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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Colecionador de arte e desgostos

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Que o dinheiro não traz alegria, já todos sabemos, mas que pode ajudar muito, também podemos intuir. Há, no entanto, agruras na vida que melindram dramaticamente até os mais abastados. Pedro Eugénio Daupias era um dos principais industriais do País e detentor da maior coleção privada de arte. Uma sucessão de perdas pessoais e outros desgostos fizeram-no antecipar a morte no cano de uma arma. O caso chocou Lisboa no início de 1900.

O dia 25 de janeiro parecia igual a qualquer outro. Pela manhã, o conde Daupias percorreu os corredores da sua enorme fábrica

fabrica de fiaçao daupias.pngtêxtil, na zona do Calvário, em Lisboa (na imagem), e os arruamentos do seu jardim. Depois, subiu ao quarto e carregou um revolver. Sentou-se, apoiando o braço para garantir que apontava diretamente à sua própria cabeça e premiu o gatilho.

Findou assim uma vida com uma significativa quota parte de desgostos. Pôs-se ponto final igualmente num verdadeiro império industrial e artístico, embora as complexas disputas pelo património restante – que tinham começado ainda em vida do Conde – se tivessem prolongado no tempo.

O que restava da coleção digna de museus foi alienado. A fábrica, onde chegaram a trabalhar 600 pessoas, o palácio com as suas soberbas galerias e jardim, foram postos por terra.

Mas, vamos por partes. A dor, que fez Daupias terminar a própria vida, tinha sido igualmente o motor de alguns dos seus maiores empreendimentos.

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Pedro Eugénio Daupias perdeu as duas filhas ainda jovens e num espaço de apenas dois anos. A compra de antiguidades terá resultado da angústia que então sobre ele se abateu. Tornou-se colecionador para não enlouquecer e multiplicou os encontros sociais para mascarar o vazio que sentia.

Começou por procurar obras dos “velhos mestres”, em Lisboa e, sobretudo, em Paris. Depois foi alargando o leque a arte contemporânea, o que suscitou, por parte dos marchands menos sérios, um certo aproveitamento da sua ingenuidade e a apresentação de negócios com custos escandalosos e valor intrínseco questionável. Não obstante, só de pintura alcançaria mais de 800 peças, a que se somava mobiliário, porcelanas, bronzes, marfins, esmaltes, escultura e leques, entre outras preciosidades.

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De tal forma a sua coleção cresceu, que construiu uma enorme galeria (na imagem anterior) para acomodar o seu museu particular, a que se seguiram mais duas salas contíguas, já que a primeira rapidamente se mostrou insuficiente, dada a aquisição incessante e um tudo ou nada indiscriminada.

Eram espaços notáveis, dotados de extensas claraboias que os inundavam de luz natural. Passaram a ser apontados até por jornais estrangeiros como de visita obrigatória na capital portuguesa. Um rico catálogo em francês, publicado pelo colecionador, terá contribuído para o reconhecimento internacional. Isso e os eventos que organizava.

O Conde promovia saraus belíssimos, onde tocavam músicos de grande qualidade, aos quais patrocinava estudos em conservatórios estrangeiros e experiências de enriquecimento artístico. No local existia igualmente um enorme órgão de tubos e o anfitrião chegou a ter permanentemente ao seu serviço um extraordinário quarteto de instrumentos de arco, aumentado com pianistas, organistas e harpistas.

O mais difícil mesmo era conseguir ser convidado. A lista – com um máximo de 150 pessoas, porque o Conde odiava multidões - era o mais seleta possível, pelo que havia uma grande disputa para participar em tais convívios. Por ali passaram, no entanto, algumas celebridades, como Sarah Bernardt, Maria Ratazzi, Eca de Queiroz ou Ramalho Ortigão.

Tudo se terá começado a desmoronar em 1891, com a morte da condessa Joana Daupias e a crise financeira que então se vivia.

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No ano seguinte, o Conde vende uma grande fatia da sua coleção. O leilão, muito badalado, obteve a fabulosa soma de um milhão e 200 mil francos-ouro, mas não terá agradado à família.

As duas netas, Joana Deffez e Maria Júlia Deffez, tentaram impedir o avô de dispor da sua fortuna, até porque as movimentações seriam alheias às diretrizes testamentárias da avó.

Assim, dos dois leilões planeados para 1894, com o intuito de conseguir liquidez, um destes foi cancelado devido aos mencionados processos que, de resto, se prolongaram por largos anos.

