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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O enigma da alfarroba

 

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A costa oeste tem sido, ao longo dos séculos, uma verdadeira armadilha para toda a espécie de navios. A baía natural existente entre Peniche e o Baleal parece abocanhar as embarcações, como fez um dia a uma carregadinha de um fruto atualmente muito valorizado. O naufrágio terá impressionado tanto as gentes da terra, que para sempre deram àquela enseada o nome de Cova da Alfarroba.

naufragio do san pedro de alcantara.JPG

O mais conhecido afundamento ocorrido na região terá sido o San Pedro de Alcântara, que ali findou a sua longa viagem de dois anos, desde o Peru, em 2 de fevereiro de 1786. Levou consigo 128 dos 400 viajantes..

Inicialmente conseguiu-se recuperar quase toda a valiosa carga - que incluía lingotes de cobre, moedas de ouro e prata, cerâmicas e coleções botânicas - mas grande parte desta e, de resto, 92 dos sobreviventes, estavam mesmo destinados a perecer, pois voltaram a encontrar o mar escassos três meses após a primeira tormenta, com o naufrágio do El Vencejo, que tinha acorrido de propósito para os transportar.

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Ao longo dos tempos, no entanto, muitos lhe sucederam…

Como o Nuestra Señora de Begoña, logo no ano seguinte ou o SS Roumania, cerca de um século depois.

Este persistiu na memória coletiva pela tragédia que se seguiu ao encalhamento e que se traduziu na morte de 115 das 122 almas a bordo, o que “encheu de terror, de consternação e luto uma das nossas vilegiaturas mais alegres e divertidas: as Caldas da Raínha”. Tudo por causa dos rochedos do Gronho, entre Peniche e a Foz do Arelho, onde o paquete de despedaçou.

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E a lista de navios, vidas humanas e cargas perdidas continua: produtos obtidos na natureza, como o peixe, que a escuna canadiana Bluenose levava, quando naufragou, em 1919; bens agrícolas resultantes de árduas culturas, como o arroz, que a Canoa Maria transportava, de Setúbal, em 1876; algodão, cacau e café, por exemplo, que compunham a carga trazida do Brasil pelo Elisabeth, em 1821. E trigo, chá, tabaco, sal, bem como aveia e fava miúda, estas a bordo, nomeadamente, do Saint François, que seguia para Marselha, mas tragicamente ficou-se por Peniche, em 1849.

Minerais, como minério de ferro ou o carvão de pedra que, em 1871 desapareceu no fundo do mar com o Tiglia Alexandre e, ainda, produtos sofisticados, como a manteiga, transportada por um bergantim inglês proveniente de Cork, que ali terminou a viagem, em 1788. Ou, muito antes, fardos de pano, chapéus, faianças e vidros que se afundaram com o Notre Dame du Bom Secours, em 1699.

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São apenas alguns exemplos dos desaires ocorridos naquela costa. Uns por incúria, desconhecimento dos fundos, outros não resistindo a tempestades, ou iludidos por densos nevoeiros, outros ainda abalroados ou deliberadamente encalhados. Em todos, o mesmo drama: as vidas que assim se interrompem.

Há até navios que se afundaram precisamente no mesmo local já “ocupado” por outros, juntando no fundo do oceano despojos de épocas bem diferentes, caso do João Diogo, que foi ao fundo em 1963, bem por cima do San Pedro de Alcântara, vertendo sobre este o minério de ferro que carregava.

Quanto à alfarroba, deve ter-se espalhado pelo areal, à mercê das gentes do bairro do Fialho, sempre à coca, para garantir o seu quinhão dos tesouros que as ondas assim oferecem.

Como naquela vez em que a areia se tingiu de encarnado-vivo, pejada de tomates que deram à costa, provenientes de um cargueiro que ali encalhou. Houve quem levasse caixas que, empilhadas, chegavam ao teto das acanhadas habitações. Ou na ocasião em que o arrastão Vaz Bela “forneceu” peixe a toda a vizinhança.

