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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Pela imprensa (29): aprender a crescer com o pai de todos os personal trainers (revisto e aumentado!)

 

 

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Crescer. Crescer alguns centímetros, em qualquer idade. É esta a extraordinária promessa lançada pelo anúncio do método Desbonnet. Um verdadeiro milagre ao alcance dos insatisfeitos com a altura que a genética - ou Deus, conforme a crença de cada um - lhes proporcionou. Ser alto e espadaúdo estaria, então, ao alcance de qualquer um…que tivesse 40 francos para enviar ao professor francês autor deste método, tão fantástico quanto inovador. E isto, pasme-se, sem perigosos exercícios de enforcamento, que poderiam tentar os mais desesperados.

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Anunciava-se este procedimento como o “maior descobrimento do século em matéria de cultura física” e já comprovado perante a Corporação Médica, com o crescimento em cerca de sete centímetros verificado até em pessoas com mais de 40 anos.

Tal feito era exemplificado pelo próprio autor da descoberta, que garantia não utilizar qualquer droga ou práticas arriscadas para obter estes resultados assombrosos.

O tratamento, ao que se percebe, um aparelho para esticar, depois de devidamente pago, seria enviado de Paris, em conjunto com o certamente imprescindível livro de instruções.

Parece uma coisa impossível, retirada de um qualquer livro de ficção, mas o método do senhor Desbonnet, é quase um Ovo de Colombo, pela simplicidade aparente.

Se a pessoa é atarracada, anda curvada ou encolhida, a solução é esticá-la!

 

le grandisseur.pngO misterioso aparelho, que aqui apresento graças ao contributo dos meus leitores (ver comentários), é, no fundo, um conjunto de correias e correntes que ajudam a melhorar a postura, a alongar o espaço entre as vértebras, alegadamente eliminando de forma mecânica eventuais deformações e “oses” – leia-se lordose, escoliose, cifose – com sucessivos e progressivos estiramentos, sem dor ou esforço.

Se anda direita, certamente até vai parecer maior, como promete o anúncio! Será?

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Naquele ano, de 1914, já se teriam vendido em Portugal mais de 180 aparelhos, mas não encontrei testemunhos dos que se conseguiram esticar com sucesso através dos ensinamentos do senhor Desbonnet, até porque pouco depois desta publicação estalaria a 1ª Grande Guerra e a Europa tinha muito mais com que se preocupar.

De qualquer das formas, monsieur Desbonnet (na imagem) teve uma muito longa e ativa vida, validando as suas teorias sobre desporto.

Este nome, que nos dias de hoje não promete grande coisa, naquele tempo era uma verdadeira celebridade, um visionário da cultura física, que montou centenas de ginásios e arrastou multidões ávidas da boa forma que apregoava.

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Edmond Desbonnet (1867 – 1953) é, assim, o pai de todos os personal trainers, ainda por cima com o hábito tão moderno de documentar os progressos dos alunos em numerosas fotografias que, à falta de redes sociais, publicava em revistas e livros da especialidade, acompanhadas por textos inspiradores escritos pelo próprio, já agora, como se vê, com uma musculatura invejável!

Ele fez com que a boa forma se tornasse moda em finais do século XIX e início do século XX e não se limitou ao seu país natal, França, tentando “exportar” os seus ensinamentos e métodos, como mostra o curioso anúncio publicado na imprensa portuguesa, que aqui esmiuçamos.

 

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A propósito, já aqui escrevi como a educação física regenera a raça e como certas pílulas orientais faziam crescer os seios...

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

Illustração Portugueza

09.02.1914; 23.03.1914.

Le grandisseur du professeur Desbonnet | Gallica

http://muscul.az.free.fr/sp/historic/desbonnet/desbonnet_03.htm#google_vignette

https://en.wikipedia.org/wiki/Edmond_Desbonnet

https://starkcenter.org/2020/12/edmond-desbonnet-la-rois-de-la-force-and-the-chronicling-of-history/

https://issuu.com/pastissues/docs/la_culture_physique_-_may_1910

https://www.britannica.com/topic/physical-culture#ref858771

https://legendarystrength.com/edmond-desbonnet/

Imagens

Illustração Portugueza

09.02.1914; 23.03.1914.

https://issuu.com/pastissues/docs/la_culture_physique_-_may_1910

https://en.wikipedia.org/wiki/Edmond_Desbonnet

Edmond Desbonnet — Wikipédia

As primeiras impressões são as que contam

 

impressões de joaquim gomes à entrada no Limoeir

 

Suicidou-se aos 32 anos o homem que, inadvertidamente, ficaria na história da medicina legal em Portugal. Tudo por causa de um atrevido jovem estudante de medicina de serviço na Morgue de Lisboa.