Daupias ainda tentou nova fuga à solidão, casando com uma jovem que conheceu numa das suas viagens a Paris, mas a sua saúde moral e financeira estavam irremediavelmente perdidas. As relações com as netas tornaram-se hostis e os credores reclamavam os seus capitais.

Aquele que se rodeara de brilho e gente para disfarçar a dor, acabaria por morrer sozinho. A sua coleção, que enriqueceria qualquer museu nacional, dispersou-se para sempre.

 

À margem

Pedro Eugénio Daupias nasceu em França, a 28 de maio de 1818, mas veio jovem para o nosso país e naturalizou-se português.

A sua fortuna, ainda que aumentada em resultado da atividade que empreendeu, vinha já de anteriores gerações.

Era filho de Bernardo Daupias, 1º Visconde de Alcochete, abastado proprietário que chegou a ser encarregado de negócios de Portugal em Paris e, pelo lado materno, descendente de Jacome Raton, fundador, no tempo do Marquês de Pombal, das primeiras indústrias nacionais de papel, fiação de algodão, chapéus, louça e vidro, com interesses em Lisboa, Tomar e Elvas.

A venda da grandiosa coleção de arte que Daupias reuniu ao longo da vida ocorreu cerca de 70 anos após a alienação de outro importante conjunto artístico pertencente a outro português que também assim se dissipou. Pertencia ao 6º marquês de Marialva, Pedro José Joaquim Vito de Meneses Coutinho, oriundo da mais alta nobreza portuguesa, Estribeiro-Mor da Casa Real e diplomata, como o pai de Daupias, tendo sido responsável, nomeadamente, pelas negociações de alguns casamentos reais.

Após a sua morte, em Paris, as obras de arte que reunira foram igualmente leiloadas, em novembro de 1824. Algumas figuram atualmente no Louvre.

Por cá, outro património que corre risco de desaparecer completamente é a antiga casa de Frederico Daupias, sobrinho do colecionador de arte de quem aqui temos falado. Situa-se ao fundo da rua do Arco de São Mamede, junto ao Aqueduto das Águas Livres.

Já pouco resta do chalé e zona envolvente, onde se erguiam uns extraordinários jardins com dezenas de plantas e flores trazidas de todo o mundo e que causaram sensação pelo seu colorido, aparência inusitada e exótica.

Mas isso é outra história...

 

Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

O Occidente, 10.02.1900, texto de I d’Almeida Hirsch

Brasil-Portugal, 16.02.1900, texto de Ramalho Ortigão

 

Biblioteca Nacional de Portugal

Diário illustrado

25.01.1900

27.01.1900

28.01.1900

Diário do governo

  1. 011889

31.10.1895

25.02.1901

 

Arquivo nacional da Torre do Tombo

Livros de registo de casamentos, Lisboa, Alcântara

PT-ADLSB-PRQ-PLSB02-002-C25

PT-ADLSB-PRQ-PLSB11-002-C6

Livros de registo de óbitos Lisboa, Alcântara

PT-ADLSB-PRQ-PLSB02-003-O41

PT-ADLSB-PRQ-PLSB02-003-O50

 

Livros de registo de óbitos Sintra, Rio de Mouro

PT-ADLSB-PRQ-PSNT08-003-00006

Sistematizados em

www.tombo.pt

 

 

Ramiro A. Gonçalves, Pedro Eugénio Daupias, in Dicionário Quem é Quem na Museologia Portuguesa, Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/NOVA, 2019-2022. Disponível em https://institutodehistoriadaarte.com/wp-content/uploads/2022/05/Dic_QuemQuem_2ed.pdf

Maria Ratazzi, Portugal de Relance, Lisboa, Livraria Zeferino, 1882. Disponível em:

https://archive.org/details/portugalderelanc01rattuoft/page/n151/mode/2up?q=daupi%C3%A1s

 

Maria João Neto, Marize Malta (edts), Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos Séculos XIX e XX, Coleções reais e coleções oficiais, Lisboa, Caleidoscópio, nov. 2020.

Disponível em: https://dspace.uevora.pt/rdpc/handle/10174/29399

 

António Brás, Colecções de Lisboa I Medeiros e Almeida, coleccionador cosmopolita, em:

https://modaemoda.pt/2023/08/25/coleccoes-de-lisboa-i-medeiros-e-almeida/

 

A colecção do Conde de Daupiás

Texto publicado na revista L+Arte, rubrica Leiloes com Historia, 2005, disponível em:

https://uutz.wordpress.com/2012/06/26/a-coleccao-do-conde-de-daupias/

 

 

https://www.arqnet.pt/dicionario/daupias1c.html

 

Casa e jardins de Frederico Daupias, em Monumentos . Texto de Teresa Vale e Maria Ferreira.

