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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Heróis do acaso (11): o primeiro sacrificado da Mocidade Portuguesa

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José Júlio Maciel Chaves, engenheiro silvicultor. Muitos foram os jovens que tombaram, ao longo dos séculos, para a conquista e manutenção dos territórios ultramarinos portugueses e tantos para a sua conservação, já em pleno século XX, quando os movimentos independentistas lutavam contra o nosso domínio. Muitos esquecidos, outros maioritariamente lembrados em memoriais com dezenas de nomes ou apenas pelas famílias que os perderam... poucos terão sido alcandorados ao estatuto de herói sem sequer ter pegado em armas. Foi o caso de Maciel Chaves, classificado como o primeiro herói da Mocidade Portuguesa, de cujas fileiras provinha, quando foi assassinado em Goa, naquele dia 27 de abril de 1956.

Dizem os jornais da época que foi surpreendido por um grupo de seis terroristas indianos, quando inspecionava um terreno, na zona de Pale. Os agressores envergavam fardas semelhantes às da polícia portuguesa e, aproximando-se o suficiente para não falhar o alvo, desferiram uma única rajada de metralhadora que pôs por terra Maciel Chaves, morto, e um professor da Escola Industrial e Comercial de Goa, que o acompanhava e que recuperaria dos ferimentos.

Os homens foram despojados dos bens que tinham consigo, entre os quais se contavam uma espingarda caçadeira e uma pistola, porque, apesar da tranquilidade que se pretendia passar, Goa era, por aqueles tempos, um território inseguro, que em breve seria ocupado por tropas da União Indiana.

Maciel Chaves assumira poucos meses antes funções como sub-chefe da Repartição do Fomento dos Serviços Florestais do Estado na Índia Portuguesa. Tinha 34 anos e casara havia menos de um ano.

O engenheiro, que na Metrópole concluíra o curso com uma tese sobre o processo radiológico de deteção dos carunchos, seria inúmeras vezes mencionado como exemplo da vida derramada pela pátria, aquela que se pretendia do Minho a Timor e que dava sinais de poder vir a desmoronar-se.

O facto de ter sido miliciano da Mocidade Portuguesa, onde aprendeu “o dever da honra, o sentido de lealdade e o patriotismo”, foi especialmente explorado por um Estado Novo sempre sedento de heróis, longínquos e próximos. Aquela instituição começava, então, “a aureolar-se com o sacrifício do sangue dos seus rapazes”, cuja juventude dava à Pátria.

Passados cinco anos, a mesma sorte calharia a Jorge Raposo Gomes Prata, sargento de aeronáutica caido em Angola. João José do Nascimento Costa morreria durante o sequestro do paquete Santa Maria por um grupo de exilados políticos portugueses e espanhóis.

Tantos os seguiriam.

Maciel Chaves foi recordado durante anos. Deu nome a acampamentos da Mocidade Portuguesa e, tal como João do Nascimento Costa, seria homenageado na toponímia, na zona da Picheleira. Tal  decisão foi simbolicamente tomada em 1961, ano em que rebentava a denominada “guerra do ultramar” e Goa, Damão e Diu eram anexadas pela Índia, algo que Portugal só reconheceria  em 1974, quando os heróis já eram outros.

Depois, nunca mais se ouviu falar do sacrifício de Maciel Chaves nas longínquas terras indianas.

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Fontes

Diário Popular

04.05.1956, 01.06.1956

 

Diário de Lisboa

28.04.1956, 30.04.1956, 02.05.1956, 04.04.1956

 

Chama

01.10.1961, 20.12.1961

 

Debates Parlamentares - Diário 200, p. 445 (1961-02-17) (parlamento.pt)

A Rua do Engº Maciel Chaves, morto na Índia | Toponímia de Lisboa (wordpress.com)

 

Elisabete Correia Campos Francisco, “Eu vi a luz em um país perdido”: o vencidismo para além dos Vencidos da Vida (de 1888 à atualidade), tese para a obtenção do doutoramento em História Contemporânea; Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2022.

 

Nestes arrozais ocorria um fenómeno nunca visto e único no País

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Só neste concelho alentejano as gentes se levantavam a favor do arroz e não contra, como no resto do País, onde se receavam as febres associadas àquela cultura. Os médicos não conseguiam explicar porque é que, em Alcácer do Sal, alegadamente, os arrozais tornavam mais sadios os ares antes doentios.

