Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Onde foi parar o dinheiro dos órfãos?

grupo de crianças_Porto.png

 

Durante séculos, o dinheiro dos órfãos portugueses foi usado e abusado para os mais variados fins, emprestado a juros e requisitado pelo Estado, quando a penúria das finanças públicas o exigia. Financiou até os homens mais ricos do seu tempo e ajudou a custear campanhas militares, como a desastrosa incursão em Alcácer Quibir.

Quando alguém de posses morria deixando filhos menores, os bens do falecido eram geridos por um magistrado – juiz ou curador dos órfãos, em conjunto com o tutor (o progenitor sobrevivo ou outro parente) e um conselho familiar. Embora o funcionamento destas estruturas tivesse evoluído ao longo do tempo, o objetivo último era defender os interesses das crianças e assegurar a sua sobrevivência.

Seria de esperar que, assim protegidos, os pertences estivessem a salvo da cobiça alheia, não fosse o facto de ser comum requisitá-los para outros fins e emprestá-los a juros.

asilo de crianças.jpg

Funcionava como uma espécie de “banco” dos órfãos, a que qualquer pessoa podia recorrer, embora estivessem em vantagem as que tinham conhecimentos para abrir portas e obter autorização dos envolvidos.

Em escritura pública, ficavam expressas as condições do empréstimo, normalmente com a hipoteca de um bem do devedor, para garantir o pagamento da dívida.

Era uma forma de aumentar o pecúlio dos menores, rentabilizando os seus haveres, mas o negócio nem sempre corria bem, porque muitos devedores não restituíam o valor mutuado ou falhavam no pagamento dos juros acordados.

colonia balnear.jpg

Como o provam os numerosos registos que chegaram aos nossos dias, na letra nem sempre encantadora dos tabeliões, este foi um expediente muitíssimo usado – e abusado - por um vasto leque de pessoas, em todo o País, dos mais modestos, aos mais abastados, como o opulento José Maria dos Santos (ver à Margem).

O próprio Estado, não teve escrúpulos em usar o cofre dos órfãos, por vezes com resultados desastrosos e, em diversas ocasiões, foram os próprios depositários que falsificavam inventários, adquiriram a “preço de saldo” os haveres dos órfãos ou desviaram as verbas que entendiam, para fins particulares e sem qualquer controlo, originando desfalques só conhecidos quando algum superior mais zeloso exigia ver as contas.

orfeao do colegio dos orfaos_ Porto.png

O mal, no entanto, vinha de longe. Em 1535, é criado o Regimento Sobre o Dinheiro dos Órfãos, com o intuito de prevenir os prejuízos resultantes do investimento das heranças em negócios ruinosos, bem como atalhar a morosidade e os custos despropositados e falaciosos que alguns magistrados de má-fé imprimiam aos processos de devolução dos bens, quando os menores se emancipavam.

Não obstante, quatro anos depois, o rei autorizava que se levantassem verbas do cofre dos órfãos para pagar a mercadores que trouxessem cereais à cidade do Porto, a braços com falta de pão e consequente fome das suas gentes.

Asilo colegio do Sagrado Coracao de Jesus_Porto.pn

Dois mil cruzados do mesmo cofre são emprestados, em 1561, ao Convento da Madre de Deus de Monchique, mas também era frequente os municípios recorrerem a esta “banca”, como fez Benavente, em 1560, para reparar a ponte da vila, que estava em ruínas; ou Braga, dois anos mais tarde, para financiar o envio de procuradores à Corte; ou, ainda, Coimbra, para reparar fontes e a passagem sobre o Mondego, já no início do século XVII.

Como se vê, as heranças dos menores sem pais serviam para tudo e todos. Não raramente, só não serviam aos seus efetivos proprietários.

E, o que dizer quando o próprio rei dispõe destes pertences para financiar campanhas bélicas, como fez D. Afonso V e D. Sebastião? Este usou o dinheiro, as peças de ouro e prata dos órfãos para suportar parte da dispendiosa expedição ao Norte de África, durante a qual se travou a tristemente célebre batalha de Alcácer Quibir…e todos sabemos como essa terminou e as consequências que teve, para o monarca e para o Pais.

