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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Os ases das duas rodas

 

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A família real cedo se rendeu aos encantos das novas e curiosas máquinas com pedais, muito à boleia da grande estrela internacional das duas rodas, que se fixou por cá, ensinou meio mundo – abastado, entenda-se – e se desdobrou em atividades, das corridas – em bicicleta, triciclo e automóvel -  às excursões e guias turísticos.

 

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Em finais do século XIX, os jovens de elite - aristocratas ou, no mínimo, provenientes de famílias abastadas - que viajavam pela Europa, em estudo e recreio, trouxeram para Portugal uns estranhos aparelhos que suscitaram a curiosidade geral. Tinham duas rodas e moviam-se mediante a força e o equilíbrio de quem os montava.

Facilmente penetraram nos hábitos de divertimento salutar das classes privilegiadas, a começar pela família real, que se empenhou em aprender a andar de bicicleta, mas também em conduzir automóveis e motorizadas, muito à boleia da dedicação e iniciativa de um francês que aqui se instalou a pedido do rei e por cá ficou até morrer.

Um verdadeiro sportsman, apto para conduzir todos esses veículos nunca vistos que então chegavam ao nosso país.

Raoul Buisson (na imagem) tinha pouco mais de vinte anos quando chegou a Portugal.

Era já conhecido internacionalmente como velocipedista profissional, com participação em muitas provas e enorme sucesso.

Também não veio ao acaso: era primo do engenheiro Albert Beauvalet, que se encontrava em Lisboa, contratado primeiro para supervisionar a instalação de uma fábrica de bicicletas e, depois, para montar a almejada produção de automóveis nacionais, que nunca vingaria. Não obstante, em pouco tempo, este senhor acabaria por se estabelecer com um grandioso espaço comercial de venda automóvel*.

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Mas, voltemos ao primo…

Nesse ano de 1898, foi convidado para representar a marca de bicicletas Humber, no Primeiro Grande Prémio Ciclista, onde se cruzou com El Rei D. Carlos.

Contam as crónicas, que foi o próprio monarca, desde logo grande entusiasta destas novidades, que o convidou a ficar, para incutir nos portugueses a “arte de bem andar de bicicleta, triciclo a petróleo e carruagem automóvel”.

Ficou com a fama de ter ensinado El Rei a andar de velocípede e de ter iniciado o

rainha dona amelia aprende a andar de bicicleta.pnirmão, D. Afonso, nos triciclos motorizados, o que correu tão bem que este, como se sabe, viria a notabilizar-se como amante da velocidade sobre rodas motorizadas.

Menos adeptas de acelerações, mas igualmente recetivas às inovações, sabe-se que D. Amélia (na próxima imagem) e até D. Maria Pia (no grupo da terceira imagem), também passaram a andar de bicicleta em passeios pelo campo ou nas propriedades reais.

A carreira de Buisson não poderia ter aspirantes mais famosos e auspiciosos.

Atrás destes primeiros alunos, seguiram-se muitos outros ricos e famosos, que treinou particularmente.

Fundaria uma espécie de escola de condução, a “Casa Especial de Ensino”, instalada no Chalet Raleigh, ao Campo Grande, para a qual importou um conjunto de viaturas destinadas à aprendizagem, sendo-lhe até atribuída a introdução da primeira motorizada – vélocipède à grand vitesse – em Portugal.

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O dinâmico francês também participou em muitas corridas no nosso País, quer de bicicleta, quer de moto ou mesmo de automóvel, desdobrando-se em demonstrações.

Esteve na primeira prova de velocidade – automóveis e motorizadas – que se realizou em Valada e, amiúde,  o seu nome servia de chamariz para o público, mesmo que ele não participasse em todas as competições em que a sua presença era anunciada.

Nos anos 20, criaria uma espécie de agência de viagens e serviço de autotáxis.

