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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Crónica policial (3) - Diretor fora, homicida santo na cadeia

Lisboa, setembro de 1920

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O diretor da Penitenciária de Lisboa precisou, como todos os anos por esta altura, de passar uma temporada nas termas de Vidago (Chaves). Deixou as tarefas inerentes às suas funções entregues a pessoa habilitada, competente e de confiança, que já o coadjuva habitualmente no expediente diário. Pequeno pormenor: o “diretor substituto” é um dos muitos reclusos que, por estes dias, ocupam as celas do estabelecimento e nem sequer é um preso por delito menor, mas sim um condenado por homicídio.

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Sim, é verdade. Mas a culpa não é do senhor diretor João Bacelar. O seu secretário formal está de licença; o oficial da secretaria e o guarda-livros encontram-se enfermos; o tesoureiro só aparece esporadicamente. O chefe dos guardas está lá, evidentemente, mas não tem conhecimentos necessários para tão complexas e burocráticas atribuições. Não podendo prescindir da costumeira estadia em ambiente termal, restava o médico de serviço, que, efetivamente, assina o que há a assinar, mas vai à sua vida, porque tem muito que fazer. Assim, quem, efetiva, mas não oficialmente, gere a cadeia é o preso nº465.

É que este senhor, Henrique dos Santos Pinheiro, de sua graça, já esteve do lado certo da lei. Era procurador judicial, até ter decidido acabar com a vida da sua própria mulher, com um tiro de revólver. Foi condenado a oito anos de prisão e 12 de degredo, tendo dado entrada na Penitenciária de Lisboa em abril de 1918, após um julgamento muito noticiado, onde se afirmou sempre inocente, mas no final do qual seria mesmo condenado.

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Apesar de ser um jovem – tem apenas 30 anos de idade - rapidamente, a sua educação e bom trato, o fizeram granjear amizades entre o pessoal da cadeia, tanto que o senhor diretor o escolheu para secretário, fornecendo-lhe até um pequeno gabinete onde desempenha esse serviço, certamente meritório. Nada contra, claro. O problema, lá está, é que Henrique dos Santos Pinheiro, é, à luz da lei, um condenado e, por mais que prove ser simpático e capaz, a sua nomeação oficiosa não caiu bem nas mais altas instâncias.

A notícia deu brado e fez o ministro da Justiça encarregar o inspetor das cadeias civis de averiguar o caso. O que fez, tendo alterado as hierarquias deixadas provisoriamente pelo diretor ausente que, calcule-se, em pouco tempo se pôs em Lisboa e tentou minimizar estragos, com esclarecimentos à tutela e cartas aos jornais.

Não foi preciso muito. A sua carreira não parece ter sido beliscada. Pouco tempo após este incidente, o senhor João Bacelar [João Cardoso Moniz Bacelar] já estava novamente no Parlamento, como deputado da Nação. A passagem pela cadeia de Lisboa, aliás, foi apenas um interregno numa vida mais ligada à política e ao jornalismo.

Sobre Henrique dos Santos Pinheiro é que nunca mais se deu conta de haver notícias, boas ou más.

 

 

Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

A Capital, 03.09.1920; 05.09.1920; 09.09.1920

 

Anexo 3 - Eleições de 1925.pdf (uevora.pt)

Arquivo Fotográfico | Deputados e Senadores do período Republicano (parlamento.pt)

Debates Parlamentares - Diário 122, p. 1 (1923-07-06) (parlamento.pt)

 

Imagens

Arquivo Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001342

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002440

………..

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/NEG/000161

Instantâneos (109): vai um cafezinho sem ferrugem?

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Quando, em meados do século XIX, a ferrugem do cafeeiro atacou, destruindo plantações inteiras e levando alguns estados mais dependentes desta cultura à bancarrota, estávamos longe de imaginar que a solução para tão grande mal estaria em Portugal, e que, tantos anos depois, todo o mundo estaria a beber café gerado por esse “milagre” português,

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A ferrugem – assim chamada devido às manchas alaranjadas que o fungo hemileia vastatrix provoca nas folhas do cafeeiro – foi pela primeira vez detetada em 1861, no Quénia.