Não é difícil perceber que fim levaram tais legados.

Diga-se, no entanto, em abono da Coroa, que o Cardeal D. Henrique, que sucedeu no trono de Portugal, ordenou a restituição do dinheiro, mas tal não chegaria a concretizar-se na totalidade.

 

À margem

José Maria dos Santos, um dos portugueses mais abastados do seu tempo – proprietário de numerosas e extensas herdades, produtor de vinho e de infindáveis bens agrícolas - no seu percurso para alargar domínios no Alentejo, comprando as terras contíguas ao Condado de Palma, que já detinha, recorreu ao curador geral dos órfãos da Comarca de Alcácer do Sal.

Mostrando toda a argúcia para o negócio que se lhe reconhecia, em 1879, contraiu um empréstimo de 15 contos de reis, que a menor Maria Joana Branco* tinha herdado do pai, José António Gonçalves Branco. Com esse dinheiro, arrematou as herdades de Vale de Coito, Fangarifau e Sesmaria da Charneca, pertencentes … à mesma menor, e que ficaram hipotecadas para assegurar o pagamento.

O crédito renderia um juro de seis por cento e deveria ser saldado no prazo de cinco anos. Demorou uma década.

Mas, se José Maria dos Santos acabou por restituir o dinheiro e cumpriu escrupulosamente com os juros devidos, outros não o fizeram.

E, no melhor pano cai a nódoa, porque os exemplos de incumprimento vêm de cima.

São os casos de Francisco de Paula Leite e de António de Campos Valdez, ambos presidentes da Câmara Municipal de Alcácer do Sal em diferentes períodos, nas décadas de 70 e 80 do século XIX e, este último, cerca de vinte anos empresário do Real Teatro de São Carlos, em Lisboa.

O primeiro, acabou por perder a Herdade de Espim, hipotecada para garantia do crédito e que seria comprada pelo mesmo José Maria dos Santos, que saldou a dívida e os juros em falta. O segundo não teve tempo – ou meios - para pagar as dezenas de calotes que contraiu nos últimos anos de vida. Deixaria essas dívidas como legado aos seus próprios sete órfãos.

Mas isso é outra história…

 

............................

A orfã Maria Joana Branco casou com o médico José Maria Gentil, do qual já aqui falei, irmão do fundador do IPO, Francisco Gentil.

Já aqui falei da Herdade de Palma e das suas célebres e inspiradoras meloas.

Já aqui falei dos pobres órfãos enjeitados deixados na roda.

 

………

Fontes

Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº18 das Notas do Tabelião Santos do Julgado de Alcácer do Sal, PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/0045.

Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº21 das Notas do Tabelião Santos do Julgado de Alcácer do Sal, PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/0047.

Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº26 das Notas do Tabelião Santos do Julgado de Alcácer do Sal, PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/0052.

Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº28 das Notas do Tabelião A. P. Mendonça do Julgado de Alcácer do Sal PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/005.

Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº30 das Notas do Tabelião A. De Melo do Julgado de Alcácer do Sal PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/0056.

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal, Fundo João Gabriel Posser de Andrade, em organização.

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal, Comarca de Alcácer do Sal, Cartório do 1º Ofício, Livro de registo de articulados e sentenças, PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/06/005.

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal, Comarca de Alcácer do Sal, Livro de registo das avaliações judiciais, PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/07/001.

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal, Comarca de Alcácer do Sal, Cartório do 2º Ofício, Livro de registo de articulados e sentenças, PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/05/005.

Maria de Fátima Machado, Os órfãos e os enjeitados da cidade e do termo do Porto (1500-1580), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais, 2019. Disponível aqui: tese_v18 (up.pt)

João Vieira Gomes, Juízos dos Órfãos do Antigo Reigime e o Estado da Questão, Nova Série, nº1,  Arquivo Histórico da Madeira, 2019.

Imagens (meramente ilustrativas de instituições de acolhimento a órfãos)

Arquivo Municipal do Porto, Orfeão do colégio dos órfãos, PT-CMP-AM/COL/GRA/D.GRA.1.172.

Arquivo Municipal do Porto, Coleção Ephemera, Asilo Colégio do Sagrado Coração de Jesus, PT-CMP-AM/COL/EPH/D.EPH:A1.104.