Em meados do século XIX, ainda não se sabia que era o mosquito o responsável por aquelas estranhas febres que atormentavam as populações residentes junto a zonas alagadiças e pantanosas. Pressentia-se que a cultura do arroz agravava a prevalência dessas maleitas, pelo que provocava enormes receios e até forte repúdio, chegando a aventar-se a sua proibição. Esta insalubridade gritante associada à rizicultura era desmentida por um único território, onde, a partir de certa altura, a referida produção passou a ter efeitos benéficos, que deixavam incrédulos os cientistas e o poder político, a braços com as enormes polémicas geradas no resto do País.

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Alcácer do Sal baralhava todos os estudos efetuados até ali, porque neste concelho alentejano ocorria um fenómeno que não se via em parte alguma do reino e arredores.

Ali, ao invés de induzir a males e sezões, o arroz era favorável à saúde pública.

Isto mesmo foi referido no parlamento, pelo governo e alguns deputados, para além de estar expresso num relatório desenvolvido pelo facultativo médico local*.

Estas certezas contrariavam algumas opiniões que diziam ser aquela a terra mais doentia do país, bem como as conclusões a que chegara, em 1860, a comissão estatal nomeada para averiguar os impactos da cultura do arroz na sanidade das povoações próximas.

Esses técnicos, muito criticados localmente, defenderam que, também em Alcácer, aquelas deveriam ser substituídas por outras lavras, porque tornava mórbidas as terras junto às quais os seus canteiros se estendiam. Chegavam a quantificar que a produção de 16 hectolitros daquele cereal custava a vida a pelo menos um homem.

Ora, em Alcácer do Sal pensava-se o oposto.

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As gentes locais reclamavam que, no passado, aquela era uma terra atreita a epidemias paludosas, equiparada até a uma porção de África em espaço europeu. Lembravam-se os mais antigos de as pessoas andarem sem energia pelas ruas, com a cabeça atada e a tez amarelada pela doença.

Ali residia até um grande número de indivíduos de raça negra, sobretudo em algumas povoações distantes da vila, que pareciam ter sido trazidos “por falta de concurso de gente branca que para estes sítios teria afluído, se não fossem insalubres, visto ser o mais fértil campo de toda a província do Alentejo”.

Antes existiam pântanos de água salgada e doce, onde materiais orgânicos animais e vegetais em putrefação emanavam miasmas que os tornavam os mais funestos que se conhecia. Esse sim era o problema que o incremento do arroz, a partir de 1850, tinha alegadamente atenuado.

Passaram a vir ranchadas de trabalhadores brancos, mais de três mil, que ajudavam a desbravar as charnecas e a converter os antigos pântanos e marinhas de sal em canteiros verdejantes.

Era vê-los na zona da Barrosinha e Sado abaixo, pela margem esquerda, até à Comporta e Paul, em nove léguas de extensão, onde eram cultivados 4.362 alqueires de arroz, a única cultura apropriada aos terrenos salgadiços que bordejam o rio, contribuindo para adoçar as terras e as tornar mais saudáveis, devido ao movimento constante das águas.

Dizia o relatório médico, que a cultura alagada, praticada em Alcácer do Sal, era o melhor remédio para evitar as doenças e que, sem este amanho, os efeitos para a salubridade seriam os piores possível, com “grande prejuízo” para a saúde e a vida de quem ali vivia.

Enquanto, de Norte a Sul, havia manifestações contra o arroz – chegando a registar-se motins populares, na zona de Coimbra -  as forças vivas de Alcácer do Sal vinham protestar contra a possibilidade de se erradicar os arrozais, multiplicando-se em exposições ao rei e aos decisores políticos, com centenas de assinaturas onde se explicavam os extraordinários benefícios locais daquela cultura, onde tanto já se havia investido e que matava a fome a uma multidão de gente.

Pode parecer um pormenor, mas sublinhe-se que estes abaixo-assinados eram, frequentemente, encabeçados pelos principais detentores de terras.

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Face a alegações tão convincentes, o arroz cá ficou, alargando-se um século depois com o plano de regadio do Vale do Sado, estendendo-se mesmo até ao casario de Alcácer do Sal e por outros tantos baixios incultos.

Hoje, o concelho é orgulhosamente responsável por cerca de um quinto da produção nacional.

Os mosquitos também prevalecem, mas já não transmitem o paludismo que, durante séculos, minou tanto os alcacerenses como as multidões anónimas que sempre rumaram a estes campos de trabalho.

Se a situação teria sido pior ou melhor sem arroz…é difícil de avaliar.