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Joaquim Gomes morreu de forma inglória enforcando-se sob a ponte-cais dos Vapores Lisbonenses, ao Cais do Sodré, em Lisboa (na imagem). Que se saiba, nada na sua vida de 32 anos o fez destacar dos demais, para além do facto de ter resvalado para a pequena criminalidade, o que o arrastou para os tribunais, onde foi julgado e condenado. Quando foi encontrado sem vida, ninguém sabia quem era, pois não tinha consigo qualquer identificação, nem se apresentaram testemunhas do suicídio. Era impossível prever que, involuntariamente, ficaria na história do nosso País.

Foi, portanto, assim, anónimo, sem rótulo, que deu entrada na Morgue de Lisboa (na segunda imagem) para ser autopsiado, a 8 de novembro de 1904, dois dias depois de ter tomado a decisão final de se suspender pelo pescoço.

Era solteiro, analfabeto e natural de Arcos de Valdevez, onde talvez apenas os pais, Manuel e Rosa, se ainda fossem vivos, se lembrariam dele.

Não vislumbraria outra saída para a sua triste existência, saldada que estava a dívida que tivera para com a justiça, com a pena de 60 dias de prisão que cumprira na Cadeia do Limoeiro, que o havia já devolvido à rua dois meses antes. Nada o distinguia da enorme massa humana que pululava na capital, vinda de todos os recantos do País em busca de uma vida melhor, apenas encontrando miséria e adversidade.

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Quis o destino que, nessa tarde, estivesse a assistir às perícias um aluno do quinto ano de medicina especialmente curioso e particularmente interessado em dactiloscopia, insondável tema sobre o qual pretendia apresentar a sua tese.

Apesar de a recolha de impressões digitais para identificação de cadáveres só ter sido instituída na Morgue de Lisboa três anos depois, pelo então diretor, Azevedo Neves, o tal aluno pediu autorização para fazer a sua primeira colheita, logo após a autopsia daquele desconhecido.

Por sorte, teve a ajudá-lo na manobra, Leonel Pereira, classificador e arquivista do Posto Antopométrico Central, da Cadeia do Limoeiro, que fez chegar ao tal estudante empenhado a ficha de um homem recentemente libertado e cujo rasto se havia perdido. Tratava-se do preso nº1833.

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Ora, foi a partir do cruzamento das finas e ténues linhas das impressões também registadas na ficha e das marcas dos dedos do cadáver sem nome que Rodolfo Xavier da Silva – assim se chamava o aspirante a médico – fez aquela que foi, em Portugal, a primeira identificação de um cadáver a partir das impressões digitais.

Foi o início de um longo percurso de utilização da dactiloscopia para a identificação humana, em mortos e vivos. E, para que este sucesso fosse o início de muitos, esta matéria foi introduzida, logo nesse ano letivo, nas avaliações da cadeira de medicina legal na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Por coincidência, ao tal aluno interessado calhou em sorte precisamente o exercício dessa temática. 

Nada que assustasse Rodolfo Xavier da Silva (na imagem), que seria também o autor da primeira tese sobre o assunto, e de numerosa obra sobre medicina legal. Foi diretor do Instituto de Criminologia de Lisboa, criado em 1919, e também enveredou pela política, tendo chegado por três vezes a ministro: dos Negócios Estrangeiros, do Trabalho e da Instrução.

 

À margem

Foi graças ao senhor Alphonse Betillon e o seu sistema de antropometria adaptado à criminologia, que se sistematizou a recolha de dados físicos distintivos daqueles que eram apanhados nas malhas da justiça. Os detidos eram cuidadosamente observados e medidos em diversas partes do seu corpo, facilitando a sua identificação em futuras ocasiões, quer estivessem vivos ou mortos.

ficha de joaquim gomes à entrada no Limoeiro.png

O método foi um tal sucesso, que rapidamente foi adotado por toda a Europa.