Arquivo Municipal do Porto, Grupo de crianças, Foto Guedes, PT-CMP-AM/PRI/FGD/F.NV:FG.M:11:67.

 

Arquivo Municipal de Lisboa, colónia balnear, Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001463

 

Arquivo Municipal de Lisboa, Asilo de Crianças, Alberto Carlos Lima, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001520

 

Instantâneos (112): como a frágil Catarina venceu o poderoso inglês

 

voiturette dion bouton.png

 

A história da fixação do recorde automóvel entre Lisboa e Madrid é uma espécie de fábula da lebre e da tartaruga, mas sobre rodas. No final, ganhou a Catarina!

Foi uma disputa que apaixonou o público lisboeta durante os primeiros meses de 1909, com os periódicos a tomarem partido dos concorrentes, esgrimindo argumentos entre si.

Tudo começou meses antes, na varanda do Casino Monte Estoril, naquele ambiente perfumado de essências parisienses e charuto, ao som distante do rodopiar da roleta e das rabecas, que tocavam no salão - sem dúvida o local ideal para congeminar uma forma de dar nas vistas.

É aí que o representante em Portugal da British Automobiles desafia o diretor da revista Ilustração Portugueza para uma inesperada viagem a Madrid*.

Vivia-se o advento dos automóveis em Portugal e eram frequentes despiques entre fabricantes e vendedores de diferentes marcas, procurando mostrar ao público a sua supremacia perante o adversário.

Nesse contexto, a firma que representava os veículos britânicos prontificou-se a publicar vários anúncios bombásticos onde afirmava ter um dos seus Napier pronto a bater-se com uma viatura de outra marca, num trajeto de mim a dois mil quilómetros, a partir de Lisboa. Propositadamente, não fornecia detalhes sobre o percurso ou o destino, porque o objetivo não era cativar adversários, mas sim afirmar que nenhum havia aceite a corrida, porque ninguém apareceria na data e local marcados.

A questão é que, se o representante da British Automobiles foi esperto, houve alguém que o superou em esperteza: a Sociedade Portuguesa de Automóveis, agente da francesa De Dion Bouton.

napier 1.png

Sem pretender entrar em confronto direto com o novíssimo e portentoso Napier de 40 cavalos, com 6 cilindros (na imagem), pegou no menos potente dos seus modelos – com apenas um cilindro e oito cavalos de potência. Tratava-se de uma voiturette pertencente a Carlos Bleck, já com dois anos de trabalho diário e muito conhecida em Lisboa (na primeira imagem).

Carinhosamente, tinham-lhe dado o nome de “Catarina”.

Aos comandos iam os experiente José de Aguiar (na próxima imagem) e Joaquim Correia. Partiram com horas de atraso em relação aos primeiros, mas acautelaram as formalidades necessárias para que a sua jornada, se bem-sucedida, pudesse instituir o recorde automobilístico Lisboa-Madrid.

jose de aguiar.PNG

Escusado será dizer que o Napier, sem se saber acompanhado na viagem, qual lebre do conto infantil, adotou um ritmo de passeio, com paragens para fotografias e confraternização, enquanto a “Catarina” seguiu como a tartaruga, focada em chegar o mais depressa possível. Alcançou Madrid meia hora antes do automóvel inglês e rapidamente fez saber que tinha fixado o recorde em “28 horas e pouco mais”.

Como a comparação entre os dois carros era impossível de fazer, pelas flagrantes diferenças, embora a luta de anúncios tenha prosseguido, foi a voiturette que acabou por vencer a contenda, ficando registado “o arrojo admirável” dos seus timoneiros, a fiabilidade da “Catarina”, os claros resultados desportivos e, comercialmente falando, o retumbante “triunfo para os representantes da Le Dion-Bouton”.

Resta acrescentar, para não nos animarmos em demasia, que, se esta marca fundada pelo marquês Jules Félix Philippe Albert de Dion de Wandonneera, era, em 1900, a maior produtora de automóveis à escala mundial, acabaria por estagnar e deixar de produzir veículos ligeiros de passageiros 32 anos depois. Já a Napier, criada em 1808, foi adquirida pela English Electric, em 1942.