Lançaria roteiros turísticos e visitas guiadas precursoras das atuais city tours, tão em voga entre os turistas dos dias de hoje, com propostas por Cascais, Sintra, Estoril, Batalha, Alcobaça e Lisboa, ou onde quer que o forasteiro se quisesse deslocar, em viatura coberta ou descapotável, consoante as condições atmosféricas e o gosto do freguês.

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Incansável, este sportsman francês, morreu em Lisboa em 1969, aos 91 anos de idade.

 

 

 

 

 

À margem

A primeira prova em bicicleta realizada no nosso País, ocorreu no Porto, em julho de 1880. Foi organizada pelo Clube Velocipedista Portuense, com circuito entre a Alameda de Matosinhos e o forte de São João Baptista, na Foz. Lendo as notícias da época, é curioso ver que os atletas batizavam as suas bicicletas com sugestivos epítetos como Ligeiro, Raio, Faísca, Rattazi, Relâmpago, Express ou África. Ganhou Aurélio Vieira, montado na Veloz.

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A partir daqui, criaram-se dezenas de competições e desafios, que começaram por decorrer em recintos inicialmente pensados para corridas de cavalos e tinham um público selecionado.

A aquisição destas verdadeiras maravilhas de modernidade estava ao alcance de um grupo ainda mais restrito de bolsas.

A pouco e pouco, elas foram-se multiplicando entre nós e criaram-se depois velódromos para as exibições em bicicleta, o primeiro dos quais também no Porto.

O problema veio quando os tão admirados veículos passaram para as estradas. Se era difícil percorrer longas distâncias em automóvel e triciclo motorizado, imagine-se o que seria então arriscar tais percursos apenas sobre duas rodas...

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De Norte a Sul, os representantes dos clubes que, entretanto, se foram formando, manifestavam-se impotentes para a realização de corridas velocipédicas, dado o péssimo estado generalizado das vias. Clamavam não haver, à volta de Lisboa e do Porto, um único palmo de estrada ciclável, pois se nem sequer todas as ruas o eram! Os organizadores queixavam-se que, num País em que os velocípedes eram taxados de forma elevadíssima, "como em nenhum outro", as estradas fossem as piores possíveis para essa atividade, a não ser algum cantinho recôndito de pouco trânsito, ou troço com interesse para qualquer político com poder ou bem relacionado.

Em 1902, época em que se escreveram estes lamentos, corajosamente organizaram-se as primeiras provas longas em estrada. A estreia foi entre Valença e Viana do Castelo, com a meta frente ao templo de Nossa Senhora da Agonia, designação bem apropriada para o tormento que esperava os estoicos ciclistas de então.

Para a primeira prova de velocidade – automóveis e motorizadas - realizada em Portugal, corria o ano de 1906, foi mesmo necessário sensibilizar as forças vivas locais, que repararam um troço de estrada expressamente para a realização desta histórica corrida, em Valada.

Mas isso é outra história…

 

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*Falo da gigantesca Garagem Beauvalet – Agence Générále d’Automobiles, representante da Peugeot, inaugurada em 1906, que se situava na zona dos restauradores, em Lisboa, no local onde depois foi construído o Cinema Éden. Em 1909 o stand mudou-se para o Avenida-Palace Hotel.

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Já aqui antes falei do fascínio das bicicletas Clement.

E dos estranhos desafios que os amantes dos automóveis inventaram para testarem os seus veículos, em plano inclinado ou longas distâncias. Eram tempos estranhos...

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Fontes

José Carlos Barros Rodrigues, A Implantação do Automóvel em Portugal (1895-1910), Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia, outubro de 2012.

Susana P. Gomes Luís Gonzaga, motociclos portugueses, um olhar do design sobre 50 anos de produção, dissertação  para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Design, Universidade de Aveiro, Departamento de Comunicação e Arte, 2006.

Selos de Portugal, Álbum XI, Carlos Kullberg, Edições Húmos Ldª, Biblioteca filatélica Digital, fevereiro de 2009. Disponível aqui: https://www.fep.up.pt/docentes/cpimenta/lazer/html/ebook/bfd020_p.pdf

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Diário Illustrado, 20.07.1880

 

O Occidente, 20. 07.1907.

