrangeiro e morreram cedo, como não poderia deixar de ser, em Paris, capital de tudo o que é chique e em voga.

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Mais de um século depois do seu desaparecimento, as loucuras de estilo que personificaram continuam a fazer parte do anedotário lisboeta, particularmente da zona do Chiado, onde amiúde se exibiam.

Eram o alvo preferido das paródias de Carnaval e consta que serviram de inspiração a personagens compostas por Eça de Queiroz.

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Faziam tudo para dar nas vistas, esbanjando dinheiro de forma ostensiva, pensando antecipadamente como iriam provocar o espanto geral, tanto pelas cores vibrantes e corte inusitado das roupas e chapéus, joias vistosas e gravatas espalhafatosas; como pelas carruagens importadas, aos comandos das quais se pavoneavam pelos locais mais movimentados e a horas certas, circulando triunfantes entre a multidão e fazendo as pessoas saírem das lojas para melhor os apreciarem.

Nas suas espirituosas caricaturas, Rafael Bordalo Pinheiro representou o Barata-Loira como o fútil e mesquinho Dâmaso Salcede, de Os Maias.

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A sua preocupação era suplantar outros cavalheiros com aspiração a taful, enquanto invejavam especialmente aqueles que, sem esforço, davam nas vistas pela beleza e elegância. Era o caso de D. Carlos, garboso jovem de cabelos loiros.

Ora, Joaquim Abreu de Oliveira também tinha cabelos claros, mas de um tom que roçava o do açafrão, para além de ser dotado de um nariz particularmente achatado e um físico algo atarracado. O conjunto, logo no Colégio Militar, fez com que passasse a ser conhecido pelo epíteto de Barata Loira, que certamente desprezaria, pois contrariava a imagem de graciosidade que almejava, mas dificilmente atingia.

Tinha pretensões a escritor e viria a obter o título de barão de Oliveira. Estava certo de ter conseguido mudar a forma de vestir dos jovens janotas do seu tempo, passando a envergar sobrecasacas, fraques airosos, calças muito justas, à inglesa, e sapatos com ponta aguçada.

O problema é que, antes dele, já Colaço se vangloriava do mesmo feito.

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Jerónimo Colaço de Magalhães (na imagem), conhecido como Condeixa, por ser filho do visconde com aquele título, formou-se em Leis, em Coimbra. Foi adido em Londres e nos Estados Unidos, secretário da legação de Portugal em Paris e até aí, na capital da elegância, conseguiu ser notado pela forma irrepreensível como se apresentava e a estroinice dos seus hábitos. Terá sido ele a inspiração para a personagem Fradique Mendes, que aparece em várias obras de Eça, com quem privou.

Destacava-se como galã audacioso e conversador de espírito, despertando paixões entre a senhoras, embora, para ele, nas palavras de Júlio Dantas, o amor fosse apenas uma espuma leve de champanhe.

Ambos faziam questão de mostrar desdém pela pequenez de Lisboa, mas enquanto Jerónimo teve sucesso no estrangeiro, o barão da Oliveira regressou rapidamente de Londres. É que - oh insuportável situação! - por aquelas bandas, por mais que se mostrasse excêntrico e singular, nem um piscar de olhos, nem o mais pálido sinal de reconhecimento recebia dos sempre imperturbáveis britânicos, que pura e simplesmente o ignoraram.

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Resignou-se, mas não ficou de braços cruzados, pois ainda se tornaria vendedor de vinhos, esteve na fundação do elitista Turf Club e a ele se deve muito do progresso que teve, na sua época, a estância termal francesa de Evian le Bains.

Morreu no hotel Ritz de Paris, localizado na praça Vendôme (na imagem), um dos expoentes máximos mundiais de luxo e ostentação, precisamente a mesma onde residia Jerónimo Colaço quando estava na cidade-luz, onde também escolheu fechar os olhos.

