Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Crónica policial (1) - A desgraçada Maria Inácia semeava a confusão no Alentejo

Alcácer do Sal, finais de 1911

mulher na prisao.jpeg

Em fins de 1911 e início de 1912, a ré Maria Inácia, também conhecida pela alcunha de “A Calhambana”, era uma verdadeira dor de cabeça. Constantemente embriagada, a mulher semeava a confusão, metia-se com o comum cidadão e não acatava ordens da autoridade. Era presa, solta e novamente apanhada quase dia sim, dia não, provocando enorme alvoroço e desordem também de cada vez que passava pela sobrelotada cadeia da vila de Alcácer do Sal (na imagem).

AHMALCS-CMALCS-BFS-01-01-01-143_m0002.jpg

Chegaram a duvidar que tivesse o juízo todo e até lhe fizeram testes, para aferir isso mesmo, mas não conseguiram chegar a uma conclusão, pois Maria Inácia tanto respondia corretamente às perguntas que lhe faziam e tinha uma atitude sã, como desatava num total disparate, que a todos desconsertava.

O que era certo, é que reincidia nos delitos de “ultraje à moral” por palavras e atos, “embriaguez e fuga”. Já ninguém tinha mão nela.

Não podendo ser considerada uma criminosa vulgar, encontrou então o poder judicial uma forma de a afastar desta região – Alcácer e Grândola, onde era bem conhecida - mantendo-a presa e desterrada durante tempo suficiente para que pudesse deixar o vício da bebida, do qual derivada a sua maior desgraça e perdição. A intenção, diziam, era contribuir para que se regenerasse.

Foi assim presente em audiência de polícia correcional e, a 20 de novembro de 1911, condenaram-na a seis meses de desterro em Vila Real de Santo António.

O primeiro problema foi conseguir transporte para a levar para tais paragens algarvias, porque a comarca de Alcácer do Sal não tinha verba para assegurar esse transporte e a ré era, como é fácil de imaginar, absolutamente pobre, não lhe podendo ser imputada tal despesa.

Assim, foi necessário esperar mais de uma semana até que estivessem reunidas condições para seguir viagem.

Cerca de um mês depois, o problema estava de regresso. Maria Inácia não tinha “aquecido o lugar” em Vila Real de Santo António e, sabe-se lá como, já tinha passado por Grândola, criando desassossego público. Foi capturada e novamente detida na cadeia de Alcácer, com agravamento da pena.

cela de prisao.jpeg

Colocava-se o problema de encontrar meios para, de novo, a transportar sob custódia ao Algarve e com especial urgência, porque “A Calhambana” já tinha praticado outros desacatos e cenas de violência.

Achando-se fechada, tentara até suicidar-se ferindo-se com uma navalha que se desconhece como lhe chegou às mãos.

Ainda assim, foram precisos mais de dois meses para que Maria Inácia ganhasse nova ordem de marcha para o desterro algarvio.

Desconhece-se quais foram os desencontros e agruras de uma vida certamente triste, que trouxeram esta mulher a uma tal situação de desespero, desamparo e degradação - física, mental e social. Também não se sabe, a partir de 10 de abril de 1912, qual o destino desta infeliz, porque cessam as informações nos livros oficiais da Comarca de Alcácer do Sal sobre ela e, como se sabe, deste tipo de personagens, sem rei nem roque - especialmente quando se trata de mulheres - raramente reza a história.

 

 

Fontes

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

Fundo Comarca

Livro de registo da correspondência expedida

PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/DELPROCURADORIA/01/001

 

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

Cadeia comarcã

Fundo Baltasar Flávio da Silva

PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/01/143

Imagens 1 e 3, criadas por inteligência artificial em https://stablediffusionweb.com/#demo

 

 

 

 

Foi um ar que lhes deu, nas Festas de Lisboa

festas de lisboa A.GIF

Em 1913, as Festas da Cidade de Lisboa foram tingidas com o sangue de quatro mortes, duas das quais durante o desfile do 10 de junho. Nada que afetasse o brilhantismo das comemorações naqueles tempos difíceis em que a morte violenta estava ao virar de cada esquina e, por isso, era encarada com resignada normalidade.

 

Há exatamente 110 anos, foram quatro as mortes trágicas que marcaram as Festas de Lisboa. Duas pessoas caíram dos ares e outras duas foram pelos ares…confuso? Imagine a confusão que então se viveu.