Seguiam, afinal, o exemplo de tantas outras gentes da “borda d’água”, que desde sempre assim operavam – e continuam a operar - quando ocorria um infortúnio no mar. 

O registo do naufrágio que deu nome à bela praia - entre a praia de Peniche de Cima e a praia da Baía - no entanto, foi mais difícil de encontrar. Nem nos livros, nem na memória de quem viveu uma vida nas casas já desaparecidas do velho bairro de conserveiros - a dois passos do areal - nem falando com interessados na história local ou sequer junto das entidades oficiais, se encontrou uma pista, uma data, algo que pudesse fazer luz sobre o mistério.

Só a memória da alfarroba persiste, no topónimo. Até um dia.

 

À margem

É muito provável que a alfarroba que deu à costa em Peniche fosse proveniente do Algarve. Foi precisamente dessa região do sul de Portugal que vieram as pessoas que, no início dos anos 20, deram vida ao bairro do Fialho, construído especialmente para as acolher. Eram sobretudo mulheres – muitas com seus maridos que se transformaram em pescadores de Peniche - cujo destino era pôr a funcionar a enorme fábrica que o grande empresário algarvio João Júdice Fialho ali instalara.

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Era a sétima unidade de conservas de peixe com a sua chancela e a maior de todas. Para além do bairro operário, tinha a inovação de possuir creche e sala de aleitamento, para as funcionárias com filhos pequenos, às quais, no entanto, era descontado o tempo que ali passavam.

Das mãos delicadas que afincadamente trabalhavam, saiam toneladas de sardinha enlatada em azeite, muito apreciada em Portugal e no estrangeiro, pelo que não se estranha a criação de marcas como Marie Elisabeth, Falstaff, Desirée ou Galleon, que soam a tudo, menos português.

Júdice Fialho era um empresário com interesses diversificados, que iam do tabaco, à produção de massa de pimentão e marmelada; da pesca à agricultura, tendo-se tornado num dos maiores proprietários rurais do Algarve. A sua casa, o Palácio Fialho, em Faro, começado a erguer em plena I Guerra Mundial (1915) demorou uma década a estar concluído, com todo o esplendor e luxo expectável do possuidor de tão grande império.

É no seu “Morgado da Quinta da Quarteira”, adquirido em 1929 e que era a mais extensa propriedade do Algarve, que vai depois crescer Vilamoura, após a venda que os herdeiros de Júdice Fialho fazem ao grupo financeiro de Cupertino de Miranda.

Mas isso é outra história...

 

Fontes

Jorge Martins, Câmara Municipal de Peniche

Antero Anastácio, morador no antigo bairro do Fialho, a quem agradeço a conversa e o envio do seu livro.

Portal do Arqueólogo (patrimoniocultural.pt)

Naufrágios ao largo da costa Oeste (lpn.pt)

Histórias de Peniche: Naufrágios em Peniche (historiasdepeniche.blogspot.com)

Antero Anastácio, o Meu Fialho, Gráfica Europan, Lda – Mem Martins, 2007.

Artigo publicado nos CADERNOS BARÃO DE ARÊDE  Outubro-Dezembro 2014

 

O império Júdice Fialho, Luís Miguel Pulido Garcia Cardoso de Menezes, artigo originalmente publicado nos Cadernos Barão de Arêde,  outubro-dezembro, 2014. Disponível aqui: O Império Júdice Fialho – Conservas de Portugal by Can the Can

 

Migrações paralelas em Peniche – Economia política da produção e consumo de sardinha, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa João Coimbra de Oliveira, trabalho para a obtenção do grau de mestre em Antropologia, 2010. Disponível aqui: https://run.unl.pt/bitstream/10362/5742/1/Migra%C3%A7%C3%B5es%20Paralelas%20em%20Peniche%20-%20Economia%20Pol%C3%ADtica%20da%20Produ%C3%A7.