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À margem

Numa zona tão bem frequentada como era o Chiado (na imagem anterior), destacavam-se mais os que se apresentavam maltrapilhos, não propriamente por serem indigentes – que também os havia – mas por não darem qualquer importância ao que trajavam, como o pai da literatura policial portuguesa, Francisco Leite Bastos, ou o “Ferraz das Caveiras”. Entre as mulheres, também havia muito quem desse nas vistas e as noites de ópera no São Carlos, por exemplo, eram verdadeiras passagens de modelos.

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Algumas atraiam as atenções por outros motivos. Era o caso de Carolina Amália (1833-1887) e Josefina Adelaide (1841-1907) Brandi Guido (na imagem), que a Lisboa de finais do século XIX conhecia como “manas perliquitetes”***. Espantavam pela indumentária exagerada, demasiadamente elaborada e até estapafúrdia.

Meninas de boas famílias da colónia italiana em Lisboa – o pai era um abastado e respeitado comerciante – andavam usualmente vestidas de forma semelhante, calcorreando a zona do Rato, São Roque, Baixa e Chiado, sempre no mesmo trajeto, observando avidamente os rapazes casadoiros, com quem até tentavam meter conversa.

O tempo foi passando, ficaram solteiras e pobres, presas naquele seu mundo, obcecadas por encontrar o amor, que nunca apareceu. Se antes lhes achavam graça, então caíram em desgraça, passaram a ser alvo da chacota dos transeuntes, que as apupavam e ridicularizavam.

História semelhante teve Maria Joana, conhecida na Lisboa de meados do século XIX pela alcunha de “Casamenteira”, que também morreu miserável, desamparada e louca.

Mas essa, apesar de nunca ter sido rica, lá conseguiu casar uma vez.

Mas isso é outra história...

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*Jerónimo Colaço de Magalhães da Gama Moniz Velasco Sarmento Alarcão Bulhões de Sande Mexia Salema

**Joaquim da Rocha Abreu e Oliveira, 1º barão de Oliveira

***Perliquitete:

1. [Informal, Depreciativo]  Que se veste com esmero. = CATITA, LIRÓ

2.[Informal, Depreciativo] Que é afectado ou vaidoso.

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Fontes

Mário Costa, O Chiado pitoresco e elegante, Lisboa, 1965, Município de Lisboa.

Hemeroteca Digital de Lisboa

Eduardo de Noronha, Revista Municipal de Lisboa, nº46, 3º trimestre, 1950, Publicação Cultural da Câmara Municipal de Lisboa.

 

Illustração Portuguesa, nº346, 07.10.1912

Biblioteca Nacional em Linha

www.purl.pt

A Revolução de Setembro, 29.11.1862

 

Arquivo da Universidade de Coimbra, Jerónimo Colaço de Magalhães Moniz Velasques Sarmento, PT/AUC/ELU/UC-AUC/B/001-001/S/004206.

Atas Do V Colóquio Internacional - A Casa Senhorial: Anatomia de Interiores, Fafe, 2019, Câmara Municipal de Fafe.

 

Secretaria-Geral da Economia (sgeconomia.gov.pt)

 

Jerónimo Colaço de Magalhães (1844-1884) – Memorial Find a Grave

 

Joaquim da Rocha Abreu e Oliveira, 1º barão de Oliveira, * 1860 | Geneall.net

 

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Manas Perliquitetes

perliquitete - Dicionário Online Priberam de Português

Joaquim da Rocha Abreu e Oliveira, 1º barão de Oliveira, * 1860 | Geneall.net

Jerónimo Colaço de Magalhães, * 1844 | Geneall.net

 

Imagens

Revista Municipal de Lisboa, nº46, 3º trimestre, 1950, Publicação Cultural da Câmara Municipal de Lisboa.

Illustração Portuguesa, nº346, 07.10.1912

 

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Manas Perliquitetes, Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000175

Chiado, Eduardo Portugal sobre gravura publicada in Universo Pittoresco, vol III, 1843-44, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001680.

