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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (119): "arruinadamente" fingidas

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Estas ruínas já foram a principal atração do jardim. Testemunhas silenciosas de tempos longínquos, de uma vivência que já não volta...ou cenário ardilosamente montado para encantar damas e cavalheiros em passeio, quadro pitoresco tão ao jeito da época em que nasceram duma imaginação mais habituada às efémeras construções teatrais, do que às obras destinadas à eternidade.

portao jardim publico.png

Corria o ano de 1858, quando o arquiteto-cenógrafo Giuseppe Cinatti se deslocou a Évora para traçar a nova a magnífica residência apalaçada do abastado lavrador José Maria Ramalho Dinis Perdigão, onde hoje está instalado o Tribunal da Relação. O projeto correu tão bem, que o italiano seria incumbido pelo município de idealizar profundas intervenções nessa área da cidade, em parte patrocinadas pelo seu mencionado “patrão” alentejano, procurando modernizar e embelezar aquela que seria a envolvente da sua nova casa.

Foi essa vaga que transformou para sempre os terrenos baldios do Rossio de São Brás. Eram então um ermo conhecido pelas atividades indecentes que ali ocorriam, nada condicentes com os importantes conjuntos patrimoniais próximos: o convento de São Francisco e o antigo Paço de D. Manuel (na próxima imagem).

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Cinatti – e outros que lhe seguiram - também acabaria por reabilitar estes monumentos, até porque se encontravam num estado deplorável de degradação e havia o argumento de ali instalar uma escola noturna, o tribunal judicial e, na praça fronteira, um mercado de que a cidade carecia.

Mas, a maior novidade, bem ao sentir do espírito de meados do século XIX, foi a implantação de um enorme jardim de inspiração inglesa, um passeio público com recantos bucólicos, lagos, cursos de água, elementos escultóricos, caminhos, que serpenteiam por entre o arvoredo e os canteiros. Como cereja neste apetitoso bolo romântico coreografado para parecer natural, criou-se uma ruína!

É nesse contexto que nasce este conjunto arruinadamente composto que passou a ser um dos principais elementos de atracão, local para encontros amorosos e observações platónicas da paisagem, pois servia como miradouro do belo espaço envolvente.

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Cinatti não inventou as peças deste puzzle, mas teve a inteligência de conjugar elementos verdadeiramente históricos de diferentes épocas numa composição invulgar.

Utilizou uma delapidada torre do século XIV, à qual foram acrescentadas ameias e artísticos merlões*, restos da antiga muralha e cantarias vindas de outras paragens, nomeadamente janelas de feição mudéjar do século XVI, resgatadas de a demolição ocorrida antes, do antigo Paço de D. Afonso de Portugal.

Um insólito quadro forjado em pedra, deposta de forma a simular divisões próprias de uma velha casa senhorial, cujas linhas aludem à verdadeira e triunfal ruína, ali a dois passos: a Galeria das Damas do Paço de D. Manuel.

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Em 1867, o jardim já dava um ar de sua graça, sendo considerado um dos melhores do País, sinal do engenho de Cinatti, que trabalhou gratuitamente nesta obra municipal.

Circulava então uma subscrição pública para custear o gradeamento e corria-se contra o tempo para garantir algum tipo de restauro e adaptação dos edifícios históricos próximos, tentando ir ao encontro das exigências do Estado para os ceder à câmara.

Mas, nem todos se preocuparam em restaurar.

Caetano da Câmara Manoel, engenheiro de obras públicas encarregue de prosseguir os trabalhos, arrasaria o fecho do imponente Aqueduto da Água de Prata, mandado construir por D. João III; várias alas do antigo paço régio e do contíguo conjunto conventual, a ligação entre estes e dois claustros.

paço d manuel em ruina.png

Diga-se, em jeito de conclusão, que estas não foram as últimas desgraças que afetaram este conjunto monumental, cuja cobertura abateu em 1881, foi depois convertido em teatro e ficaria muito destruído pelo fogo, em 1916.

As intervenções referidas também não foram as derradeiras de Cinatti em Évora, onde estaria ligado à restituição do Templo de Diana à sua atual feição, também ela de ruína cenográfica.

Estas também não são as únicas ruínas fingidas do País...e Cinatti, anos depois, até foi um dos responsáveis por uma célebre derrocada que lhe custou muito do prestígio granjeado até ali.