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

O Occidente

01.11.1892

 

Imagens

Biblioteca Nacional de Portugal (em linha)

www.purl.pt

 

Planta geométrica da ilha e villa de Peniche..., João Gilot (?), 1657,

https://purl.pt/27568

 

Naufragio del navio de Guerra de S.M.C. el S. Pedro de Alcantara, sobre la Costa de Peniche..., Vicente Mariane del. ecs. . - [S.l.: s.n., entre 1786 e 1799]

 

http://id.bnportugal.gov.pt/bib/rnod/31791

 

 

Naufrágios ao largo da costa Oeste (lpn.pt)

Barco afundado – imagem manipulada

Sítio do Naufrágio do Navio San Pedro de Alcantara | CM Peniche (cm-peniche.pt)

Naufrágio do San Pedro de Alcantara, Jen Pillement, 1786.

 

Fotografias Júdice Fialho & Cª – Portimão – Fábrica S. Francisco – Conservas de Portugal by Can the Can

Fotografias Júdice Fialho & Cª – Portimão – Fábrica S. Francisco

 

O balão pouco dirigível e a tragédia da Olívia

 

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O dia estava magnífico e nada fazia prever os desaires que marcaram aquele 1 de outubro de 1905. Em Cascais festejava-se o fim das Grandes Regatas, enquanto em Lisboa se ansiava por ver elevar-se nos ares um gigantesco dirigível, que pôs todos a sonhar…por pouco tempo.

 

A expetativa era imensa. Não havia memória de, por estes lados, se ter visto erguer um exemplar daquela espécie de charuto insuflável com 18 metros de comprimento e quase metade disso de diâmetro. Iria subir a partir do novíssimo Velódromo da Palhavã, inaugurado poucos meses antes na área onde hoje se vê a praça de Espanha e que então era o local da moda para os lisboetas.

A Capital já tinha visto muitos balões, mas estes novos objetos voadores eram mais modernos e permitiam, em teoria, melhor controlar a direção a seguir, para além de terem meios próprios de propulsão, neste caso, um motor de 20 cavalos.

Os preparativos, bastante exigentes, começaram manhã cedo, tendo papel ativo o “engenheiro de aeróstatos” Adrien. Marcherand (ou Moucherand).

Só às duas da tarde se abriram as portas para deixar entrar a muita concorrência, que aguardava por um vislumbre da fantasia de voar. A ansiedade era aguçada pela espera, uma vez que o espetáculo chegou a estar previsto para a semana anterior, sendo adiado devido à chuva.

Desta vez, o dia estava esplendoroso!

Três horas e 15 minutos depois, ao som da música que se tocava nos dois coretos, o dirigível do senhor Felix Hansen fez a sua ascensão, deixando todos de nariz no ar, seguindo avidamente os seus movimentos.

A ilusão foi efémera.

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Em pouco tempo, seguiu para sul, empurrado pelo vento. Inesperadamente, com uma guinada funesta, caiu no Tejo, quase em frente à zona de Santos.

Salvou-se ileso o aeronauta, que golpeava desesperadamente a enorme barriga voadora para a esvaziar e não ser arrastado para mais longe.

Embora encharcado e de orgulho ferido, foi resgatado pelos botes dos arrais José Rodrigues e João Durão, que ali passavam e se apressaram a socorrer o ocupante do afinal, pouco dirigível balão.

Foi o último voo do imponente aeróstato, que custara 2.500 francos, mas ficou inutilizado após a experiência lisboeta.

O ocupante, no entanto, teve mais sorte do que os homens que viajavam na chalupa Olívia: foi abalroada pelo Markgrat, nesse mesmo movimentado dia 1 de outubro de 1905.

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Já de noite, perto de Monte Estoril, o vapor alemão não viu a ténue luz de gás acetileno da proa, a única que pequena embarcação trazia...