Casa e Jardim Daupiás – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A2nico_de_1890

 

Imagens

Brasil-Portugal, 16.02.1900, texto de Ramalho Ortigão

https://uutz.wordpress.com/2012/06/26/a-coleccao-do-conde-de-daupias/

Ramiro A. Gonçalves, Pedro Eugénio Daupias, in Dicionário Quem é Quem na Museologia Portuguesa, Lisboa, Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/NOVA, 2019-2022

Arquivo Municipal de Lisboa

PT/AMLSB/ORI/00077

 

O Occidente, 10.02.1900,

 

 

 

Crónica policial (4) - Xeque-mate à segurança bancária

Lisboa, 20 de outubro de 1887

 

 

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O sonho de enriquecer rapidamente e sem esforço é comum à parte da humanidade que nasceu desabonada da fortuna. Foi esse devaneio que contribuiu para perdição de Luiz Maria dos Santos, caixeiro do Banco de Portugal, preso pela falsificação de cheques com os quais obteve consideráveis montantes. O caso está a fazer sensação neste outono, pois coloca em causa a segurança das transações bancárias, para além do jogo com fundos estrangeiros, atividade que envolve um grupo de amigos do Ministro da Fazenda

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O suspeito já foi preso e sujeito a interrogatório. Trata-se de um jovem de 30 anos, com “boa presença e agradável”, o que não impede que agora esteja a contas com a justiça.

 Em pelo menos três momentos, alegadamente, ludibriou a Caixa Geral de Depósitos para obter dinheiro suficiente para tapar o “buraco” cavado com apostas na bolsa.

São muitas e variadas as versões sobre o que verdadeiramente aconteceu. As questões levantadas, também. A mais pertinente parece ser: como foi possível que conseguisse verbas que, efetivamente, não estavam depositadas?

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As suspeitas, no entanto, devem ter fundamento, porque o juiz que o ouviu decretou o pagamento de uma fiança de 9 contos de reis.

O falatório, por outro lado, chegou às mais altas esferas. É que há um reconhecido grupo de amigos do Ministro da Fazenda que se dedica ao jogo com fundos internacionais, só que estes senhores, dizem as más-línguas, têm quem influencie os altos e baixos das ações e combinavam muito bem as operações. O caixeiro apanhado, pelo contrário, “fazia as operações mal combinadas”, porque não tinha um amigo bem colocado. “Por isso, ele vai para a cadeia, enquanto os outros vão para o Capitólio”.

O polémico caso levou igualmente a que este Ministério nomeasse uma comissão “para examinar a marcha e a administração da Caixa Geral de Depósitos e propor as providências necessárias a conciliar a facilidade das transações com a boa fiscalização e segurança”.

Desconhecem-se as conclusões a que chegou esta comissão, como tantas outras comissões depois desta.

O que sabemos é que, seis meses após estes factos, o ex-caixeiro do Banco de Portugal foi pronunciado pelo crime de burla por ter levantado títulos da dívida pública na importância de 30 contos de reis, dando em troca um cheque falso do Banco Lisboa e Açores. Sobre os outros levantamentos anteriores nada se disse. Sobre o destino do reu, também não.

……….

Nota: a  Caixa Geral de Depósitos tinha apenas 11 anos de existência quando rebentou este escândalo, que pôs em causa a segurança e credibilidade das transações desta instituição criada por Carta de Lei de 10 de abril de 1876. Sucedia ao Depósito Público de Lisboa e Porto, de fundação pombalina, e destinava-se, como o próprio nome indica, a receber depósitos, primeiro os obrigatórios por força legal e, depois, também os voluntários, incentivando ao aforro.


……………

 

Fontes

Diário Illustrado

22.10.1887; 24.10.1887, 31.10.1887; 25.10.1887;

 

Hemeroteca Digital Brasileira

Correio da Manhã, 28.10.1887; 29.10.1887; 04.11.1887; 12.11.1887; 22.11.1887; 15.04.1888.

 

O Regenerador, 27.10.1887.

 

https://www.cgd.pt/Institucional/Patrimonio-Historico-CGD/Patrimonio-em-destaque/Pages/Patrimonio-em-destaque.aspx

 

 

Imagens – Meramente ilustrativas da função de caixeiro. Foram captadas durante um curso de formação profissional, em 1914.