(354) Pinterest

Dandys 1830 - Dândi – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

A Inspiração Dândi | IT-Lab (wordpress.com)

 

Histórias do Visconde de Montalvo

Jazigo de V. de Montalvo- Cemitério de Setúbal -

 

Quando o pai adoeceu, António de Sousa Brito Maldonado Bandeira acabaria por se fixar em Montalvo, administrando a herdade, à qual a família ainda está ligada e que hoje dá nome a um condomínio turístico. Embora mais conhecido em Setúbal, o visconde tinha outras propriedades em Alcácer e até participou numa exposição universal, com sal das marinhas que detinha neste concelho.

 

A dois passos do jazigo abandonado do Visconde de Alcácer do Sal, no cemitério de Nossa Senhora da Piedade, em Setúbal, está o sepulcro de outro abastado proprietário do mesmo concelho, António de Sousa Brito Maldonado Bandeira, também ele visconde, mas de Montalvo. Este sepulcro é bem mais vistoso e, ao contrário do primeiro, foi reclamado por descendentes vivos, que assumiram os seus direitos de proprietários.

Ambos os viscondes tinham ligações às duas cidades do Sado, mas o de Montalvo, era, no fim da vida - mais conhecido como figura da sociedade setubalense. Nasceu em Évora, em 1841, e, a dada altura, a doença do pai obrigou-o a abandonar os estudos e fixar residência nas suas propriedades da antiga freguesia de São Pedro de Montevil, a meio caminho entre Alcácer do Sal e a Comporta.

Tinha então apenas 19 anos e preparava-se para ingressar na Universidade de Coimbra, onde o progenitor se tinha formado em Direito. No ano seguinte, passaria a administrar a herdade, que já produzia arroz e para a qual havia sido obtida nova autorização de cultivo, em 1853.

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Com a morte do pai - moço fidalgo com honras de exercício no Paço – António passa a ser o representante do Morgadio dos Bandeira, com forte tradição ao serviço da coroa portuguesa. De facto, Eli Juzarte é o mais antigo antepassado que se lhe conhece em Portugal e terá vindo para o nosso País ao serviço de D. Filipa de Lencastre, a princesa inglesa que, casando com D. João I, deu origem à ínclita geração, nos longínquos séculos XIV e XV.

O novo apelido foi ganho no tempo de D. Afonso V, quando Gonçalo Pires (na imagem), durante a Batalha do Toro (1476), resgata um estandarte português que havia sido roubado por um castelhano, passando a ser o primeiro a utilizar o título de “Bandeira”.

António de Sousa Brito Maldonado Bandeira seria também Visconde de Montalvo, a partir de 1888, por mercê de D. Luís I.

No concelho de Alcácer do Sal teria pelo menos mais uma propriedade, uma salina no sítio de Espim do Norte, mas desconheço se foi esta a origem do sal que enviou, em representação de Portugal, à primeira exposição universal a decorrer em solo americano, em 1876.

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Em Setúbal, residia na antiga praça do sapal – hoje praça de Bocage – onde o palacete ainda ostenta o brasão de armas da família. Também lhe pertencia, nomeadamente, um outro palacete, recentemente à venda, na avenida 5 de outubro, a dois passos da Praça do Quebedo.

 

 

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Destacou-se como benemérito, contribuindo para a construção de um novo Hospital da Santa Casa da Misericórdia local, mas nem todos gostavam dele. Na verdade, nas memórias de José Soveral Rodrigues – onde existem diversas imprecisões - o Visconde de Montalvo era apontado como “bruto” e “boçal”, ridicularizando-se o facto de ter casado com uma mulher 43 anos mais velha do que ele – Ana Margarida d’Andrade e Mello - alegadamente devido aos muitos bens que esta possuía e que herdou passados quatro anos, com a morte desta.

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Refira-se, a propósito, que foi um alcacerense que figurou como testemunhas deste enlace, mais propriamente António Pedro Cardoso Morte Certa, que foi vereador na câmara municipal de Alcácer e também participou na exposição universal que se realizou em Filadelfia, mas com vinhos “muito delicados e ricos”, que até ganharam um prémio.