Mas, apesar das manifestações públicas de pesar, as comemorações continuaram com vivacidade e alguma indiferença, naqueles tempos conturbados.

o aviao de manio antes de cair.GIF

Demonstrando-se moderna e seguidora das mais recentes tendências, a cidade assistiu, nesse longínquo ano de 1913, a um inédito “Certâmen de Aviação”, organizado de forma “leve” no que às questões de segurança diz respeito.

O resultado foi a morte de dois dos quatro aviadores convidados.

O único piloto português participante, Luís de Noronha, não chegaria a levantar voo no festival, quedando-se pelos treinos, que lhe foram fatais.

O hidroplano Voisin – comprado por subscrição pública promovida pelo jornal O Século e oferecido ao Governo – despenhou-se no Tejo, perto do Seixal. Tinha acabado de ser estreado.

aviao de manio depois de cair.GIF

Caiu praticamente na vertical de uma altura de 30 metros e o resultado foi um forte embate no qual o aeronauta fraturou um braço e sofreu lesões internas – uma congestão pulmonar - que acabariam por o matar.

A 13 de junho, o homem que o substituiu teve igual fim, na zona da Portela de Sacavém. Em pleno voo, o piloto italiano Manio foi vítima de ventos cruzados que já haviam ameaçado lançá-lo sobre o público.

o corpo mutilado do aviador no chao.GIF

Projetado contra a hélice, que o mutilou horrivelmente, tombou depois desamparado de uma altitude de 300 metros, embatendo no chão, tal como o avião – um Blériot – que ficou completamente destruído.

Já não chegou a fazer os voos em espiral para os quais estava inscrito a concurso.

Os dois acidentes causaram alguma perplexidade, mas, enquanto algumas vozes clamavam pelo fim das experiências aéreas, outras defendiam que, se já havia mortos na aviação em Portugal, era porque o País estava a ficar civilizado!

0003_M (1).jpg

Tão civilizado que, três dias antes, havia assistido a um atentado à bomba que matou duas pessoas e fez numerosos feridos.

0004_M (1).jpg

Foi durante o Cortejo Camoniano de 10 de junho. Estava o desfile a passar na rua do Carmo, prenhe de gente que queria ver o espetáculo, quando soa um estrépito inexplicável.

Tudo aconteceu junto ao Hotel Universo, no preciso momento em que alguns operários tentaram forçar a sua entrada no grupo que desfilava, transportando corajosamente uma bandeira negra onde se lia: “Pão ou trabalho”.

curativos no local.GIF

Pensou-se em foguetório, comum em dia de festa, mas depressa se percebeu que algo estava errado, pois algumas pessoas estavam já caídas, ouviam-se gritos aflitivos, o sangue escorria pelo pavimento e as paredes próximas apresentavam-se crivadas de estilhaços.

Resultado: um morto no local, outro que viria a falecer no hospital e um elevado número de feridos, atingidos pelos fragmentos, que se espalharam descontroladamente.

detenção de um sindicalista.GIF

No local, houve logo curativos e detenções. A multidão em fúria acabaria também por destruir imediatamente um quiosque e instalações associadas aos sindicatos, que culparam pelo atentado.

Foi, sem dúvida, um 10 de junho incomum e funesto, mas aqueles eram tempos em que o povo estava mais preocupado com o que punha na mesa, face à escassez de bens, nomeadamente pão de qualidade. Eram tempos em que os tumultos e os ataques à bomba eram frequentes.

transporte de um dos feridos.GIF

A morte estava ao virar da esquina e, por isso, as festas não pararam e, apesar de alguma consternação passageira, até se chegou a afirmar que aquele “triste incidente” perturbou as comemorações lisboetas apenas por “uns momentos”, sem os quais, “as festas da cidade só teriam uma nota: a do brilhantismo”.

iluminacao noturna no rossio.GIF

De resto, o ocorrido serviu até para os políticos fazerem o que fazem melhor: mostrar-se e demonstrar empatia e compreensão pelos males do povo, ainda que por breves instantes, durante as visitas ao hospital, onde convalesciam os feridos (na imagem, o Presidente da República, Manuel de Arriaga, e o chefe do Governo, Afonso Costa).

visita a um ferido da explosao.GIF

À margem

A carestia de vida; a reforma no ensino; os julgamentos dos supostos conspiradores monárquicos – alguns ilustres, como Júlia Brito e Cunha - as questões políticas do momento; os movimentos sindicais, greves e manifestações... para além dos numerosos e diversificados divertimentos integrados nas Festas da Cidade. Estes eram alguns dos temas mais debatidos nos jornais durante aquele mês de junho de 1913.

arco de santo andre.jpg

Um outro assunto, mais erudito, mobilizava a opinião pública esclarecida. O destino a dar ao Arco de Santo André, que Lisboa percebeu então que era propriedade privada e tinha sido vendido, estando ameaçado de demolição.