Arquivo Municipal de Lisboa

Escola Prática de Comércio

Alberto Carlos Lima,

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/002853

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/002856

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/002857

 

Quando os portugueses salvaram o Preste João e o misterioso reino da Abissínia

 

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Os portugueses são um povo arrojado e, em determinadas circunstâncias, disposto a tudo. Talvez isso explique porque é que acedemos ao pedido de ajuda de um remoto país, que ninguém sabia muito bem onde ficava. Fomos socorrer esses irmãos de fé e vencemos os seus inimigos, mas, em tão dura campanha, perdemos o líder desse minúsculo exército luso, martirizado e decapitado pelos infiéis depois de ter demonstrado uma tão sobrenatural valentia, que até houve quem defendesse que devia ser elevado à categoria de santo.

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Essa terra situada nos confins de África era a Abissínia. O herói que lá ficou era Cristóvão da Gama, infausto filho do conhecido navegador que descobriu o caminho marítimo para a Índia.

Estávamos em 1541. Havia muito que portugueses e abissínios procuravam uns pelos outros. Na Europa, desde o século XII que persistia a lenda de haver no continente africano ou na Ásia uma isolada nação cristã, governada por um imperador a que se deu o nome de Preste João e sobre o qual se construiu um imaginário de opulência e magnificência sem paralelos neste mundo.

Não admira, pois, que os reis de Portugal tivessem enviado espiões e embaixadas para procurar este reino misterioso, tanto mais que, ao que se tinha apurado, tinha uma localização estratégica para o controlo do Mar Vermelho – Roxo, para nós - tão importante – ainda hoje – para o comércio e, em especial, para o domínio da navegação no Índico, que os portugueses ambicionavam.

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Depois de viagens que demoraram décadas, cartas extraviadas e presentes perdidos, emissários que não regressaram e tentativas goradas, conseguiu-se estabelecer contacto e, da parte do jovem senhor daquelas terras, veio um angustiado apelo, pois a ameaça constante das tribos muçulmanas muito penalizava as suas gentes e fazia perigar a existência do País.

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A difícil situação foi avaliada pela nossa armada, em escala no porto de Maçuá, a caminho da India e liderada por Estevão da Gama. Este acabaria por nomear o seu irmão mais novo, Cristóvão, para encabeçar o grupo de 400 homens que se embrenharam por aquelas serranias inóspitas à procura do inimigo, imam Ahmad bin Ibrahim el-Ghazi – O Canhoto - também conhecido com Rei de Zeila.

As tropas deste temível guerreiro eram muito mais numerosas e tinham, até aí, vencido todas as batalhas contra os abissínios e o imperador Galawedos - nome demasiado estranho para os portugueses, que lhe chamaram Cláudio. Por aquele tempo, o soberano abexim andava praticamente fugido, um refugiado na sua própria terra, tal como sua mãe.

Os portugueses foram encontrá-la abrigada num mosteiro, e, desde essa data, a rainha fez questão de, com o seu séquito, juntar-se ao nosso contingente, acompanhando as batalhas e os longos períodos de paragem e preparação.

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A contenda demorou três muito sangrentos e penosos anos. Os portugueses seguiam maioritariamente a pé, sob um sol abrasador. Era frequente não terem água potável para beber e os caminhos serem tão difíceis, que era necessário desmontar os carros de transporte para transpor os obstáculos.

O primeiro embate foi a tomada da serra (amba) Sa-nayt, praça-forte dos muçulmanos, considerada inexpugnável pelos abissínios, que julgaram-nos loucos por atacar aquele local sem acessos e de onde podíamos facilmente ser vistos e repelidos.

Uma autêntica parede intransponível, que os nossos conquistaram com tática bem definida e muita audácia.

O sucesso reforçou a imagem que os abissínios já tinham construído de nós - enviados de Deus para os salvar - e marcou o tom para os confrontos que se seguiram, as batalhas nos campos de Iarte e na “colina dos Judeus”.

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Em todos os momentos, Cristóvão da Gama foi a inspiração, a sabedoria, o sacrifício, o incentivo e a coragem do seu exército. Foi a alma e o coração dos seus homens.

Imagine-se, pois, o impacto da sua captura e morte, após a única derrota portuguesa, em Ofla.