 

 

 

 

 

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*Os merlões são os muros ou parapeitos existentes entre duas seteiras ou ameias, nos edifícios fortificados. São, errada e comummente denominados de ameias. À esquerda nesta imagem.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Refira-se que estas ruínas fingidas que tanto sucesso fizeram no século XIX e continuam a suscitar curiosidade ainda hoje não apresentam qualquer painel explicativo e encontram-se (novembro de 2024) vedadas ao público com fita balizadora que não ajuda nada ao quadro.

 

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Fontes

 

Joana Esteves da Cunha Leal, Giuseppe Cinatti (1808-1879) Percurso e Obra, Dissertação de Mestrado em Historia da Arte Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1996. Disponível aqui: http://hdl.handle.net/10362/64933

 

 

Celestino David, Évora encantadora: impressões, arte, história,

Livraria Nazareth, Évora, 1923. Na Biblioteca Nacional, em linha: https://purl.pt/43460

 

www.monumentos.pt

  

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Imagens

Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora

cm-evora.pt/wp-content/uploads/2020/07/Poster-Jardim.pdf

PT AFCME AF/CME/3032/334

PT AFCME AF/CME/3032/274

PT AFCME AF/CME/3032/267


PT AFCME AF/DFT/104/7541

José António Barbosa, PT AFCME AF/GPE/4248/444

 

https://arqm.cm-evora.pt/index.php/pt-afcme-vpc-4037-266

 

Celestino David, Évora encantadora: impressões, arte, história,

Livraria Nazareth, Évora, 1923. Na Biblioteca Nacional, em linha: https://purl.pt/43460

 

Paisagens e sons do século XX, Universidade de Évora:

https://www.google.pt/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fdspace.uevora.pt%2Frdpc%2Fbitstream%2F10174%2F28278%2F3%2FPaisagens%2520Sonoras.pdf&psig=AOvVaw1Mk95qvL2Uu7nCPmObgXkL&ust=1731341952679000&source=images&cd=vfe&opi=89978449&ved=0CAMQtaYDahcKEwiw-ZiiltKJAxUAAAAAHQAAAAAQBw

 

Lido em parte incerta (3)

Flanar

Flanar.jpg

 

Diz-se de quem passeia ao acaso, distraidamente, sem rumo certo, apenas para passar o tempo, ver montras ou quem passa.

Diz-se de quem vagueia por distração, sem objetivo definido. 

Diz-se de quem borboleteia, sem se fixar num ponto ou atividade.

flanando.png

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lido por aqui e por ali:

“Todo o dia anda a flanar

No Chiado ou na Avenida,

Visita a dona Garrida,

Vae às lojas sem comprar.

 

Deixa a criada a mandar,

A patroa anda na lua,

Tem um jantar de perna

Feito com toda a bodega

Porque anda n’esta refrega,

A toda a hora na rua…”

In Artur Arriegas, A Canção da Minha Terra – Fados, Lisboa, Impressão C. do Cabra, 1907. p.42.

 

Fontes

Passear sem destino e sem pressa, por mera distração = FLAINAR

"flanar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/flanar.

 

Passear ociosamente; laurear; flainar

Do francês flaner, «andar sem destino»

Porto Editora – flanar no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-08-28 14:48:02].

 

https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/flanar

Imagens

Arquivo Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel,

PT/AMLSB/CMLSBAH/COPA/001/17340

 

Illustração Portugueza, 15. 04.1912

Os príncipes que Salazar uniu em matrimónio

 

casamento real 1942.jpg

 

Durante cerca de um século, os dois ramos da família Bragança, titular do trono de Portugal, estiveram de costas voltadas e vivendo em continentes diferentes. Durante o Estado Novo, os descendentes casadoiros das fações desavindas deram o nó, consumando a única alternativa possível de gerar um pretendente a rei com alguma credibilidade. A união teve o beneplácito de Salazar, que enviou gente da sua maior confiança na comitiva incumbida da missão alcoviteira.

 

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Após 1828, não mais se sanou a contenda iniciada pela luta que D. Pedro e D. Miguel travaram pelo poder no nosso País e que acabou com a expulsão e banimento do segundo, em 1834. Os descendentes de D. Pedro assumiram o trono até à deposição da Monarquia e o último rei de Portugal, D. Manuel II, morreu em 1932, exilado e sem progenitura, secando o ramo mais direto da nossa realeza.