Nessa mesma década, terá sido acidentalmente transportada do leste de África para o Ceilão, hoje Sri Lanka, que na época era o terceiro maior exportador de café. Enquanto o ambiente seco dos territórios africanos de origem, caso do Iémen ou Etiópia, inibia o desenvolvimento da maleita, a sua nova “casa”, onde foi primeiramente detetada em 1869, tinha condições para prosperar, na mesma medida que a produção de café definhava, obrigando à aposta noutras culturas, como o chá.

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Um século depois, a ferrugem tinha-se espalhado à escala global, com efeitos arrasadores.

Face a este cenário, em 1955, em Portugal, aproveitando todo o conhecimento derivado das relações com as suas colónias ultramarinas, o interesse e financiamento norte-americanos – do célebre Plano Marshall - funda-se o Centro de Investigação de Ferrugens do Cafeeiro (CIFC), em Oeiras.

É então que se recupera uma informação com cerca de 30 anos. Na década de 20 tinha causado alguma perplexidade a descoberta, em Timor, de pés de café que, aparentemente, passavam incólumes à ferrugem, inesperadamente mantendo-se de pé em campos totalmente devastados.

Sementes dessas plantas sobreviventes foram trazidas para Portugal. Tratava-se de um híbrido das espécies Robusta e Arábica, uma mistura criada espontaneamente na natureza. Tirando o facto de ser resistente à doença – e já não era pouco – nada mais tinha de extraordinário, porque os seus frutos não eram abundantes e a planta era alta de mais.

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Decidiram então cruzá-la com outras mais produtivas, como a Caturra. Nascia, assim, a Catimor, resistente a todas as variantes do fungo e que, por isso, revolucionou totalmente o sector.

Portugal ofereceu as sementes recentemente criadas a cerca de meia centena de países cafeeiros, que as multiplicaram e cruzaram com outras qualidades vulneráveis, tornando-as imunes à maldita doença.

Atualmente, 90 por cento das variedades mais divulgadas e comerciais de cafeeiro resistentes ao famigerado fungo foram criadas em Oeiras, independentemente de terem sido patenteadas noutros países que, assim, se apropriaram do tal “milagre”, ganhado milhões.

De resto, o centro de investigação ainda hoje existe. Possui mais de três mil amostras de ferrugem, de 45 diferentes estirpes, com que testa cafeeiros enviados de todo o mundo. Num país como Portugal, que não produz os aromáticos grãos da popular bebida, há cinco mil metros quadrados de estufas com cafeeiros, que são a maior mancha de café da Europa.

 

 

Fontes

 

Stuart Mccook,,Crónica de uma praga anunciada epidemias agrícolas e história ambiental do café nas Américas, History Department. University of Guelph. Guelph ON N1G 2W1. Canada. 

Disponível aqui: SciELO - Brasil - Crônica de uma praga anunciada epidemias agrícolas e história ambiental do café nas Américas Crônica de uma praga anunciada epidemias agrícolas e história ambiental do café nas Américas

 

 

Projeto luso-timorense para salvar o café mundial — Plataforma Media

 

O Público 29.04.2005, texto de Teresa Firmino.