Estas fichas passaram depois a apresentar as impressões digitais e as fotografias dos indivíduos, acrescentando mais informação que pudesse ser usada pela polícia.

Em Portugal, foi o então diretor da Morgue de Lisboa, Azevedo Neves que, em 1911, estipulou, a recolha das impressões digitais dos mortos entrados naquele serviço, apesar dessa prática já acontecer, informalmente. Pretendia, assim, evitar erros e trocas que o simples reconhecimento com uma etiqueta atada por um cordel a um dedo do pé poderia suscitar.

Como a identificação à chegada era elaborada com base na informação fornecida pelas autoridades de origem, pretendia-se, assim, garantir “não a identidade da pessoa, nome, filiação, etc.), mas a identidade do cadáver”, que ficaria associado ao seu conjunto de impressões digitais, únicas e intransmissíveis, como era explicado no Guia de Autópsias escrito pelo referido médico.

Por cá, as morgues foram criadas por carta de lei de agosto de 1899, durante o reinado de D. Carlos. Fundaram-se junto das escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e  Porto e da Universidade de Medicina de Coimbra.

Funcionavam em condições terríveis de segurança e higiene, o que só se começaria a resolver com a fundação do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, pelo então presidente, Sidónio Pais, já em 1918.

Curiosamente foram estes dois governantes, que acabaram assassinados, os responsáveis pela melhoria das condições para perícias médico-legais, muito úteis para perceber homicídios, mas que de nada valeram para incriminar os verdadeiros responsáveis pelas suas próprias mortes.

Mas isso é outra história…

 

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A criminologia científica dava então os primeiros passos, graças a esforços como os de Azevedo Neves e os contributos de alguns considerados excêntricos, como o “Ferraz das caveiras”.

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Fontes

Rodolfo Xavier da Silva, in Archivo de Medicina Legal, dir. Azevedo Neves, 1º volume, 1º ano 1922, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1923. pp 436-440.

Disponível no Centro de Documentação da Polícia Judiciária (cuja eficiência agradeço)

 

Francisco Moita Flores, Mataram o Sidónio, Alfragide, Leya SA, 2010.

Instituto de Criminologia - Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)

Rodolfo Xavier da Silva (Ministro da Instrução Pública; Médico, Diretor da 1.ª secção do Instituto de Criminologia; Assistente da Faculdade de Medicina) - Arquivo Histórico da Presidência da República - Archeevo (presidencia.pt)

 

1921-1936 | Secretaria-Geral do Ministério da Educação | Portugal

 

Manuela Marques, Sidónio Pais e o Instituto de Medicina Legal – Importância na vida e na morte, 15.03.2022. Disponível aqui:

Microsoft PowerPoint - Sidónio Pais e o Instituto de Medicina Legal

 

Imagens

Rodolfo Xavier da Silva, in Archivo de Medicina Legal, dir. Azevedo Neves, 1º volue, 1º ano 1922, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1923. pp 436-440.

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Rodolfo Xavier da Silva – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Ponte-cais da Parceria dos Vapores Lisbonenses, PT/APLSS/PL/02-03/01/2-12-001, PT/APLSS/PL/02-03/01/2-12-002

 

Arquivo Municipal de Lisboa

Edifício da antiga Morgue de Lisboa, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001862

Corrupção e desvio de dinheiro nas instituições públicas concelhias

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Sogro e genro “cozinharam” o desvio de fundos que acabou com a demissão de ambos, enquanto, na câmara, presidente e vereadores tiveram de devolver o dinheiro que também estava em falta nas contas municipais. No geral, as tarefas públicas eram desempenhadas de forma negligente e desorganizada.

O recebedor da comarca, o diretor dos correios e o escriturário do escrivão da fazenda foram demitidos por desfalque e incumprimento generalizado das suas obrigações. No mesmo período, presidente e vereadores da câmara são obrigados a repor o dinheiro em falta nas contas do município. Tudo isto aconteceu no período de apenas um ano (1865-1866), no aparentemente pacato concelho alentejano de Alcácer do Sal.

O primeiro alarme foi dado pela análise ao cofre da recebedoria da Comarca, onde existiam apenas 820$00 réis, provenientes das cobranças daquele mês de outubro, mas que era expectável que estivesse cheio, com perto de 13 contos de réis.