Do lado de D. Miguel (na imagem), a descendência vivia exilada no centro da Europa. O único homem elegível para ser pretendente ao trono era o neto, D. Duarte Nuno, que se aproximava perigosamente de ficar, por assim dizer, “fora de prazo”, já que completara 30 anos e não se lhe conhecia noiva ou intenção de a arranjar.

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Tal como havia acontecido com o primo, D. Manuel II, não faltaram ideias para “princesas” que pudessem desempenhar o papel, nas variadas casas reais europeias, em especial na inglesa, na espanhola e na austríaca.

Mas, convenhamos, à primeira vista, D. Duarte Nuno (na imagem), para além da sua garbosa aparência e fino trato, pouco mais tinha para oferecer: nem fortuna, nem trono, nem reino sequer…e, em meados dos anos 30 do século XX, as tensões políticas no velho continente eram tudo menos favoráveis ao estabelecimento de novos laços e alianças, que podiam logo ser entendidas como antagónicas a cada uma das fações em ambiente belicoso, ameaçando a almejada neutralidade do Estado Português.

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Tudo pesado, a melhor hipótese de casar o príncipe era fazê-lo na própria família.

Matavam-se, assim, dois coelhos com a mesma cajadada: promoviam-se condições para gerar prole que continuasse a dinastia dos Bragança e legitimavam-se os descendentes de D. Miguel, legalmente banidos dessa reivindicação que, assim, seriam também descendentes do ramo “legal”, proveniente de D. Pedro IV - D. Pedro I, Imperador do Brasil (na imagem).

O assunto esteve imenso tempo em banho-maria, mas já em plena II Grande Guerra, em 1941, as “cúpulas” monárquicas entenderam-se. No ano seguinte, com o beneplácito de Salazar, ouvido sobre o assunto, tratou-se de promover uma viagem de D. Duarte Nuno ao país irmão, onde pudesse conhecer as primas e, havendo interesse de parte a parte, escolher uma para desposar.

O Presidente do Conselho, no entanto, queria que o assunto fosse tratado com pinças e com a maior discrição. Fez questão que a real figura fosse bem acompanhada, por pessoas de sua confiança e de molde a não melindrar as então tensas relações diplomáticas. Nomeou, não sem alguma polémica, o alcacerense João do Amaral e, para não ferir suscetibilidades britânicas, escolheu-se o Conde de Almada para o acompanhar, preterindo o Visconde do Torrão, mais próximo do príncipe, mas germanófilo.

Livres e desimpedidas estavam as trinetas de D. Pedro, D. Maria Francisca e D. Teresa, ambas na casa dos 20 anos de idade, já que a irmã, D. Isabel, já tinha casado anos antes com o Conde de Paris, primo de D. Amélia, a última rainha de Portugal.

chegada da comitiva a Natal.jpg

Depois de múltiplas hesitações, D. Duarte Nuno deu início à matrimonial empresa, que constituía, na altura, a única esperança dos Bragança.

Atravessou Espanha de carro e passou por Portugal, onde, na noite de 29 de maio de 1942, embarcou no Clipper, com destino ao Brasil, onde chegou após 54 horas de viagem.

A estadia gerou um enorme bruaá e curiosidade popular do outro lado do Atlântico e a comitiva (na imagem), da qual também fazia parte a irmã do príncipe e o conde de Castro, multiplicou-se em contactos e negociações informais para levar a bom porto a sua missão.

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Cerca de um mês após a sua chegada e quando já se pensava que o arranjo proposto não tinha acolhimento, D. Maria Francisca de Orleans e Bragança foi pedida em casamento, recebendo um esplêndido anel com safira, para selar o compromisso.

O noivo terá escolhido, de entre as duas irmãs, a que lhe pareceu mais serena.

Mal se conhecendo, em 13 de outubro desse mesmo ano, imitando todos os seus ascendentes que se uniram por casamento por questões mais da política do que do coração, celebraram o ato civil, na embaixada de Portugal no Brasil e, dois dias depois, a cerimónia religiosa, na Catedral de Petrópolis.

Foi mesmo nas vésperas do Brasil anunciar que estava em guerra com as nações do Eixo.

