O enigma da alfarroba
A costa oeste tem sido, ao longo dos séculos, uma verdadeira armadilha para toda a espécie de navios. A baía natural existente entre Peniche e o Baleal parece abocanhar as embarcações, como fez um dia a uma carregadinha de um fruto atualmente muito valorizado. O naufrágio terá impressionado tanto as gentes da terra, que para sempre deram àquela enseada o nome de Cova da Alfarroba.
O mais conhecido afundamento ocorrido na região terá sido o San Pedro de Alcântara, que ali findou a sua longa viagem de dois anos, desde o Peru, em 2 de fevereiro de 1786. Levou consigo 128 dos 400 viajantes..
Inicialmente conseguiu-se recuperar quase toda a valiosa carga - que incluía lingotes de cobre, moedas de ouro e prata, cerâmicas e coleções botânicas - mas grande parte desta e, de resto, 92 dos sobreviventes, estavam mesmo destinados a perecer, pois voltaram a encontrar o mar escassos três meses após a primeira tormenta, com o naufrágio do El Vencejo, que tinha acorrido de propósito para os transportar.
Ao longo dos tempos, no entanto, muitos lhe sucederam…
Como o Nuestra Señora de Begoña, logo no ano seguinte ou o SS Roumania, cerca de um século depois.
Este persistiu na memória coletiva pela tragédia que se seguiu ao encalhamento e que se traduziu na morte de 115 das 122 almas a bordo, o que “encheu de terror, de consternação e luto uma das nossas vilegiaturas mais alegres e divertidas: as Caldas da Raínha”. Tudo por causa dos rochedos do Gronho, entre Peniche e a Foz do Arelho, onde o paquete de despedaçou.
E a lista de navios, vidas humanas e cargas perdidas continua: produtos obtidos na natureza, como o peixe, que a escuna canadiana Bluenose levava, quando naufragou, em 1919; bens agrícolas resultantes de árduas culturas, como o arroz, que a Canoa Maria transportava, de Setúbal, em 1876; algodão, cacau e café, por exemplo, que compunham a carga trazida do Brasil pelo Elisabeth, em 1821. E trigo, chá, tabaco, sal, bem como aveia e fava miúda, estas a bordo, nomeadamente, do Saint François, que seguia para Marselha, mas tragicamente ficou-se por Peniche, em 1849.
Minerais, como minério de ferro ou o carvão de pedra que, em 1871 desapareceu no fundo do mar com o Tiglia Alexandre e, ainda, produtos sofisticados, como a manteiga, transportada por um bergantim inglês proveniente de Cork, que ali terminou a viagem, em 1788. Ou, muito antes, fardos de pano, chapéus, faianças e vidros que se afundaram com o Notre Dame du Bom Secours, em 1699.
São apenas alguns exemplos dos desaires ocorridos naquela costa. Uns por incúria, desconhecimento dos fundos, outros não resistindo a tempestades, ou iludidos por densos nevoeiros, outros ainda abalroados ou deliberadamente encalhados. Em todos, o mesmo drama: as vidas que assim se interrompem.
Há até navios que se afundaram precisamente no mesmo local já “ocupado” por outros, juntando no fundo do oceano despojos de épocas bem diferentes, caso do João Diogo, que foi ao fundo em 1963, bem por cima do San Pedro de Alcântara, vertendo sobre este o minério de ferro que carregava.
Quanto à alfarroba, deve ter-se espalhado pelo areal, à mercê das gentes do bairro do Fialho, sempre à coca, para garantir o seu quinhão dos tesouros que as ondas assim oferecem.
Como naquela vez em que a areia se tingiu de encarnado-vivo, pejada de tomates que deram à costa, provenientes de um cargueiro que ali encalhou. Houve quem levasse caixas que, empilhadas, chegavam ao teto das acanhadas habitações. Ou na ocasião em que o arrastão Vaz Bela “forneceu” peixe a toda a vizinhança.
Seguiam, afinal, o exemplo de tantas outras gentes da “borda d’água”, que desde sempre assim operavam – e continuam a operar - quando ocorria um infortúnio no mar.