Diz a mesma fonte, que, por vaidade, o Visconde de Montalvo – falecido em 1910 - queria que o poeta popular setubalense, António Maria Eusébio – "O Calafate” - lhe dedicasse um poema. Tanto insistiu, que lá conseguiu, mas o resultado não foi, provavelmente, o que pretendia.

Rezava assim:

"P'ra que serve ao senhor Bandeira
Na casaca ter primor?
E p'ra que serve essa flor
Que fede mais do que cheira?
P'ra que serve essa cacheira
Feita com tanto trabalho?
E mais um "pindoricalho"
Que à cinta fica pendente
A bater constantemente
Na cabeça do c...
Sim!!... P'ra que serve ao senhor Bandeira?!..."



À margem

A herdade de Montalvo estará nas mãos da família Bandeira há 500 anos, embora a área que detêm tenha vindo a diminuir com o tempo, com vendas e doações. Foi Rogélio Pires dos Santos Bandeira, trineto do visconde, quem custeou a reconstrução da igreja de S. Pedro de Montevil, em 1963, também doando terrenos para a construção de um centro de Saúde.

A igreja, cujo altar, em mármore negro de Estremoz, foi pago pelo então rendeiro de Montalvo – Custódio José Falcão Nunes – foi inaugurada em 19 abr. 1964, embora o evento tenha sido adiado várias vezes devido ao mau estado da estrada.

Em 1976, Luís Filipe dos Santos de Sousa Bandeira, mãe e irmã, descendentes do Visconde de Montalvo, doaram um terreno a desanexar da herdade, para a construção do bairro social de Montevil.

Paralelamente, Fernando Alberto Ricca de Sousa Maldonado Bandeira Ferreira, o segundo e último Visconde de Montalvo, falecido em 2002, foi um arqueólogo de renome, com vasto trabalho desenvolvido e publicado.

Curiosamente, a história dá conta de pelo menos outra família Bandeira, com antepassados menos ilustres, mas vidas aparentemente ainda mais abastadas. Jacinto Fernandes Bandeira, um modesto filho de sapateiro de Viana do Castelo, enriqueceu no tempo do Marquês de Pombal e também investiu no Litoral Alentejano. Recriou, numa pequena aldeia junto ao mar, a mesma estrutura urbana desenhada a régua e esquadro desenvolvida em Lisboa após o terramoto. Acabaria por ser agraciado com o título de Barão de Porto Covo, já no reinado de D. Maria I.

Mas isso é outra história…

 

Fontes

Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal

Fundo Local

Autorização para o cultivo de arroz em Montalvo, 1853.

Álbum de contemporâneos Illustres (cópia), fascículo 15, Lisboa, Typographia Phenix, 1888.

Jornal Voz do Sado

Coleções de 1963, 1964, 1976

 

Biblioteca Municipal de Setúbal

Gazeta Setubalense, 18.11.1888

 

Biblioteca Nacional de Portugal, e linha

www.purl.pt

Diário Illustrado, 03.03.1910

 

Arquivo Distrital de Évora

Registos Paroquiais

Évora, Santo Antão, nascimentos, PT-ADEVR-PRQEVR-EVR05-001-0031_m0324 -0325

 

Arquivo Distrital de Setúbal

Registos Paroquiais

Setúbal, São Julião, casamentos, PT-ADSTB-PRQ-PSTB03-002-00012_m0361 – 0363.

Setúbal, São Julião, óbitos, PT-ADSTB-PRQ-PSTB03-003-00053_m0008

Setúbal, São Julião, legitimações, PT-ADSTB-PRQ-PSTB03-004-00007_m0004

 

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, inventário de extinção do convento de Santa Joana de Lisboa, PT-TT-MF-DGFP-E-002-00078.

 

http://memoriarecenteeantiga.blogspot.com/2006/12/notcias-do-setubalense-1949.html

citando: Nota sobre o Visconde de Mantalvo, nas Memórias do Dr.Soveral Rodrigues. Directório "Isolados" ,Arquivo "Dr.Soveral", Pág.11) :

 

 

Fernando Teigão dos Santos e Pedro Costa, A Lisboa Subterrânea do Marquês de Pombal – Em busca dos segredos das águas livres, Lisboa, 2018, Caleidoscópio – Edições e Artes Gráficas, Lda.