Tratava-se de uma das 37 portas da antiga Cerca Fernandina, situada à entrada da Calçada da Graça e, sinal dos tempos, em inícios do século XX, transformara-se num empecilho à cabal circulação dos elétricos, acabando mesmo por ir abaixo naquele início de verão.

É verdade!... Ainda houve aquele caso do jovem flautista que matou a namorada adolescente a tiro e se tentou suicidar de seguida, lá para os lados de Beirolas. Alegou que ambos tinham acordado o suicídio, mas os médicos conseguiram salvá-lo, habilmente retirando a bala alojada no crânio.

Mas isso é outra história…

.......................

Já aqui antes falei destes tempos conturbados, e de um certo prédio de conspiradores e bombistas, bem como de um julgamento de senhoras célebres, suspeitas de ajudarem os revoltosos.

 

Fontes

Henrique Henriques Mateus, Os primórdios da aviação em Portugal, in Viagens Aeronáuticas dos Portugueses, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997.

Fundação Mário Soares

www.casacomum.pt

Jornal a Capital

01-15.06.1913

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Ilustração Portuguesa [1903-1993] (cm-lisboa.pt)

Illustração Portugueza

16.06.1913

23.06.1913

 

Monumentos

 

Imagens

Illustração Portugueza

Joshua Benoliel

16.06.1913

23.06.1913

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002506

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002516

José Artur Leitão Barcia

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000045

Pela imprensa (23): o agarra maridos

tokalon 2.JPG

Publicidade arrojada, esta da Tokalon, temerária até. Diria, mesmo, que é preciso, para além de coragem, uma grande lata para prometer casamentos em troca da aquisição de um simples creme, que tem de ter, no mínimo, propriedades mágicas para assegurar que, quem o usa, arranja certamente marido.

tokalon 1.JPG

O anúncio vai mais longe ainda. Informa que milhares de mulheres de 40 e 50 anos recuperaram a frescura da adolescência e, com isso, fisgaram moços casadoiros de boas famílias que com elas casaram, quando as ditas já haviam perdido todas as esperanças de encontrar uma cara-metade.

A razão de tamanho milagre é o biocel, uma substância desenvolvida pelo enigmático Dr. Stejkal, da Universidade de Viena. Obtido – sabe-se lá como e até tenho receio de imaginar – de animais novos cuidadosamente selecionados, este é um alimento vital para as células.

tokalon 3.JPG

Tão vital que, aparentemente, tem a capacidade de as fazer rejuvenescer, suprimindo as rugas das faces de senhoras até com 60 e 70 anos de idade. Esta substância revolucionária só pode ser encontrada no creme cor-de-rosa da Tokalon, o tal que desencanta maridos.

Para operar tais milagres, o produto deve ser aplicado à noite e conjugado com o uso do creme diurno, branco, da mesma marca.

E, preparem-se, porque, em apenas dez dias, qualquer mulher ficará muitos anos mais nova e, em três semanas, ficará com uma “tez fascinadora de rapariga, à qual poucos homens conseguirão resistir”. Garantem mesmo que serão 10 mil as venturosas senhoras que encontrarão o seu par com este método infalível.

tokalon3.GIF

Desconheço se estes números estonteantes foram atingidos, mas o que se pode avançar, publicidade duvidosa à parte, é que o creme deve ser mesmo bom, porque existe até hoje, quase cem anos depois em tempos bem diferentes nos quais, atrevo-me a dizer, as mulheres de meia-idade – entre as quais me incluo – não estão assim tão desesperadas para casar.

Estes anúncios eram comuns nos anos 30 do século XX, mas a Tokalon, marca de origem suíça, foi criada em 1907. Em Portugal, tinha um depósito próprio, na rua da Assunção, nº88, em plena baixa de Lisboa, entre as ruas Áurea e da Prata. Desde 1948, é representada no nosso País pela Jalber, uma empresa familiar com sede na rua Gomes Freire, 96, também em Lisboa. Dois casos sérios de longevidade na indústria da cosmética!

 

Fontes

Fundação Mário Soares

Cc | Diário de Lisboa | 1921-1990 (casacomum.org)

Diário de Lisboa

 

JALBER

(20+) Tokalon Portugal | Facebook