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É que o recebedor, Vicente Francisco Ribeiro, havia sido por diversas vezes “intimado a regularizar as transferências de fundos para as caixas centrais do Ministério da Fazenda, a fim de não conservar em seu poder avultados saldos, sem que se conseguissem resultados dessas diligências”.

Em resultado destas inconformidades, é demitido, cinco anos após ter sido nomeado, em despacho assinado pelo conhecido António Maria Fontes Pereira de Melo, que seria primeiro-ministro seis anos depois.

As explicações de Vicente Francisco Ribeiro fizeram as atenções das autoridades centrar-se no sogro, com quem contaria para entregar as verbas em falta nos cofres centrais.

Trata-se de António Pedro Cardoso Morte Certa, diretor dos correios da mesma vila de Alcácer do Sal.

Ora, com esta informação, um mês depois, o conselheiro diretor-geral dos correios e postas do reino também fazia publicar a sua demissão. Segundo alega, aquele responsável, em funções desde a criação daquela diretoria, em 1853, “não só se ausentava do seu emprego sem a devida licença, conservando a repartição a seu cargo na maior confusão e desordem possíveis”, mas também entendia que da “pressão exercida sobre o seu genro” – o ex-recebedor da comarca – “resultou o avultado alcance” – leia-se desfalque ou desvio de dinheiro – “em que este foi encontrado e em consequência do qual foi demitido”.

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Refira-se que António Pedro Cardoso Morte Certa também fazia parte de uma sociedade que ganhara a concessão para a cobrança do real da água* nos concelhos de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines, igualmente devedora de 1.700$000 réis aos cofres públicos.

O ex-diretor dos correios era, posteriormente, condenado a pagar o remanescente do valor total em falta nas suas contas e nas do genro.

Estando em parte incerta, tal responsabilidade seria assacada à administração da sua massa falida, acrescido de juros a 6 por cento.

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Poucos meses depois deste escândalo, publica-se um acórdão do Tribunal de Contas relativo às finanças da Câmara Municipal de Alcácer do Sal, mais propriamente ao exercício de 1862-63, nas quais se apontava uma discrepância da responsabilidade do tesoureiro, Manuel dos Reis Azedo.

Determinava-se que o presidente e os vereadores eram solidariamente devedores de 218$417 réis em falta.

Embora o município tenha impugnado tal decisão, alegando que a verba deveria passar para o ano seguinte como dívida ativa, o Tribunal de Contas não concordou e decidiu que tinham mesmo de “entrar com ela nos cofres municipais”.

Como se já não bastasse tamanhos embaraços, em novembro, é publicada nova demissão.

Desta vez, o visado é Agostinho Gomes de Almeida, despedido de escriturário do escrivão da fazenda naquele mesmo concelho, devido “à irregularidade do seu serviço e menosprezo com que tratava os interesses da fazenda”.

À margem

À parte de alguns nobres exemplos dos que se dignaram a conhecer melhor esta terra e as suas gentes, deixando-se conquistar, por cá se instalaram e criaram família - como este familiar de Sacadura Cabral ou o homem que ali anunciou a Implantação da República -  muitos eram os funcionários públicos que, ao serem colocados em Alcácer do Sal, tudo faziam para se manterem afastados, permanecendo de licença meses e meses a fio, para além de tentarem recolocação em destino mais apreciado.

Não seria fácil, por isso, conseguir pessoa “idónea, competente e afiançada com a fazenda nacional” que se mantivesse no cargo de recebedor da comarca de Alcácer do Sal, como pedia o anúncio publicado um mês após a saída de Vicente Francisco Ribeiro e, de resto, para outros cargos públicos como diretor dos correios, que obrigava a avultada caução.

Isso mesmo mostra a sucessão de nomes que por ali passaram após as demissões atrás relatadas e o pouco tempo nos cargos respetivos, o que também acontecia, genericamente, com os professores, os delegados dos procuradores régios ou os juízes, que se queixavam amargamente aos seus superiores da falta de segurança e condições de trabalho em Alcácer do Sal, nomeadamente da negligência grosseira dos guardas prisionais, que até deixavam entrar dinheiro e mulheres na cadeia.

Poucos, vindos de fora, permaneciam neste concelho extenso, com péssimos acessos e pior fama de insalubridade.

O mesmo se aplicava aos médicos do partido – posição equivalente à de delegado de saúde – cujos concursos para Alcácer do Sal e Torrão ficavam frequentemente desertos e também não se demoravam por estas bandas.