 

Illustração Portugueza, 23.06.1913.

 

O Tiro Civil, 15.03.1912.

 

Tiro e Sport, 15.01.1906, 31.03.1906.

 

O Campeão, 05.11.1899.

 

 

https://www.mundoportugues.pt/2018/04/19/a-historia-do-cicloturismo-em-portugal/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ciclismo_em_Portugal

https://www.porto.pt/pt/noticia/historias-da-cidade-prova-rainha-em-portugal-fez-se-princesa-no-porto

 

https://docbweb.acp.pt/plinkres.asp?Base=ISBD&Form=BIBLIO&StartRec=0&RecPag=5&NewSearch=1&SearchTxt=%22DP%20%5B1954%22%20%2B%20%22DP%20%5B1954%24%22

 

https://www.publituris.pt/2020/02/14/historias-do-turismo-o-inicio-dos-vintes

 

Imagens

Os Sports Ilustrados, 18.06.1910; 30.07.1910.

Illustração Portugueza, 26.03.1906, Raoul Buisson, primeiro classificado em motocicleta (Valada)

Reais em bicicleta | O Velocipedista (wordpress.com)

livro raoul buisson una gran figura del desport - Compra venta en todocoleccion

Família Real Portuguesa: RAINHA DONA AMÉLIA APRENDE A ANDAR DE BICICLETA. (realfamiliaportuguesa.blogspot.com)

Instantâneos (113): entre a esponja e o azeite

 

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Um homem desce a calçada do Combro envolto no que parece ser uma capa de estranhas formas e texturas. Mas, nem tudo o que parece, é. Trata-se de um vendedor ambulante que transporta às costas o seu ganha-pão, fazendo uma pequena pausa no seu deambular, para pousar para o fotógrafo.

Está na rua lisboeta que, no século XVIII, também já foi “do Congro”, embora não haja notícia que por ali tenha sido visto qualquer peixe desta espécie. Nessa época, no entanto, já Portugal importava uma quantidade considerável de esponjas como as que este senhor transporta, enfileiradas em arames, fazendo com que se assemelhe a um polvo com vários tentáculos macios e leves.

Os principais exportadores de esponjas marinhas como estas são os países das Caraíbas e do Mediterrâneo e era destes últimos que o nosso País obtinha as que por cá circulavam, como atestam os registos que dão conta, nomeadamente, dos fardos deste produto – misturados com outras mercadorias, como isca de sola* - retidos para desinfeção no lazareto da Trafaria. Os seus proprietários imploram que sejam libertados e rapidamente enviados para alfândega ou que nem cheguem a passar por aquelas instalações da Margem Sul, onde se fazia a triagem e quarentena de passageiros e carga provenientes de destinos suspeitos de albergar moléstias pegadiças.

Os requerimentos são enviados ao Provedor-Mor de Saúde da Corte e do Reino e neles avultam as encomendas chegadas da atual zona de Itália, mais propriamente de Veneza ou Génova, por exemplo.

As esponjas, já se sabe, são organismos marinhos dos quais existem mais de nove mil espécies. As mais conhecidas são as usados desde a antiguidade, em operações cerimoniais, medicinais e de higiene, pelo seu poder absorvente.

Na sua Odisseia, Homero, põe um dos deuses a limpar-se com esponjas e, na Grécia antiga, há referência a banhos que os atletas olímpicos tomavam, com esponjas embebidas em azeite.

Em Portugal, no entanto, a conjugação destes dois produtos não é tão inocente. A utilização de esponjas, tornada obrigatória a partir do verão de 1839 para a limpeza dos potes aquando da medição e venda de azeite, originou críticas por parte dos vendedores e contratadores do Mercado do Azeite, em Lisboa.

Como é natural nestas situações, quem pagou tal norma foram os consumidores, porque se verificou um acréscimo de 50 reis por almude (nessa época, cerca de 16,8 litros) daquela gordura vegetal.