Manuel Secundino de Medina, comerciante; José Mateus, espingardeiro do guarda municipal, António de Portugal e Andrade Kuchembuck Villar, alferes da mesma corporação; Manuel Couto, arrais, e o filho deste, José, regressavam de Cascais, onde tinham assistido às grandes regatas. (na imagem, a “Olívia” antes do naufrágio).

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Ninguém os socorreu e desapareceram nas águas.

Escapou com vida apenas José Mateus Ferreira, resgatado do mar pelo vapor Colombo. Estava já perto do Cabo Espichel, para onde havia sido levado pelas correntes marítimas, agarrado com unhas e dentes ao mastro da chalupa, ainda tristemente engalanado com as cores da festa a que assistira. Foi o que lhe valeu.

 

À margem

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O Velódromo da Palhavã foi inaugurado em 14 de maio de 1905, no espaço deixado vago pelo Jardim Zoológico e de Aclimação de Lisboa, que se transferira para a Quinta das Amoreiras, onde ainda se situa.

Representava a modernidade e a chegada de novos hábitos à capital portuguesa. Tinha uma pista revestida a cimento, com um perímetro de 333,33 metros, com curvas desenhadas para permitir a estonteante velocidade de 80 km/h, em bicicleta!

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Tinha uma tribuna real, coretos, palanques, camarotes e bancadas - onde também se assistia em pé, mas em plano inclinado, para que a visibilidade fosse garantida a todos - para além de um restaurante com terraço de onde igualmente se presenciava a atividade desportiva em curso.

Surgiu da iniciativa privada de José Eduardo d’Abreu Loureiro, Fernando Belard da Fonseca e Frederico Carlos Rego e, durante os cerca de 20 anos de atividade, foi um local onde a sociedade endinheirada se reunia, para ver, mas também para participar em provas de hipismo, ciclismo, motos, automobilismo e, como já se viu, ascensões de balões, umas mais bem-sucedidas do que outras.

D. Carlos, ele próprio um entusiasta da velocipedia, teve até aulas, com um professor muito especial.

Mas isso é outra história…

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Já qui antes falei do aeronauta português que é um heroi em Cuba. Esse desapareceu nos ares.

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Fontes

Hemeroteca Municipal de Lisboa

Diário Illustrado, 24.09.1905; 01.10.1905; 02.10.1905; 03.10.1905; 13.10.1905.

llustração Portugueza, 09.10.1905

O Occidente, 30.07.1905

 

Restos de Colecção: Velódromo da Palhavã (restosdecoleccao.blogspot.com)

 

Imagens

llustração Portugueza, 09.10.1905

O Occidente, 30.07.1905

 

 

 

A empreendedora família Rodeia

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Num concelho em que a terra estava repartida apenas por um pequeno punhado de homens e à maioria esmagadora dos restantes restava-lhes ser assalariados dos primeiros ou comerciantes. Os Rodeia destacaram-se como operários, uma classe da qual pouco reza a história.

Ao primeiro dia do mês de outubro de 1911, praticamente um ano após a implantação da República, é fundado em Alcácer do Sal um novo jornal, que se anuncia como quinzenário da classe trabalhadora. Efetivamente, O Rude – assim se denominava – tinha ao leme um grupo de operários, unidos pelo mesmo sobrenome. Benjamim Afonso, António José, João José e Augusto José Rodeia repartiam entre si os cargos de diretor, secretário de direção, editor e administrador.

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Eram também proprietários da publicação e, no primeiro número, logo fizeram questão de explicar ao que vinham. O jornal destinava-se a contribuir para a divulgação das doutrinas socialistas.

Os Rodeia, aliás, declaram-se seguidores das ideias de Marx e Engels, propondo abrir os olhos dos seus leitores para essa nova realidade ideológica.