Só depois deste desaire é que os portugueses se conseguiram juntar aos – poucos – homens do Imperador. Foi Cláudio quem liderou um exército luso-abexim na batalha de Waina Daga, onde até os feridos e aleijados quiseram participar, pretendendo vingar a morte do seu capitão. O desejo de desforra seria satisfeito, uma vez que o Rei de Zeila tombou nesta refrega e a vitória sorriu aos cristãos. Como seria de esperar, também perdeu a cabeça.

A guerra estava assim ganha, embora o imperador se visse a braços com uma nação fragilizada e pobre, tanto mais que a mulher d' “O Canhoto” conseguiu fugir, levando todo o tesouro resultante de anos de pilhagem.

A destruição deixada por estas invasões muçulmanas – nomeadamente nas igrejas – a força salvadora dos portugueses, bem como o heroísmo de Cristóvão da Gama são recordadas até hoje pelos abissínios, hoje etíopes. Não obstante, as tentativas de canonizar este filho mais novo de Vasco da Gama foram infrutíferas, muito porque a influência de Portugal junto do Papa andava pelas ruas da amargura.

À margem

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O reino do Prestes João, hoje território da Etiópia, nada tinha que ver com a imagem mítica que o precedera. O seu imperador vivia como nómada, viajando com a sua comitiva pelo País, montando as tendas onde fosse mais conveniente, pois nem palácio detinha. As terras, inóspitas, de difícil acesso, secas e depauperadas por anos de conflitos com os vizinhos, foram uma desilusão para os primeiros portugueses que ali chegaram. Essa honra coube a Pero da Covilhã, que havia sido enviado para tomar conhecimento das dinâmicas comerciais da zona e alcançou aquela corte longínqua em 1494.

Estava então no poder Alexandre, mas foi o sucessor deste que não mais deixou abalar o emissário de D. João II. Deram-lhe terras e mulher e lá ficou, até ao fim dos seus dias.

O rei português seguinte, D. Manuel, enviou uma embaixada liderada por D. Rodrigo de Lima e recebida por David II (Lebna Dengel). Seguiu também um sumptuoso conjunto de oferendas que, por vicissitudes diversas, se perdeu pelo caminho, facto que terá contribuído para uma certa deceção inicial do imperador. Acresce que, percebendo a verdadeira dimensão continental de Portugal, ao localizá-lo num mapa-múndi que lhe levaram, aquele teve sérias dúvidas sobre utilidade que um país tão pequeno poderia ter.

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Não podia adivinhar que seriam os portugueses, anos mais tarde, já no reinado de D. João III, a salvar o seu filho Cláudio e a Abissínia de desaparecer enquanto Estado, porque nessa época, o que verdadeiramente lhe interessou foram as calças que os nossos emissários vestiam e as armas de fogo, que seriam decisivas nas vitórias obtidas pelas tropas portuguesas contra os muçulmanos.

Independentemente do nome do imperador, para os portugueses, o líder abexim seria, para sempre, Preste João, descendente de Salomão e da rainha de Sabá, cuja dinastia terminou em Haile Sellassié, que visitou Portugal com pompa em 1957 e cujo regime se finaria no mesmo ano daquele que então governava no nosso País.

Mas isso é outra história….

 

 

Fontes

Elaine Sanceau, Os Portugueses na Etiópia, Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1961.

Luís Costa e Sousa (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de LisboaCentro de História d’Aquém e d’Além-Mar),  Campanha da Etiópia 1541-1543 Portugueses em socorro do Peste João, Lisboa, Tribuna da História, Edição de Livros e Revistas, dez. 2008. Disponível aqui:

https://www.academia.edu/32151352/CAMPANHA_DA_ETI%C3%93PIA_1541-1543.pdf

 

 

Luís André Nepomuceno (Universidade Federal de Viçosa), Miguel de Castanhoso e o Martírio de D. Cristóvão da Gama, in ALEA  vol. 24/2,  p. 295-312, maio-ago. 2022. Disponível aqui:

https://www.scielo.br/j/alea/a/8BQ4QsG6p87sTLvxPH54grm/?format=pdf

 

Imagens

Biblioteca Nacional de Portugal

 

Cristóvão da Gama desbarata o Usurpador,

Cristovao_da_Gama_in_Abyssinia.jpg (1288×922) (wikimedia.org)

 

Maçuá no século XIX

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ma%C3%A7u%C3%A1#/media/Ficheiro:ST-Massowa.jpg

 

Ilustrações de António Lucena, no livro

Elaine Sanceau, Os Portugueses na Etiópia, Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1961.