A odisseia de Catimor, uma planta cuja história começa em Timor | Ciências | PÚBLICO (publico.pt)

 

Colecção única no mundo de cafeeiros e fungos precisa de dinheiro e novo rumo | Ciências | PÚBLICO (publico.pt)

 

 

Diário de Notícias, publicando notícia de Helena Tecedeiro, Agência Lusa, 04.08.2012

Os melhores segredos do café estão em Portugal (dn.pt)

 

História do café | PPT (slideshare.net)

 

História do Café (cafeodebrecht.com.br)

 

Ferrugem-do-café – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

 

Imagens

Moedor de café antigo: Conheça o melhor modelo de (10/23) - GUIA55

(658) Pinterest

Coffee 101: What Does a Coffee Plant Look Like? – The Roasterie

Ferrugem do cafeeiro (Hemileia vastatrix) (agrolink.com.br)

A estranha gente dos arrozais

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Em plena ditadura, um jornal lisboeta dedica três grandes reportagens às gentes do Vale do Sado. Com uma abertura inesperada, fala de exploração, miséria e trabalho escravo, da gente de Alcácer; dos algarvios e beirões, a “malta”, que todos os anos vinha aos milhares trabalhar esta terra.

 

Em outubro de 1945, como todos os anos por esta altura, decorria a colheita do arroz, maduro já nos vastíssimos campos do Vale do Sado. Em pleno Estado Novo, o Diário de Lisboa traça, em três longas reportagens, um retrato singular da “estranha gente dos arrozais”, autênticos escravos da terra, que têm em comum mais do que se possa pensar com a atual gente das estufas. Mas não vinham da Índia ou do Nepal, migravam sobretudo do Algarve e das Beiras.

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Arregimentados por “sotas”, que lhes retinham parte dos míseros salários, a “malta” fazia os trabalhos mais pesados, juntando o seu esforço aos braços alentejanos, que os patrões entendiam ter menor rendimento. Chegaram a ser sete mil a cada ano.

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As mulheres – e as crianças - ombreavam em empenho e horas, mas não no pagamento, recebendo metade do que auferiam os homens: seis escudos por uma jornada que podia chegar às 15 horas.

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Mondavam, ceifavam, faziam o que fosse preciso, quase sempre vergadas sobre si próprias. Descalças e com água até meio da perna, mal tinham ordem de levantar os olhos, quanto mais a cabeça, que o capataz estava à espreita, de vara na mão.

Poucos eram os momentos de pausa – quando vinha a aguadeira ou almoçavam – e era nessa faina incessante que, por vezes, se ouviam as vozes entoar a cadência repetitiva e interminável do Ladrão do Sado, onde cantavam as suas mágoas e esperanças ou simplesmente relatavam um pouco das suas sofridas existências.

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Para se abrigarem do sol inclemente e outras agruras, inventaram a curiosa indumentária que junta saias – arregaçadas – e calças – que protegiam do restolho áspero e das sanguessugas, mas não do “mal da monda”, as bolhas e feridas deixadas pelos pesticidas, tratadas depois com pomadas e mezinhas. Lenço na cabeça, tapando parte do rosto, manga comprida ou meias de senhora a cobrir os braços.

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E chapéu. Este, artigo de luxo mais do que de utilidade, era “obrigatório” e chegava a custar cinco dias de trabalho. Constituía o orgulhoso rasgo de vaidade feminina, tantas vezes decorado com fitas, flores, objetos leves e a fotografia do moço eleito pelos seus corações.

Estas mondinas, como por aqui, genericamente, são conhecidas, eram raparigas envelhecidas, caras tisnadas e mirradas, vítimas fáceis das sezões que lhes tiravam a cor do rosto, amareleciam os olhos e enegreciam as bocas.

A “malta” e a gente de Alcácer viviam em mundos paralelos, que raramente se tocavam, apesar de partilharem espaços e tarefas. Em comum, a total dependência do patrão, que definia as regras do jogo, alterando-as de acordo com o que lhe era mais conveniente, e a vulnerabilidade ao mosquito, que transmitia as febres e contribuía para que, por norma, morressem cedo.

Os de fora vinham em setembro e abalavam pelo São João. “Eram ainda mais miseráveis que os da terra”, vítimas de um “comércio afrontoso, imagem de negócio de carne humana”.