E, o que dizer dos sacerdotes da igreja católica? Obrigados a calcorrear estas terras extensas e despovoadas, à procura de almas para trazer ao seu rebanho. Tal era o sofrimento, que foram junto das cortes reivindicar meios de subsistência que os equiparassem aos outros servidores do Estado.

Mas isso é outra história...

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*O Real da Água era um imposto sobre bens de consumo. Inicialmente incidia sobre o vinho, mas foi depois alargado a outras bebidas e alimentos. Correspondia a um real por cada canada, arrátel ou outra unidade de medida em vigor, com o objetivo de angariar dinheiro para a construção ou a manutenção de canos, fontes, aquedutos e outras estruturas de abastecimento de água.

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Este artigo, com pequenas alterações, foi publicado na edição de setembro de 2024 do jornal Voz do Sado.

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Fontes

Diário do Governo

16.02.1864; 09.01.1865; 04.03.1865; 22.04.1865; 21.06.1865; 27.10.1865; 30.10.1865; 27.11.1865; 15.03.1866; 14.03.1866; 21.05.1866; 26.07.1866; 24.09.1866; 11.10. 1866; 24.12.1867; 04.12.1867; 17.12.1867; 18.03.1868; 05.09.1869.

Real de Água - Portugal, Dicionário Histórico (arqnet.pt)

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

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Cardápio de estranhos impostos de A a Z (1)

 

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Os impostos são uma realidade milenar a que poucos produtos e atividades conseguiram escapar ao longo dos séculos. Analisar as listas de bens taxados numa determinada época, mostra-nos os produtos mais importantes – alguns hoje desconhecidos – e as particularidades de cada região. Mostra também que o longo braço do fisco é muito criativo quanto à forma de angariar dinheiro.

 

A cobrança de impostos está documentada há pelo menos cinco mil anos e constitui uma das principais fontes de receita para os senhores da terra, os Estados e os municípios que, espera-se, utilizam essas verbas para algum fim específico e atividades de bem comum, que as populações nem sempre compreendem e com as quais, por vezes, discordam. Ora, este era um expediente também muito utilizado a nível local e é extraordinário o que se aprende sobre a vida de uma determinada época apenas analisando a forma como o fisco estende os seus tentáculos aos rendimentos dos cidadãos.

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Tal como hoje, em meados do século XIX, os municípios lançavam as suas contribuições indiretas e diretas, estas últimas incidindo sobre os bens mais transacionados ou com valor especialmente relevante em cada concelho.

Mostrando bem o que era essencial aos portugueses de então, de Norte a Sul, o comum era taxar o vinho e a aguardente (sobretudo), mas também a cerveja e a jeropiga; a carne e o peixe nas suas diversas formas, o sal, o azeite, bem como os cereais e o pão.

Concelhos havia que se abstinham de fustigar o povo com taxação desnecessária, enquanto outros, com muita criatividade e aproveitando um leque vasto de matérias em circulação, tentavam angariar o máximo. É sobretudo nestes que saltam à vista as especificidades regionais e onde encontramos muitos produtos hoje totalmente esquecidos e cuja utilidade é difícil de descortinar à luz dos nossos dias.

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Espreitemos então os impostos lançados nos longínquos anos de 1865-1866…

No Algarve, por exemplo, Faro e Olhão destacam-se pelo completo cardápio de substâncias e bens alvo de tributos mais ou menos elevados.

No primeiro caso, taxava-se de A[ço] a Z[uarte] (um tecido semelhante à ganga)), passando por elementos tão distintos como alcatrão ou alfazema; chocolate ou drogas de botica; bezerros da Flandes ou grós de Nápoles (uma seda encorpada). O mesmo para Olhão - de A[bóboras], a Z[arcão] – taxando até os copos de água, a 5 reis cada dois!

Neste município algarvio, batatas redondas e compridas tinham diferente imposto, que alcançava, igualmente, a marmelada, o mel, a briche e a baetilha (20 reis o metro), as botinas de duraque (tudo têxteis hoje menos comuns); a par de um conjunto de substâncias coloridas, como o verde imperial, o vermelho fino, o amarelo inglês, o azul ultramar ou o anil, dez reis a cada meio quilo. Portimão seguia a mesma batuta, com destaque para os aromas fortes da canela, do chá e do chocolate, da erva-doce, do tabaco e do rapé, bem cheirosos e bem pagos!