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A Câmara Municipal de Lisboa queria “acabar por uma vez com o odioso exclusivo da Companhia de Medidores de Azeite”, não só porque assim determinava a nova Constituição, como também pela “imoralidade da maior parte dos homens de que ela se compõem”, pode ler-se em portaria. Abria-se assim a possibilidade para que qualquer possuidor de azeite pudesse livremente fazê-lo medir na Casa de Ver o Peso e dar-lhe o encaminhamento que quisesse.

As orientações eram claras, mas a polémica sobre as medidas esponjadas e não esponjadas continuou ainda por largo tempo.

Atualmente, as esponjas naturais marinhas continuam a ser um produto valorizado e com procura, mas foram substituídas nas atividades menos nobres por esponjas sintéticas, a partir de poliéster e poliuretano, inventados, respetivamente, em 1920 e 1952.

Na segunda imagem, podemos ver um vendedor ambulante de azeite – um azeiteiro - também em Lisboa, já no século XX.

 

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Na primeira imagem, captada no início do século XX na que, afinal, deveria ser corretamente denominada calçada do Cômoro – do alto, portanto – é ainda visível o antigo elevador Estrela-Camões, desenhado pelo engenheiro Mesnier do Ponsard, que o público carinhosamente denominava de machibombo** e que foi substituído pelos carros elétricos logo em 1913.

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*Isca-de-sola é o nome dado ao trachurus lathami, um peixe de água salgada que, seco, é usado como isca de pesca. Também se dá esta denominação ao agárico dos carvalhos, um cogumelo que nasce nestas árvores e era comum na preparação de medicamentos. Não consigo saber a qual destas “iscas” se referem os documentos, mas presumo que às primeiras, por serem organismos marinhos, como as esponjas.

 

**A palavra é portuguesa – usada em Moçambique como sinónimo de autocarros de transporte público – mas terá, dizem os entendidos, origem no inglês machine pump – bomba mecânica.

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Fontes

Arquivo Municipal de Lisboa

Informação sobre o novo regulamento do Mercado do Azeite, PT/AMLSB/CMLSBAH/CVP/004/0006/0024

Informação sobre a utilização de esponjas na venda do azeite, PT/AMLSB/CMLSBAH/CVP/004/0006/0025

Edital sobre um ofício referente à utilização de esponjas na venda do azeite, PT/AMLSB/CMLSBAH/CVP/004/0006/0027

Registo de um aviso a favor de José Jácome Massa

PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0044

Registo de um aviso a favor de Ângelo Dali

PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0052

Registo de um aviso a favor de Francisco Baldaque

PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0065

Registo de um aviso a favor de João Calaya

PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0072

Registo de um aviso a favor de Mateus Rascovich

PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0104

Registo de um aviso a favor de Agostinho Sichiel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0151

Registo de um aviso a favor de José Excameri

PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0173

 

Pharmacopêa Portugueza, Edição oficial, Imprensa Nacional, 1870, disponível em https://am.uc.pt/romulo/download/wqnDk8Kjw5jDjsOQwpJsZWRpZ2FmwpfCmcKZwplowphi/UCRC-RC-MNCT-615-PHA.pdf

 

isca-de-sola (ibrath.com)

Esponja (objeto) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Porifera – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Tradição da Esponja Marinha em Kalymnos – Turismogrecia.info – Blog

https://pt.wikipedia.org/wiki/Almude

 

https://lisboadeantigamente.blogspot.com/2016/02/calcada-do-combro-vendedor-ambulante-de.html

 

Imagens

Arquivo Municipal de Lisboa

Jaime Fragoso de Almeida - Elevadores Ascensores e Funiculares de Portugal. Lisboa : Clube do Coleccionador dos Correios, 2010, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/NEG/02/A81662

 

Marina Tavares Dias - Lisboa Desaparecida 7, Lisboa, Quimera, 2001, PT/AMLSB/POR/060206

 

Pela imprensa (25): não digas desta circassiana não beberei

 

 

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Uma beleza inigualável proporcionada pelos negros cabelos que emolduram o rosto delicado, de pele branca e macia. É este o argumento de venda da Água Circassiana, ou das diferentes mistelas vendidas sob este nome. É o ideal de beleza explorado por laboratórios e donos de circos; perseguido por homens ávidos de erotismo e senhoras ansiosas por rejuvenescer. É esta a imagem das circassianas idolatrada no ocidente e que foi a sua desgraça.