O registo do naufrágio que deu nome à bela praia - entre a praia de Peniche de Cima e a praia da Baía - no entanto, foi mais difícil de encontrar. Nem nos livros, nem na memória de quem viveu uma vida nas casas já desaparecidas do velho bairro de conserveiros - a dois passos do areal - nem falando com interessados na história local ou sequer junto das entidades oficiais, se encontrou uma pista, uma data, algo que pudesse fazer luz sobre o mistério.
Só a memória da alfarroba persiste, no topónimo. Até um dia.
À margem
É muito provável que a alfarroba que deu à costa em Peniche fosse proveniente do Algarve. Foi precisamente dessa região do sul de Portugal que vieram as pessoas que, no início dos anos 20, deram vida ao bairro do Fialho, construído especialmente para as acolher. Eram sobretudo mulheres – muitas com seus maridos que se transformaram em pescadores de Peniche - cujo destino era pôr a funcionar a enorme fábrica que o grande empresário algarvio João Júdice Fialho ali instalara.
Era a sétima unidade de conservas de peixe com a sua chancela e a maior de todas. Para além do bairro operário, tinha a inovação de possuir creche e sala de aleitamento, para as funcionárias com filhos pequenos, às quais, no entanto, era descontado o tempo que ali passavam.
Das mãos delicadas que afincadamente trabalhavam, saiam toneladas de sardinha enlatada em azeite, muito apreciada em Portugal e no estrangeiro, pelo que não se estranha a criação de marcas como Marie Elisabeth, Falstaff, Desirée ou Galleon, que soam a tudo, menos português.
Júdice Fialho era um empresário com interesses diversificados, que iam do tabaco, à produção de massa de pimentão e marmelada; da pesca à agricultura, tendo-se tornado num dos maiores proprietários rurais do Algarve. A sua casa, o Palácio Fialho, em Faro, começado a erguer em plena I Guerra Mundial (1915) demorou uma década a estar concluído, com todo o esplendor e luxo expectável do possuidor de tão grande império.
É no seu “Morgado da Quinta da Quarteira”, adquirido em 1929 e que era a mais extensa propriedade do Algarve, que vai depois crescer Vilamoura, após a venda que os herdeiros de Júdice Fialho fazem ao grupo financeiro de Cupertino de Miranda.
Mas isso é outra história...
Fontes
Jorge Martins, Câmara Municipal de Peniche
Antero Anastácio, morador no antigo bairro do Fialho, a quem agradeço a conversa e o envio do seu livro.
Portal do Arqueólogo (patrimoniocultural.pt)
Naufrágios ao largo da costa Oeste (lpn.pt)
Histórias de Peniche: Naufrágios em Peniche (historiasdepeniche.blogspot.com)
Antero Anastácio, o Meu Fialho, Gráfica Europan, Lda – Mem Martins, 2007.
Artigo publicado nos CADERNOS BARÃO DE ARÊDE Outubro-Dezembro 2014
O império Júdice Fialho, Luís Miguel Pulido Garcia Cardoso de Menezes, artigo originalmente publicado nos Cadernos Barão de Arêde, outubro-dezembro, 2014. Disponível aqui: O Império Júdice Fialho – Conservas de Portugal by Can the Can
Migrações paralelas em Peniche – Economia política da produção e consumo de sardinha, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa João Coimbra de Oliveira, trabalho para a obtenção do grau de mestre em Antropologia, 2010. Disponível aqui: https://run.unl.pt/bitstream/10362/5742/1/Migra%C3%A7%C3%B5es%20Paralelas%20em%20Peniche%20-%20Economia%20Pol%C3%ADtica%20da%20Produ%C3%A7.
Hemeroteca Digital de Lisboa
O Occidente
01.11.1892
Imagens Biblioteca Nacional de Portugal (em linha) www.purl.pt |
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Planta geométrica da ilha e villa de Peniche..., João Gilot (?), 1657,
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Naufrágios ao largo da costa Oeste (lpn.pt)
Barco afundado – imagem manipulada
Sítio do Naufrágio do Navio San Pedro de Alcantara | CM Peniche (cm-peniche.pt)
Naufrágio do San Pedro de Alcantara, Jen Pillement, 1786.
Fotografias Júdice Fialho & Cª – Portimão – Fábrica S. Francisco