Como é público, deste matrimónio nasceram três crianças, uma das quais é o atual pretendente à coroa portuguesa, D. Duarte Pio, vindo ao mundo na Suíça, em 1945, e atual Duque de Bragança.

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Mais uma vez, é também durante o Estado Novo que se resolvem mais dois importantes impasses: a instituição da Fundação Casa de Bragança (1933), para gerir os bens deixados pelo último rei de Portugal, e a autorização para que toda a família pudesse regressar ao território nacional, em 1950.

d. duarte e d. maria francisca.PNG

 

À margem

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João Mendes do Amaral, o homem de confiança de Salazar que acompanhou D. Duarte Nuno ao Brasil, nasceu em Alcácer do Sal, em 1893. Foi jornalista e político, tendo fundado o Integralismo Lusitano. Monárquico assumido, curiosamente, foi afastado do Diário de Notícias por ter publicado uma entrevista com o “príncipe”, em 1939. Considerado um orador brilhante e colaborador próximo do Presidente do Conselho, foi deputado na Assembleia Nacional em oito legislaturas, de 1937 a 1969 e dirigente da União Nacional.

É filho de e de Maria Sofia Mendes Rato e de Abel Augusto da Costa Amaral, advogado que se fixou em Alcácer do Sal em finais do século XIX. Tiveram pelo menos 11 filhos e alguns dos seus descendentes, para além de João do Amaral, destacaram-se.

O neto, António de Paiva, foi um escultor conhecido. Joaquim Mendes do Amaral, filho do casal, tal como o irmão, foi deputado em cinco legislaturas (entre 1942 e 1961), mas chegaria igualmente a ministro, tendo assumido as pastas do Comércio e Finanças (1918), Agricultura (1928), entre muitos outros cargos nacionais e também locais, visto que foi presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal. Francisco Augusto da Costa Amaral, também elemento desta vasta prole, foi arquiteto e pintor. Outro filho, Abel, manteve-se na sua terra, Alcácer do Sal, destacando-se como empresário e dirigente do Grémio da Lavoura.

De regresso a João do Amaral, refira-se que a sua escolha não só foi polémica entre os monárquicos, como também na colónia portuguesa no Brasil, que ainda não tinha esquecido os seus discursos inflamados e desestabilizadores, quando ali se deslocara, anos antes. Já em 1961, voltaria a perceber-se a confiança que Salazar nela depositava, quando foi incumbido da espinhosa negociação para a recuperação do paquete Santa Maria, sequestrado por opositores ao regime liderados por Henrique Galvão.

Mas isso é outra história…

 

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Já aqui antes falei de casamentos reais, como o de D. Carlos e D. Amélia

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Fontes

João Amaral, O Roubo do Príncipe, Salazar e o casamento do Duque de Bragança, Lisboa, Tribuna da História – Edição de Livros e Revistas, 2007.

https://www.fcbraganca.pt/

AATT - João Mendes do Amaral

https://pt.wikipedia.org/wiki/Funda%C3%A7%C3%A3o_da_Casa_de_Bragan%C3%A7a

https://www.arqnet.pt/portal/biografias/amaral_joao.html

https://www.aatt.org/site/index.php?op=Nucleo&id=1603

https://geneall.net/pt/nome/11063/joaquim-mendes-do-amaral/

https://geneall.net/pt/nome/7545/joao-do-amaral/

Imagens

Arquivo Municipal do Porto

https://gisaweb.cm-porto.pt

Foto Guedes, F-NV/FG-M/7/162

F-NP/CMP/7/982

Duarte, Duque de Braganza 1907-1976 - Duarte Nuno de Bragança – Wikipédia, a enciclopédia livre

Fotografia de Carl Winkler.

Causa Real: 15 DE OUTUBRO DE 1942, PETRÓPOLIS (BRASIL): CASAMENTO DE S.A.R. O SENHOR DOM DUARTE NUNO DE BRAGANÇA COM A PRINCESA DONA MARIA FRANCISCA AMÉLIA VITÓRIA TERESA ISABEL DE ORLEANS E BRAGANÇA

https://realfamiliaportuguesa.blogspot.com/2008/04/ss.html

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Duarte_Nuno_de_Bragan%C3%A7a#/media/Ficheiro:D._Maria_Francisca_de_Orl%C3%A9ans_e_Bragan%C3%A7a,_D._Duarte_Pio_de_Bragan%C3%A7a,_D._Miguel_Rafael_de_Bragan%C3%A7a,_D._Duarte_Nuno_de_Bragan%C3%A7a.png

https://monarquiaportuguesa.blogs.sapo.pt/foto-de-d-duarte-nuno-e-d-maria-1091377