Jacinto Fernandes Bandeira, 1º barão de Porto Covo da Bandeira, * 1745 | Geneall.net

Barão de Porto Covo da Bandeira – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Eli Juzarte (ou Lizarte) | Geneall.net

Gonçalo Pires Juzarte ou Gonçalo Pires Bandeira | Geneall.net

Costados de António de Sousa Brito Maldonado Bandeira, 1º visconde de Montalvo, * 1841 | Geneall.net

 

 

Imagens

Cemitério de Nª Sª da Piedade, Setúbal, fotografia de Cristiana Vargas.

Álbum de contemporâneos Illustres (cópia), fascículo 15, Lisboa, Typographia Phenix, 1888.

Viajar e descobrir: Portugal - Setúbal - Palácio do Morgado da Bandeira

Casa Nobre para reabilitar no Centro Histórico de Setúbal (kwportugal.pt)

 

www.geneall.net.pt

 

 

 

A aldeia que nasceu do fogo

 

780 Costa da Caparica Depois do incendio de 1884 d

Foi preciso um terrível incêndio para que a sociedade lisboeta tomasse consciência da pobreza em que viviam os pescadores da outra banda. Choveram subscrições e todo o tipo de iniciativas – algumas em grande estilo - para angariar bens e dinheiro. Menos de três anos depois, estavam construídas as casas de alvenaria que correspondiam às primeiras ruas do lugar que hoje conhecemos como Costa da Caparica.

 

A 21 de julho de 1884, um pavoroso incêndio destruiu dezenas de cabanas que serviam de abrigo a cerca de 150 pessoas, arrasando quase por completo aquele núcleo de pescadores que se havia fixado na zona costeira da Caparica. Não foi o primeiro sinistro a abater-se sobre a comunidade*, mas foi o único a desencadear um resultado tão positivo, muito por causa daquele homem a que todos chamavam “Costa Pinto”.

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Imediatamente, Lisboa acordou da letargia habitual dos meses de estio e tomou a peito a responsabilidade de apoiar as famílias desalojadas. Alguns jornais e instituições, como a Câmara de Almada, lançaram subscrições.

Num tom pungente, apelavam aos donativos, em especial às senhoras, pedindo que também costurassem roupas para as criancinhas, “seminuas e quase famintas”, uma vez que, com as chamas, tinham ido todos os parcos pertences daquela gente até então totalmente desconhecida da elite lisboeta. Até Rafael Bordalo Pinheiro, abandonando o seu tom mordaz, se associou à filantropia.

Jaime Artur da Costa Pinto, deputado por aquele concelho da Margem Sul, moveu vontades e conseguiu que fossem entregues barracas de campanha e outros materiais, tendo-se deslocado ao local, para ver in loco o que era necessário fazer.

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Os pedidos feitos na imprensa originaram uma onda de solidariedade. O Cardeal-Patriarca distribuiu esmolas, a empresa do Teatro da Rainha (em Belém), ofereceu metade dos lucros da primeira récita.

Alguns participantes na Exposição Agrícola, que decorria na Tapada da Ajuda, entregaram parte dos produtos – azeite e vinho, por exemplo - e, na “esplanada dos recreios”, cinco bandas militares tocaram gratuitamente para angariar fundos. Compareceram três mil pessoas!

Recolheram-se donativos em eventos públicos – o banqueiro Burnay entregou um cheque de 90 mil reis sobre o Banco de Portugal - e os entediados lisboetas das melhores famílias, que passavam a época na frescura de Sintra, decidiram organizar uma corrida de “toirinhas” à antiga portuguesa.

Foi em Seteais, exclusivamente com amadores, crianças e jovens filhos de nomes sonantes, que atuaram para casa cheia e colorida com as toiletes garridas das damas, onde não faltaram sequer o príncipe real D. Carlos e o infante D. Afonso.