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Viviam inevitavelmente sob o telhado do dono da herdade, em imensos "casões", “aos cem de cada vez e mais, sobre uma faixa de palha de arroz ou de mato, cobertos com a sua manta” ou, na melhor das hipóteses, dormiam em esteiras de junco suspensas das paredes. Camas eram raras.

No campo, os do Alentejo tinham cada um o seu púcaro, que traziam de casa com comida. A coque – a cozinheira de serviço – dispunha-os ao lume, em fila, para estarem prontos à hora da refeição (na imagem).

Para alimentar os da “malta” havia apenas um enorme tacho, à roda do qual se organizavam, fazendo circular uma solitária colher que, à vez, servia a todos.

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Ao sábado largavam o trabalho com luz e acorriam à vila a gastar a rala semanada. Folgavam ao domingo e era neste dia ou quando o patrão consentia numa adiafa – a comemorar o fim da colheita, por exemplo - que se entregavam a um bailarico, que era o único divertimento conhecido.

Apesar de homens e mulheres terem labutas e alojamentos apartados, ocasionalmente, mesmo no meio de tanto trabalho e esforço, há dois pares de olhos que se cruzam, um sinal com um lenço, um interesse que cresce…quando se dava por isso, iam pedir autorização ao capataz para “erguer palhoça ou barraca”. Era sinal de que havia mais um casal no rancho.

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Nasceram assim autênticas aldeias, que faziam lembrar terras africanas e que já não existem. Também assim se criaram e fixaram muitas famílias que se tornaram alcacerenses.

Hoje, o arroz está totalmente mecanizado. A população de Alcácer do Sal tem vindo a diminuir drasticamente, dizem os censos, ocupando-se ainda na agricultura, mas já também nos serviços. Os migrantes são outros.

 

À margem

Alcácer do Sal é uma terra de fronteira e de encontros. Embora geograficamente localizada na região alentejana, está mais próxima do litoral do que do Alentejo profundo. Talvez por isso, os costumes tenham um sabor especial e regras próprias. É assim com o Ladrão do Sado.

Diferente do tradicional cante, é uma moda de improviso, cantada à desgarrada, típica deste concelho e única no País.

Tem a particularidade de tanto poder ser cantado na taberna, como no baile de roda, mas era sobretudo durante o trabalho que era ouvido. É, além disso, o único canto de improviso do sul de Portugal, que pode ser entoado, em simultâneo, por homens e mulheres.

Cantavam em diálogo os temas do quotidiano, os namoros, as bebedeiras, “com troças irónicas e críticas”.

Devemos ao etnomusicólogo francês Michael Giacometti uma recolha efetuada em 1984 neste concelho, com modas tocadas e cantadas e especial enfoque no Ladrão do Sado.

Às novas gerações já pouco diz, remetendo para o tempo dos seus avós ou para os festivais de folclore. Talvez sejam poucos os que ainda saibam o que representava, como alento, companhia e recriação daqueles trabalhadores que pouco ou nada tinham.

É também chamado Ladrão de Palma ou Ladrão dos Pretos, pois a sua origem é atribuída aos trabalhadores escravos africanos trazidos para o Vale do Sado a partir do século XV e que, como todos os que se lhes seguiram, acabaram por se cruzar com a população local, fazendo parte das suas raízes peculiares.

 Mas isso é outra história…

 

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Agradeço a Maria Antónia Lázaro, que me deu a conhecer estes textos publicados em 1945.

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Fontes

Diário de Lisboa, 01.10.1945, 03.10.1945, 04.10.1945.

 

António José Serra Carqueijeiro (Tona) e Elísio Baracinha (Acordeão) - O Ladrão do Sado - YouTube

Cortesia de Miguel Ângelo Catarino Vaquinhas

Município e Direcção Regional da Cultura apostados em preservar canto de improviso em risco (rtp.pt)

Isabel Castro Henriques, Os pretos do Sado – História e memória de uma comunidade alentejana de origem africana, Lisboa, Edições Colibri, 2020.

 

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

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