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Apesar do cuidado com que foi redigido o texto, asseguram que a linguagem a usar no jornal será desprovida de “elevações de frase” ou “ornamentos”, adotando um estilo simples e até rude – daí o título escolhido – no qual prometem dizer tudo o que pensam e sentem, “com a sinceridade de crente e a precisão da verdade”.

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Os Rodeia, como se pode perceber, não eram uns operários banais. Numa época em que a esmagadora maioria da população de Alcácer era analfabeta, eles não só sabiam ler e escrever, como o faziam com correção.

Pelos anúncios publicados no próprio jornal, ficamos a saber que estão estabelecidos por contra própria.

 

Augusto José Rodeia, fornecia caixões funerários, com preços que variavam entre os 4$000 e os 18$000 reis, para além de vender coroas de flores; cortar e colocar vidros.

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A sua loja situava-se na calçada 31 de janeiro, onde igualmente João José Rodeia tinha casa aberta, mais propriamente uma oficina de carros e obra branca.

Benjamim Afonso Rodeia era carpinteiro de construção civil, mas também o iremos encontrar na política local. Em 1908, fez parte da primeira lista de elementos republicanos eleita para o executivo da Junta de Paróquia de Santiago, afirmando-se socialista. Foi secretário da mesma Junta até 1919, altura em que foi substituído por João Afonso Rodeia, que ocupou o cargo até 1941. Ambos eram, assim, responsáveis pela redação da maior parte dos documentos emanados daquela entidade, incluindo atas.

Benjamim fez também parte da Associação de Classe dos Trabalhadores Alcacerenses e foi presidente da Assembleia Geral da Associação Alcacerense de Socorros Mútuos.

É este Benjamim Afonso Rodeia, carpinteiro de construção civil, que vemos à direita na fotografia principal, captada muito provavelmente na década de 40 do século XX.

Trata-se de uma reunião familiar em que se comemorava o seu aniversário, a 28 de maio. À mesa, do lado oposto, está o filho a quem deu o mesmo nome e transmitiu muito do conhecimento que o tornou, talvez, o principal projetista e construtor de Alcácer, embora tivesse apenas concluído a 4ª classe.

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Benjamim Afonso Rodeia Júnior, na mesa praticamente escondido (aqui com a mulher, já nos anos 60), faz jus à sua postura sempre discreta e humilde.

Era, em final da vida, um dos principais proprietários urbanos da então vila e desenhou dezenas de casas, muitas das quais ainda existem.

O jornal Rude, foi mais efémero. Durou apenas até fevereiro de 1912, mas nos nove números publicados traça-se um retrato bem vivo da classe laboriosa alcacerense daquela época de grandes mudanças sociais, denunciam-se abusos de alguns grandes lavradores, critica-se a carestia dos géneros alimentícios e faz-se uma viagem por aquilo que vai acontecendo de mais relevante no concelho.

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À margem

Benjamim Afonso Rodeia Júnior casou com Justina Lúcia Serra, o par ideal, que ombreava com o marido até nas tarefas mais pesadas enfrentadas em início de vida em comum. Foram cinco anos sem que lhes surgisse o primeiro descendente, e que dedicaram ao trabalho.

Coadjuvados por mais uns pares de braços aos quais pagavam, carregando, à força de carroça, água do poço velho e materiais, construíram as 12 casas que compõem o núcleo original do Bairro de São Francisco – junto ao “Convento dos Frades”.

“Quando eu morrer, hão de ouvir dizer que o Benjamim fez casas para muita gente morar”, costumava dizer. E falava a sério, embora não se tenha limitado a construir habitação.

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São obra sua a chaminé da antiga sociedade de lavradores, no cabo de São Pedro - que faz parte da imagem do casario alcacerense - e a chaminé da Torrinha; o edifício na zona dos Telheiros onde está instalada a Funerária Valente e o segundo andar da sede da Sociedade Filarmónica Amizade Visconde de Alcácer (Calceteira), erigido numa época em que foi presidente da coletividade e pôs toda a agente a trabalhar a seu lado, congregando forças e vontades. E muitos outros, para além de ter desenhado inúmeros edifícios depois construídos pelos próprios donos.