À frente de tão piedoso evento estava José Maria Gonçalves Zarco da Câmara, conde da Ribeira Grande e o barão da Regaleira, Carlos Allen de Morais Palmeiro. Entre bilhetes e peditório, retiradas as despesas, obtiveram-se 760$345 reis.

Reverteram para a causa igualmente os valores obtidos com o leilão de uma bolsa de prata doada por El Rei D. Luís - arrematada por Vicente Castro Guimarães - e um livro de fotografias de Carlos Relvas.

E, a solidariedade não se ficou pelos grandes: entre tantos anónimos que contribuíram, Luís José Maria Ferreira, que vendeu pasteis durante o espetáculo, ofereceu o produto deste negócio, como o haviam feito antes o camaroteiro e restante equipa do “Recreios”, que prescindiram do pagamento pelo seu trabalho.

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Tal foi o volume, nomeadamente contributos vindos da comunidade portuguesa no Brasil, que se tornou necessária a constituíção da Associação de Beneficência da Costa da Caparica, encabeçada pelo marquês de Fronteira e Alorna, José Maria Mascarenhas, destinada a gerir todo o dinheiro e bens recolhidos para o apoio aos pescadores da Caparica.

 

Por uma vez, o ânimo do bem-fazer não esmoreceu em poucos dias, porque o já aludido deputado Jaime Artur da Costa Pinto não deixou, apesar de, provando as injustiças da política, não ter sido reeleito na legislatura seguinte. Provavelmente porque os pobres não eram eleitores…

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Em março de 1887, entregavam-se as derradeiras chaves das novas casas dos pescadores, que instituíram uma melhor vivência para aquelas pessoas. As primeiras ruas com construções em alvenaria, em pleno areal, são hoje impercetíveis, engolidas por toda a construção que se seguiu, até porque a gente do mar acabou por ser “empurrada” para outros bairros, a partir do momento em que o turismo tomou conta da sua aldeia.

 

À margem

Não é apenas o início da Costa da Caparica que o concelho de Almada “deve” a Jaime Artur da Costa Pinto, igualmente impulsionador de importantes acessibilidades, intervenções de florestação e de drenagem das áreas pantanosas que tornavam mais inóspita e insalubre a vida daquelas populações. De resto, preocupou-se e bateu-se por questões práticas que melhorassem as vidas das pessoas e as suas atividades, com destaque para a agricultura e a navegação no Tejo.

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A sua intervenção é igualmente significativa em Cascais, onde foi presidente de câmara, estando, por exemplo, ligado à melhoria do abastecimento de água, à instalação da rede de comunicação telefónica e à construção de ruas, praças e mercados.

Pode dizer-se que é o “pai” de outro importante concelho então anexado ao de Cascais, porque foi durante a sua presidência que se pediu a restauração do município de Oeiras.

Foi igualmente num dos seus mandatos em Cascais que ali recebeu o rei Chulalongkorn Rama V do Sião (atual Tailândia), figura que suscitou imensa curiosidade por cá, em parte pelas notícias que davam conta das suas dezenas de mulheres e concubinas.

Mas isso é outra história...

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Já antes aqui falei daquela que é uma das parias preferidas dos lisboetas, quando era um sonho de Cassiano Branco.

E, ainda, quando já era a realidade de milhares de banhistas.

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* Em 1840 tinham já ardido 98 cabanas e, em 1864, tinham sido 55 a desaparecer.

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Fontes

Biblioteca Nacional em linha

https://purl.pt/14328

Diário Illustrado

Edições de 22.07.1884 a 31.08.1884

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/index.htm

O Occidente, nº202, 01.08.1884

O Occidente, nº203, 11.08.1884

 

O António Maria

28.08.1884

04.09.1884

 

Almada virtual: A Costa no século XIX (almada-virtual-museum.blogspot.com)

 

Jaime Artur da Costa Pinto - Wikiwand

https://pt.wikipedia.org/wiki/Oeiras_(Portugal)

Origens - História da Ordem e da Advocacia (oa.pt)

Marquês de Fronteira – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Chulalongkorn – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)