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Água Circassiana:  era sinónimo de cabeleira farta, vigorosa, escura como breu ou da cor primitiva do utilizador. Um produto concebido a pensar nas damas, mas suficientemente versátil para atrair alguns cavalheiros hesitantes em aceitar as cãs próprias da idade. Entre os clientes estavam as principais casas reais da Europa, diziam os seus divulgadores e, garantiam as más-línguas, estava o superministro português Fontes Pereira de Melo, responsável pelo extraordinário incremento das obras públicas, das estradas, ao comboio – muito, mas muito longe ainda das ideias do TGV! – durante o período da Regeneração, em meados do século XIX.

A Portugal, a Água Circassiana terá chegado pelo menos nos finais da década de 1860, pela mão da Herrings & Cª, firma “de grande fama e extração fabulosa”, “inventores” com instalações no Rossio, nºs 60 e 61, e venda em numerosas farmácias de Lisboa e Porto. É fácil de calcular que tão prodigioso preparado, ainda mais sem composição química conhecida, tenha sido rapidamente copiado.

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No mercado surgiram outras “marcas”, que competiam com o líquido dos senhores Herrings, o que muito os aborreceu e prejudicou. Se eram tão eficazes com o “original”, não sabemos, nem sequer se o dito surtia o efeito desejado, até porque não me foi possível descobrir mais informação sobre estes empreendedores.

É claro que, quando confrontados com um tão admirável produto, os céticos tendiam a duvidar das suas qualidades. Esse foi o caso de Eça de Queiroz, que escarneceu da utilização desta água especial. Também ridicularizou a imagem adorada da mulher circassiana, “mais branca que a Lua cheia, mais airosa que os lírios”, que, afinal, coitada, na sua história, não passava de uma envelhecida e miserável prostituta.

É que, precisamente na mesma época em que o Ocidente inventava produtos que se aproveitavam dessas características tão exóticas, quanto míticas, os circassianos – homens e mulheres - eram exterminados pelo Império Russo, que invadiu os territórios deste povo (grupos étnicos normalmente designados adigues ou adiguésios) no norte do Cáucaso, matando cerca de 400 mil e expulsando mais de 1.2 milhões das suas terras, numa verdadeira limpeza étnica que os fez dispersar pelo mundo e, efetivamente, desaparecer do mapa.

As mulheres, essas, havia muito que eram vendidas, até pelas próprias famílias, como escravas sexuais, especialmente entre os turcos, cujos haréns integravam. Outras fugiam e trabalhavam como atrações em circos ocidentais, fazendo furor pela estranheza que o seu aspeto suscitava, com a cútis pálida contrastante com o cabelo preto e encarapinhado.

 

 

 

Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

Vida Artistica : Semanario de Artes e Lettras, Ano 2, n.º 47, 30.04.12

A Paróquia, nº74, 09.06.1904

 

Biblioteca Nacional de Portugal, em linha

Diário Illustrado, 02.06.1881

Diário ilustrado, 03.07.1881

Boletim do Clero e do Professorado, nº604, 21.11.1874

 

Carlos Reis e Maria Eduarda Borges dos Santos, Edição crítica de A Relíquia, de Eça de Queiroz, Imprensa Nacional, 2021. Disponível aqui: https://imprensanacional.pt/wp-content/uploads/2022/09/A-Reliquia._miolo_AF_25_11_2021.pdf

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Fontes_Pereira_de_Melo

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Circassianos

 

Imagem principal:

Jean Léon Gérome, “Dama circassiana com véu” cerca de 1876, óleo sobre tela, lote 42, Christies Sale 7587 2008

Encontrada aqui:

https://journals.openedition.org/viatourism/1746?lang=it