 

De Dion,  Henri Lalanne's em.jpg

Imagem de uma voiturette semelhante à Catarina, gentilmente enviada por Michael Edwards, do Dion Bouton Car Club UK.

………………

 

*Falo de José Alexandre Garcia Rugeroni e de Carlos Malheiro Dias. Com eles foi também o fotógrafo Arnaldo Fonseca e o condutor inglês Cundy.

 

…………

Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

Illustração Portugueza, 12.04.1909.

 

O Tiro e Sport, 10.02.1909.

O Tiro e Sport, 20.02.1909.

O Tiro e Sport, 28.02.1909.

José Carlos Barros Rodrigues, A Implantação do Automóvel em Portugal (1895-1910), dissertação para a obtenção do grau de Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia, Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia, outubro 2012.

Napier & Son - Wikipedia

De Dion-Bouton - Wikipedia

Home - De Dion-Bouton Car Club (dedionboutonclub.co.uk)

 

Quando, na Beira, mandavam as quadrilhas de salteadores e assassinos

5b6afcf8-f3ee-4354-8283-d9e39068a8ad.jpeg

 

 

Houve um tempo em que a violência e a criminalidade andavam à solta, criando um verdadeiro estado de terror. Essa foi uma realidade especialmente brutal e prolongada nas Beiras, onde grupos de malfeitores arrasavam aldeias, agrediam e matavam pessoas, algumas vezes para roubar, outras para aniquilar opositores, a mando de algum grupo político que os patrocinava e protegia. A maioria destes homens nunca seriam julgados ou condenados.

 

O País ainda não estava refeito das perseguições e atropelos durante o reinado de D. Miguel ou de todas as atrocidades praticadas de parte a parte durante a guerra civil. Mal se calaram essas armas, desembainharam-se outras, igualmente ávidas, que custaram a calar-se e ensombraram as primeiras décadas do liberalismo. Esta onda de terror foi particularmente grave nos concelhos beirões, nas décadas de 30 a 60 do século XIX.

joao brandao.png

Qualquer família liberal que se sentisse suficientemente segura, podia pegar em armas e exigir aos absolutistas perdedores indeminização por danos sofridos durantes os conflitos anteriores, dando origem a autênticos bandos de justiceiros em causa própria.

O mais conhecido destes vingadores do trabuco e do punhal foi o famigerado João Brandão (na imagem), mas muitos outros deixaram o seu nome inscrito a sangue e medo na memória das gentes.

Ao contrário do Remexido, que punha a ferro e fogo a serra algarvia, João Brandão teve a sorte de estar do lado dos vencedores e ser até reconhecido como apoiante da consolidação desse poder, o que lhe deu um capital de influência e poder, que foi meio caminho andado para as muitas arbitrariedades que cometeu.

Extorsão, chantagem, roubo, tortura, rapto e assassinato. Todos estes crimes são imputados a João Brandão e à sua quadrilha de clavineiros, que os terão perpetrado por vingança e cobiça, mas também numa atividade de condicionamento da justiça e, a mando dos caciques locais, para anular ou acossar os opositores políticos, prestando assim uma espécie de “serviço público” ao poder instituído.

Estes “amigos” bem colocados incutiam-lhe uma arrogância proporcional à impunidade de que gozou durante muitos anos.

Coimbra,_séc._XIX.png

O jornal O Conimbricense (na imagem, a cidade de Coimbra em finais do século XIX), que empreendeu uma verdadeira campanha contra os Brandões, atribui-lhe a participação em pelo menos 15 homicídios.

Acabaria por ser condenado ao degredo pela morte do padre José da Anunciação Portugal. Mas, também aí teve um tratamento de exceção. Tendo pedido transferência de Luanda para Mossâmedes, ali criou uma próspera fábrica de aguardente. Morreu no Bié, em 1880.