Numa época em que arquitetos e engenheiros não abundavam em Alcácer, Benjamim fazia projetos encomendados por particulares e instituições. E construía também fora da vila, nomeadamente em Montalvo e na Comporta.

Por vezes, regressava de uma entrega sem dinheiro, mas com galinhas e outros géneros que serviam de pagamento dos seus serviços. Sempre bem-disposto, diz quem com ele privou durante décadas, sempre simples e de portas abertas para receber, pois quem entrava na sua casa nunca ficava sem comer. 

E dona Justina colaborava em tudo com o mesmo empenho. Autodidata como o marido, embora também com diminuta instrução, lia e escrevia como uma mestra.

Benjamim Afonso Rodeia Júnior e o irmão, João, músico na Calceteira, eram pessoas respeitadas na terra. Nos anos 50 e 60, Benjamim ainda arranjava tempo para ser presidente da mesa de eleição da Junta de Freguesia de Santiago e fazer parte do Conselho Municipal, órgão com competência para aprovar decisões camarárias de maior importância.

Outros Rodeia tiveram o seu papel na história recente de Alcácer, nomeadamente no movimento associativo ou como vereadores na Câmara Municipal. São os casos, respetivamente, de João Afonso Rodeia – presidente da Calceteira - Augusto José Rodeia, assistente do primeiro presidente republicano do município alcacerense e João José Rodeia que, meio século antes, fazia parte do executivo da Câmara Municipal de Alcácer do Sal que, em 1852 tomou a difícil decisão de cortar nos salários dos funcionários para pagar as muitas dívidas acumuladas.

Mas isso é outra história…

 

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Nota: Benjamim Afonso Rodeia é o quinto a contar da direita, ao lado do filho João. Benjamim Afonso júnior é o sexto da esquerda. Nas imagens individuais, por esta ordem, Benjamim Afonso, António José, João Joaquim e João José Rodeia.

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Fontes

Conversa com Rosinda Paulo, que trabalhou décadas para a família Rodeia.

Informação recolhida por Maria Antónia Lázaro.

Agradeço a ambas a enorme generosidade.

 

Aquivo Municipal de Alcácer do Sal

Coleção Jornal O Rude

PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/02/01/001

Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal

Coleção Jornal Pedro Nunes

 

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

Fotografia de Família

Fundo Baltasar Flávio

PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/02/01/020/005

Marginal ribeirinha

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/02/01/0076

Chaminé

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/10325

 

Arquivo particular

Benjamim Afonso Rodeia júnior e Justina Serra Rodeia nos anos 60

 

Restantes imagens

Captadas no Cemitério Municipal de Alcácer do Sal pela autora.

Instantâneos (105): um astronauta português na lua

 

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Se pensa que a primeira aterragem na lua de uma nave tripulada se deu em 1969, com a norte-americana Apollo 11, então está enganado. Catorze anos antes, já o heroico astronauta português Rangel Gama, aos comandos da A-Z1, tinha cumprido esse feito histórico para a humanidade, pagando a audácia com a própria vida. A história é contada numa reportagem radiofónica que representou o nosso País no conceituado Prémio Itália.

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A “nossa” nave descolou da Estação Experimental de Foguetões, instalada numa área restrita dos areais da Costa da Caparica. Foi para ali que convergiram as atenções de todo o mundo, com a operação a ser acompanhada por rádios e televisões de muitos países e com os pormenores esmiuçados por dezenas de repórteres, em vários idiomas.

“O mais arrojado e empolgante acontecimento do século” foi acompanhado à escala planetária, tendo em conta os meios existentes em 1955, e impressionou muita gente, tanto pela importância da façanha portuguesa – à altura dos Descobrimentos – como pelo fim do audacioso Coronel Gama que, depois de aterrar na lua, sem percalços, acabaria por morrer em direto quando o foguetão se afundou na cinza vulcânica de uma cratera lunar, qual navegador naufragado num oceano longínquo.