 

À margem

Muito se alterou no território de Alcácer do Sal em mais de século e meio. A comissão governamental encarregada de ver o impacto do arroz na saúde público apontava Montalvo como a área com pior salubridade, rodeava que estava de antigas marinhas de sal e canteiros de arroz. Curiosamente, foi aqui que se instalou, muitos anos depois, o primeiro aldeamento turístico do concelho, cujos proprietários receiam agora novas culturas, como os abacateiros e outras espécies sedentas das águas subterrâneas.

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E, independentemente das teorias mais ou menos instrumentalizadas sobre a bondade da forma como aqui se produzia arroz, esta região seria, já nos anos 30 do século XX, considerada um dos mais persistentes focos de malária em solo nacional.

Nesta época, aliás, registou-se uma recrudescência da doença que suscitou, em pleno Estado Novo, a apresentação de queixas da população e entidades do concelho de Alcácer do Sal, mas também de Barreiro, Grândola, Sesimbra, Setúbal, Sines, Almada, Montijo, Seixal, Palmela e Alcochete - junto do Ministro do Interior e Direção-Geral de Saúde, pedindo uma ação mais eficaz contra a malária.

Apesar desse reconhecimento, foi em Benavente que primeiro se instalou uma estação experimental de luta anti-sezonática. Em 1932 foram criados postos em Samora Correia, Santo Estevão, Salvaterra de Magos e Quarteira, bem como um dispensário, em Alcácer do Sal, que passou a estação, no ano seguinte, por ironia, instalada no antigo solar do visconde, grande proprietário e produtor de arroz.

Em 1934, foi finalmente criada a Estação para o Estudo do Sezonismo, em Águas de Moura – Instituto de Malariologia.

Para além da investigação e tratamento dos doentes, foram levadas a cabo numerosas experiências com o intuito de erradicar o mosquito, nomeadamente com o uso de peixes que comessem as suas larvas. O mais eficaz, no entanto, parece ter sido a aplicação generalizada, a partir da década de 40, de DDT, considerado o primeiro pesticida moderno que, efetivamente, foi muito eficaz com os insetos vetores da doença. Em Portugal, a malária está erradicada desde 1973.

Como não há bela sem senão, posteriormente, o DDT revelaria igualmente efeitos negativos na saúde humana e animal. Mostrou que, com o tempo, propiciava também a criação de “super” mosquitos, resistentes à sua ação.

Mas isso é outra história…

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* um equivalente a delegado de saúde.

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Fontes

Diário do Governo

21.11.1848; 08.02.1859; 09.02.1859; 21.02.1859; 26.02.1859, 23.03.1859; 28.02.1861; 26.07.1861; 17.01.1862; 25.01.1862; 16.03.1862;10.06.1862.

Disponível em digigov.cepese.pt

José Barata da Silva, Reflexões sobre os arrozaes e as Comissões em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1861. Disponível em books.google.com

Relatório sobre a cultura do arroz em Portugal e sua influência na saúde pública, Comissão criada pela portaria de 16 de maio de 1856, Lisboa, Imprensa nacional, 1860.

Mónica Alexandra de Almeida Monteiro Saavedra, “Uma Questão Nacional” - Enredos da malária em Portugal, séculos XIX e XX, tese para obtenção de doutoramento em Ciências Sociais Especialidade: Antropologia Social e Cultural, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2010. Disponível em repositório.ul.pt

https://aparroz.com/

Malária | Hospital da Luz

Fernando Borges, A Malária no Vale do Sado – perspetiva histórica - A Memórias do Instituto de Malariologia de Águas de Moura, Comunicações do simposium satélite, Palmela, 29 nov. 2001 – 07 abr. 2002.

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

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Fernando Borges, A Malária no Vale do Sado – perspetiva histórica - A Memórias do Instituto de Malariologia de Águas de Moura, Comunicações do simposium satélite, Palmela, 29 nov. 2001 – 07 abr. 2002.

http://www.herdadedacomporta.pt/pt/gca/index.php?id=14

Descobre os lugares mais "instagrameáveis" de Alentejo (cndportugues.com)

Pela imprensa (28): em busca da baleia radioativa

 

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Ora aqui está um anúncio que, como já alguém aqui disse, levanta toda uma série de interrogações. O traço, moderno, pertence à primeira agência de publicidade portuguesa que, em 1917, divulgava um enigmático adubo de baleia radioativo. Mas, como se chega a um adubo de baleia radioativo?