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Ali também se cobrava um real por cada quilo de atum salgado, peixe escasso nestas listagens (mas também presente em Constância, por exemplo), tal como o congro, taxado em Castro d’Aire, em contraste com a sardinha, muito visada pelo fisco municipal e frequentemente mencionada de forma expressa, destacada dos outros produtos do mar, reforçando a sua grande importância na alimentação dos portugueses.

Na Madeira, a par do pagamento de 2 reis em cada o boião de gingerbeer, produto raro e apenas na mira do fisco em Ponta do Sol, São Vicente e Porto Moniz. No Machico surgem taxas sobre uns “vinhos artificiais” cujo teor é difícil de perceber, tal como o vinho cozido, que pagava 100 reis por carga, em Almeida, na Beira Alta.

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Já Leiria, demonstrando um certo cosmopolitismo, entre outras bebidas, taxava as botijas de genebra, os vinhos do Porto e da Madeira.

Igual sensação para Ponta Delgada, que cobrava meio real em cada pé quadrado de tabuado da América.

Percebe-se que, enquanto no Sul é comum encontrar impostos lançados sobre os figos secos, o mesmo suceda com as castanhas, no norte e centro. É o caso do concelho de Pombal, que cobrava 40 reis por cada saca.

Elvas, no Alentejo, provavelmente por se situar na fronteira, tributava mais de 30 dezenas de produtos, com grande destaque para a variedade de medidas de queijos e os peixes do rio. Em Oliveira de Frades pagava-se 40 reis em cada cesta de queijo da serra e 100 nos queijos da Lapa.

 Em Vila Real, a arraia, o polvo e a lampreia pagavam, assim como o tremoço. Já, em Arcos de Valdevez, a fressura (vísceras) rendia 200 reis para o erário público, o mesmo que uma dúzia de fogo de ar, produto cuja taxa descia para 120 reis, em Coura, Melgaço e Ponte da Barca, município onde se referenciava o vinho de maçã.

À margem

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Enquanto alguns concelhos faziam incidir os impostos nos produtos, outros, como é o caso de Pombal, taxavam diferentemente cada tipo de comerciante. Assim, cada tenda de fazendas brancas e de lã, sola ou courame pagava 60 reis; mas as de quinquilharia só despendiam 10. Em Castro d’Aire, São João da Pesqueira e Mangualde eram ainda mais específicos, distinguindo um infindável leque de vendedores, dos trapeiros, aos de tamancos; das obras de ferro e lata aos doces; das ferragens à retrós; das cestas e açafates às escudelas (tijelas) de pau; do açúcar e mais géneros coloniais, aos bodegueiros; dos fatos feitos e sombreireiros, aos violeiros e caldeireiros; dos esteireiros, aos vendedores de fósforos.

O mesmo acontecia em Ferreira do Zêzere, onde pagam as tendas de borel, ourives e solas e chapéus, assim como os bufarinheiros e os bacalhoeiros que quisessem montar arraial em feiras e mercados… Nada nem ninguém estava a salvo da abrangente mão do fisco.

Que o digam os pequenos produtores de inhame da ilha de São Jorge, nos Açores. Embora considerado alimento de escravos e pobres, passaria a pagar o dízimo, o que resultou num motim popular que eclodiu em 1894 e teve episódios nos anos seguintes, sempre que o arrematante do imposto tentava fazer os faltosos pagarem, obrigando-os a carregar o inhame às costas, em condições muito penosas, desde as fajãs até ao local de cobrança. Foi apenas uma das revoltas que a fome amassou.

Mas isso são outras histórias…

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Este tema tem sequela, aqui: Cardápio de estranhos impostos de A a Z (2) - O sal da história

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Nota 1: não se pretende aqui fazer uma lista exaustiva de produtos alvo de impostos em cada um dos municípios do País, mas sim destacar as especificidades regionais e as particularidades da época.

Nota 2: as imagens são meramente exemplificativas do ambiente de feiras e mercados.

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Fontes

Diário do Governo, 04.07.1871

https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolta_dos_inhames

 

Imagens

Illustração Portugueza

16.11.1903, 30.11.1906, 21.12.1903, 18.01.1904, 26.01.1904, 04.06.1904, 27.06.1904.