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Foi emocionante, foi dramático….e foi igualmente delirante, porque tudo não passou de uma fantasia ardilosamente idealizada e montada por atores, locutores e técnicos portugueses, para representar a Emissora Nacional - fundada duas décadas antes - no concurso italiano daquele ano.

Foram eles que criaram esta complexa obra de ficção científica, cheia de efeitos sonoros intrigantes, capaz de iludir o público incauto e, claro, de transmitir as mensagens do regime, sempre moralistas e moralizadoras do heroico e abnegado espírito lusitano.

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O programa, poeticamente intitulado “Areia e Eternidade”, ficou entre as quatro melhores produções na categoria de reportagem e a UNESCO considerou-o um trabalho “de muito interesse”, embora não tenha recebido o desejado galardão.

Acrescente-se até que, desde 1948, ano em que estreou, nenhum português obteve o Prix Itália.

A temática escolhida, no entanto, era do mais atual para a época, numa altura em que americanos e soviéticos se debatiam em experiências e tentativas para ver quem primeiro obtinha vitórias no espaço.

A gravação deste programa ocorreu no ano anterior à criação de um termo hoje muito badalado: inteligência artificial, usado pela primeira vez pelo norte-americano John McCarthy. Dois anos depois deste nosso Areia e Eternidade, a URSS pôs em órbita o satélite artificial – o Sputnik I. Levava a bordo a conhecida cadela Laika, que não sobreviveu para “contar” o que viu.

Foram, aliás, numerosos os animais embarcados em naves espaciais, sacrificados para abrir caminho a uma viagem com tripulação humana, ocorrida já em 1961, com o astronauta Iuri Gagarin.

 

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Nesta reportagem ficcionada participaram os atores Raúl de carvalho, Manuel Correia e Rogério Paulo; os locutores Hampton, Arnault, Nuno Fradique, Armando Correia, Raúl Feio e Fernando Garcia; os técnicos Brum da Silveira, Jorge Santos, Castela Esteves, Jaime Filipe, Espírito Santo, Fernando Conde e João Terremoto. A autoria foi de Pedro Moutinho e a supervisão técnica coube a Fernando Moutinho.

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As imagens usadas são meramente simbólicas

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Fontes:

www.rtp.pt

Pode aqui, ao minuto 19’14, do programa Ecos da Ribalta, de João Pereira Bastos, ouvir toda a reportagem e ainda a contextualização da mesma (16’38) .

https://www.rtp.pt/play/p3080/ecos-da-ribalta

A aqui também, no canal de Miguel Ângelo Vaquinhas, no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=B5CgPYDu9BE

 

O nascimento da Emissora Nacional - RTP Ensina

Iuri Gagarin – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

https://www.rtp.pt/programa/radio/p6623/e20230628

https://it.wikipedia.org/wiki/Prix_Italia

https://docs.google.com/spreadsheets/d/12Hh7WXGhp1pSipz84fbeuGEFSHDznf-W5Cp18oDGvNs/edit#gid=0

https://pt.wikipedia.org/wiki/Apollo_11

Ficção científica – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

TSF - texto de Carolina Rico:

Laika não foi a única. O que aconteceu aos animais enviados para o espaço? (tsf.pt)

 

Imagens

https://pt.wikipedia.org/wiki/Luna_%28foguete%29

https://www.terra.com.br/byte/ciencia/espaco/ventos-solares-formaram-a-agua-presente-na-poeira-da-superficie-lunar,bd3725adcdce3ceb8eb81c6375c51b2b911vfbok.html

https://tvi.iol.pt/noticias/tecnologia/05-06-2019/china-lanca-o-primeiro-foguetao-com-recurso-a-plataforma-movel