É este o preparado milagroso que enche as sacas abraçadas pelas raízes desta bonita árvore. Ali encontra força para crescer e fazer vingar as suas folhas e frutos semelhantes a grandes moedas douradas.

A farinha de ossos e carne de baleia, subproduto da indústria de óleo extraído daquele grande mamífero aquático, era usada como fertilizante agrícola e complemento na alimentação de gado. Até aí, há pouca novidade. Mas, como chegamos a um adubo radioativo? Seria luminoso?

As próprias fezes das baleias são um poderoso adubo para o fitoplâncton que, por sua vez, pode ajudar a neutralizar o CO2, produzido pelos combustíveis fósseis. Mas e a radioatividade?

No anúncio não é só essa questão que se apresenta intrigante. As letras H.B.C. suscitam toda outra gama de questões.

São as iniciais da firma que produz o adubo? Não encontrei evidência disso, apesar de ainda ter aventado a hipótese de corresponder a Hudson's Bay Company, fundada no século XVII, que durante muito tempo se dedicou ao comércio de peles de animais, no Canadá e Estados Unidos da América.

Outra hipótese explorada é serem as iniciais de uma qualquer substância. Há, por exemplo, uma hormona assim representada - a corticosterona - e esta é também a designação de um produto usado como protetor de sementes, mas já proibido em alguns países devido à sua toxicidade.

A questão mesmo é: como chegamos à radioatividade? E a resposta pode até ser: não chegamos.

Pode tratar-se apenas de uma manobra publicitária.

É que, em inícios do século XX, a radioatividade era argumento para vender quase tudo, de águas a produtos de beleza, de alimentos, a tintas, de relógios, a adubos…

Antoine-Henri Becquerel desenvolveu estudos que levaram à descoberta da radioatividade. A radiação eletromagnética foi descoberta em 1895, por Wilhelm Röntgen e, três anos depois, Marie e Pierre Currie identificaram o elemento rádio.

Estes avanços científicos deram origem a todo um novo mercado de produtos e serviços com elementos radioativos, quer pela particular fosforescência do rádio, que o tornava especialmente atrativo, quer pelas suas alegadas qualidades curativas para uma enorme quantidade de doenças.

Ora, se é um facto que a maior parte desses produtos tinham na sua composição, elementos formulados a partir do rádio, também é certo que outros, embora o apregoassem, não o possuíam.

Contas feitas, foi beneficiado quem usou estes bens falsamente radioativos, porque se provaria, mais tarde, que os verdadeiros eram extremamente nocivos para a saúde.

Resta dizer que este é um trabalho da Empresa Técnica Publicitária (ETP), fundada por Raul de Caldevilla, que, no mesmo ano, lançou o filme inaugural da publicidade em Portugal: “Um chá nas nuvens”. 

 

Fontes

www.purl.pt

Biblioteca Nacional de Portugal

Adubo Radioativo de Baleia, ETP-Empresa Técnica de Publicidade, Porto, 1917.

CDU: 631.8(084.5)

766(=1:469)"191"(084.5)

 

Karel Pontes Leal, A Ciência dos Discursos Publicitários de Produtos Radioativos do Início do Século XX: Reflexões para o Ensino de Ciência a Partir da História das Garotas do Rádio, tese para obtenção do doutoramento na área do Ensino da Física, São Paulo, 2023.

 

Disponível aqui:

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/81/81131/tde-15082023-163918/pt-br.php

 

Sarah Alves, Batom radioativo: a história de cosméticos que fizeram sucesso no passado. Disponível aqui:

https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/08/26/cosmeticos-radioativos-o-que-eles-ensinam-sobre-o-controle-dos-produtos.htm

 

Sophie Yeo, Batom radioativo: a história de cosméticos que fizeram sucesso no passado, BBC Future. Disponível aqui:

https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-55768723

 

Waldemar de Almeida, José Fiúza, Cláudio Marques Magalhães, Celso Merola Junger, Agrotóxicos, Scielo Brasil, 2006. Disponível aqui: https://www.scielo.br/j/csp/a/fqHFphQtcS6JYcNmjYjhvzq/

 

Arthur J. Ray, Hudson's Bay Company, The Canadian Encyclopedia. Disponível aqui:

https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/hudsons-bay-company

 

 

https://www.avidaportuguesa.com/pt/loja/cartaz-adubo-de-baleia

 

https://en.wikipedia.org/wiki/Hudson%27s_Bay_Company

 

https://en.wikipedia.org/wiki/Carboxyhemoglobin