Conhecido como o “terror da Beira”, tem, também, quem o defenda e o homenageie como herói, dando o seu nome a ruas ou equipamentos (na imagem, a casa onde morou).

retrato da casa de joao brandao.png

Os Brandões de Midões – João, o pai, irmãos e outros familiares – foram os mais famosos, no entanto, não foram os únicos que trouxeram a região em polvorosa de forma tão intensa que, mais de um século depois, ainda se contam essas histórias, para assustar as crianças rebeldes ou recordar que a paz não é um bem adquirido.

Nesse mesmo período foram muitos os que se destacaram pela negativa.

António da Costa Macário, o Caca, miguelista e, portanto, inimigo de Brandão, foi igualmente conhecido e temido. Natural da mesma freguesia, tinha sido alfaiate, mas trocou a tesoura e a agulha, por uma espingarda de canos curtos, duas pistolas e um punhal com cabo em marfim, pendentes de um vistoso cinturão espanhol delicadamente bordado. No currículo do seu grupo, que chegou aos vinte elementos, ficaram diversos roubos e homicídios, alguns por encomenda e com especial violência e requintes de crueldade sobre padres liberais.

joao brandao2.png

Mas, há mais. Temos, por exemplo, o Marçal de Foz Coa (António Joaquim Marçal), que foi condecorado com o Hábito de Cristo e a Ordem de Torre e Espada, apesar de ter saqueado várias localidades, incendiado casas e morto dezenas de pessoas.

Ou o “Boa Tarde” (António Rodrigues) que, aos 26 anos, já tinha seis homicídios no currículo. Matava a pedido, como fez por solicitação do padre Francisco Xavier Pereira de Figueiredo que, depois de ter envenenado um irmão, mandou eliminar o outro, por 11 moedas e meia e uma clavina.

Temos, ainda, entre tantos outros, José Ramos “Anginho”, que desferiu um tiro ao ferreiro da Várzea da Candosa (ver À margem), que o varou da garganta à nuca; o  “Boi de Coja” (José Joaquim Marques de Oliveira); o José Tavares de Brito; o António Pereira Grazina, “Venta Larga”; João Antunes Leitão, assassino de Vila Cova de Sub-Avô (atual Vila Cova de Alva); Francisco Marques, o “Coimbra”; a quadrilha de ladrões de Verride, com mais de 24 elementos e,  segundo os jornais, protegida por António de Macedo Pereira Coutinho, par do reino.

E os sicários de Lavos, a soldo de Joaquim Gonçalves Curado, o “Gaiato da Marinha”, administrador do concelho de Lavos, ou António Soares de Albergaria, administrador do concelho do Carregal, todos dando o exemplo de como o poder político pode ser um elemento perturbador da ordem pública, quando deveria ser o garante da mesma.

Em 1849, António Joaquim Ferreira Pontes, que havia sido voluntário da rainha, administrador do concelho de Moncorvo e ascenderia ao lugar de governador civil e deputado às cortes, corajosamente denunciava nos jornais um total e 33 assassínios, 43 espancamentos e 99 chefes de família obrigados a fugir de suas casas, só no concelho de Foz Côa.

O próprio João Brandão, em livro escrito na prisão, deixa uma lista de mais de 200 crimes não cometidos por si e cujos autores, afirmava, tentou punir.

Independentemente da autoria, a maior parte de todas estas atrocidades ficou impune.

 

À margem

Um dos mais conhecidos crimes atribuídos a João Brandão foi o assassinato de João Nunes, o ferreiro da Várzea da Candosa. Como era procurado pelas autoridades, por falsificação de listas eleitorais, e João Brandão foi incumbido de o apanhar, tinha ali o pretexto ideal para acabar com aquele seu inimigo. Entre homens seus, das forças policiais e militares, eram cerca de 200, que se dividiram pelas serranias e aldeias em busca do ferreiro. Uma verdadeira montaria, que deixou um rasto de violência e destruição pelos povoados onde não obtinham informações úteis à caçada.

Finalmente, a 9 de novembro de 1854, João Nunes foi surpreendido no lugar de Moura da Serra. Emboscado, deu-se um tiroteio que o atingiu num braço. Mesmo assim, conseguiu fugir, já de noite, para a Benfeita, acoitando-se em casa de um conhecido, onde o irmão o encontrou e chamaram dois barbeiros, com o intuito de o tratarem. São estes que o atraiçoam e levam a gente de João Brandão até ao esconderijo, onde o ferreiro é abatido a tiro, na cama, sem ter conseguido esboçar qualquer oposição.

O problema é que o administrador do concelho de Arganil, ao qual pertencem aquelas terras, não compactuava com os métodos dos Brandões, obrigando a encenar a morte noutras paragens.

abel augusto do amaral.jpg

O cadáver é atado a uma égua vendada, com Miguel Nunes Jorge coagido a amparar o corpo do próprio irmão enquanto o anjinho apregoava “Quem quer marrã fresca?”, ao que os outros respondiam: “Vai vendê-la à Feira de Oliveira”. O estranho grupo dá entrada em Cruz de Anceriz, (Avô), onde se simulou novo tiroteio, crivando o morto com dezenas de balas.

Coincidência ou talvez não, anos depois deste crime sem castigo, a muitos quilómetros dali, em pleno Alentejo, estas famílias voltam a encontrar-se. Abel (na imagem), o filho mais velho do administrador do concelho da Tábua – Francisco Augusto da Costa Amaral - com cuja proteção João Brandão contou, viria estabelecer-se como advogado em Alcácer do Sal.

manuel nunes jorge.png

Foi neste concelho alentejano que também se fixou Manuel Nunes Jorge (na imagem), um filho de Miguel, o irmão sobrevivente do ferreiro da Várzea da Candosa. Ambos aqui casariam e dariam origem a famílias prósperas e relevantes na terra.

Os “Amarais” foram uma linhagem onde se contam deputados, engenheiros, arquitetos conhecidos e até um ministro. Os Nunes Jorge (na imagem) estiveram ligados à fundação da firma Jorge e Irmão, detentores de oficina e estabelecimento comercial de dimensões consideráveis, que produzia e reparava máquinas agrícolas e outros equipamentos.

Os descendentes garantem que, ainda há duas gerações, o mais velho do clã, Manuel, andava sempre com uma machadinha ao ombro, pronto a defender-se.

Reminiscências, quem sabe, dos recuados períodos de violência conhecidos por esta família (na última imagem), na qual o apelido “ferreiro” permaneceu como elemento identitário até há bem pouco tempo.

familia Jorge.jpeg

 

Mas isso são outras histórias….

.........................

Já aqui antes falei desta época conturbada da história de Portugal:

Quando mais de mil criminosos se apoderaram de Lisboa - O sal da história (sapo.pt)

A surpresa de Alcácer - O sal da história (sapo.pt)

……………………….

 

Os meus agradecimentos a Maria do Carmo Jorge, bisneta de Miguel Nunes Jorge - que por pouco não foi assassinado, como o irmão - descendente da família do ferreiro da Várzea de Candosa, que me emprestou a maior parte de bibliografia aqui consultada, fotografias do avô e restante família.

………………………….

Fontes

Joaquim Martins de Carvalho, Os assassinos da Beira – Novos apontamentos para a história Contemporânea, Coimbra, 1890.

José M. Castro Pinto, João Brandão – o terror da Beira, Lisboa, Plátano Editora, 2004.

Luís Avelar e Pedro Massano, Mataram-no duas vezes – A lei do trabuco e do Punhal, Europress, 1987.

João Brandão - Infopédia (infopedia.pt)

Quem foi o João Brandão? – RTP Arquivos

Abel Augusto da Costa Amaral, * 1850 | Geneall.net

 

Informação prestada por Maria do Carmo Jorge

 

 

Imagens

A primeira imagem foi gerada por inteligência artificial, aqui:

AI Image Generator (deepai.org)

 

[João Brandão da Beira assassino do padre Portugal] (purl.pt)

File:Coimbra, séc. XIX.png - Wikimedia Commons

Biblioteca Municipal de Ilhavo - Os assassinos da Beira : novos apontamentos para a história contemporanea / Joaquim Martins de Carvalho (cm-ilhavo.pt)

Abel Augusto da Costa Amaral, * 1850 | Geneall.net

Fotografia de Manuel Nunes Jorge, filho de Miguel Nunes Jorge, sobrinho de João Nunes, o ferreiro da Várzea, fornecida pela neta, Maria do Carmo Jorge.