 

Museu de Fotografia da Madeira, PERESTRELLOS PHOTOGRAPHOS, MFM-AV, inv. PER/2610; PER/2617. Disponível em:

https://cultura.madeira.gov.pt/olhares-sobre-o-passado/2363-primeira-passagem-pela-madeira-de-d-duarte-nuno-de-bragan%C3%A7a.html

AATT - João Mendes do Amaral

Cardápio de estranhos impostos de A a Z (2)

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O longo braço do fisco é muito criativo quanto à forma de angariar dinheiro. Isso mesmo tem demonstrado ao longo de milhares de anos e é patente nas listagens de bens alvo de taxas, diferentes e específicos de concelho para concelho ou região, particulares igualmente de uma determinada época e, em alguns casos, desconhecidos nos dias de hoje.

 

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O povo, todos os diferentes povos, teme a mão do fisco desde que este foi inventado, há pelo menos cinco mil anos, para assegurar privilégios junto de algum senhor ou financiar diversas despesas do Estado e dos municípios, das obras públicas à conquista de terras; da guerra à reconstrução, já em tempo de paz. Analisar os bens taxados em outras eras é o mesmo que desfiar um complexo cardápio de produtos cujo préstimo hoje é difícil de descortinar, porque muitos caíram em desuso ou adquiriram outras denominações.

Nessa análise são também claras as especificidades regionais, as diferenças mesmo no que toca aos tipos de medidas a adotar.

Depois, ficamos a pensar como é que certos produtos chegavam aos lugares mais recônditos do País, numa época em que as estradas eram escassas e más e todos os veículos disponíveis eram movidos a força animal.

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Voltemos então a mergulhar nos impostos municipais indiretos fixados para os distantes anos de 1865-1866

Na capital do Norte, não é de estranhar que o vinho assuma especial importância entre os bens taxados, sendo mais onerado no vinho maduro, do que no vinho verde, que pagava metade do anterior. O município do Porto é também muito específico, diferenciando o touro da toura, o porco da porca e o boi da vaca, quando lança o tributo sobre a venda destes animais.

Já em Paços de Ferreira, a opção foi simplificar, cobrando 20 reis por cada besta carregada para as feiras, independentemente de qual fosse a mercadoria que levava.

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Em Almeirim, nota-se uma atenção especial aos tecidos (lãs e fazendas) e ao bagaço (de uva), 50 reis em carga. No vizinho município da Chamusca, o mesmo produto pagava 5 reis cada alqueire. Ali, tal como em Constância, listava-se o sável e a cavala, o bacalhau e a muito comum sardinha entre os peixes abrangidos pelo fisco.

Na mesma região, mas no concelho do Cartaxo, só o porco gordo é que pagava imposto, estando o magro isento de o fazer.

No Sardoal, têm destaque as vassouras, os esteirões e demais obras em esparto (uma planta com caules flexíveis), que pagavam 120 reis a carga, rivalizando com as peneiras, os joeiros, as esteiras de tábua e as loiças de Coimbra.

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Precisamente na cidade dos estudantes, taxava-se o sável e a lampreia, bem como o polvo, igualmente abrangido em Valença, Tondela e Ponte de Lima, onde se diferenciavam os foguetes pelo número de tiros, que, como seria de esperar, influenciava o imposto a cobrar.

De Norte a Sul há produtos praticamente universais, como os cereais e o vinho, o pão, o peixe e a carne genericamente apresentados.

São também muitas as variedades de fruta e legumes mencionadas, mas há especificidades: em Mesão Frio, por exemplo, havia uma taxa sobre as bagas de sabugueiro, ao passo que, em Castro d’Aire, se distinguem as couves tronchudas das galegas e as canastras de peixe fresco das de peixe já frito, este mais barato que o anterior.

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Em Oliveira de Azeméis diferenciam-se as louças pretas das vermelhas e, em São Pedro do Sul, as capas de palha de Penafiel tinham uma taxa de 100 reis a dúzia, mas se fossem “ordinárias”, pagavam cerca de um terço desse valor, o mesmo que os cortiços.

Em Albufeira, no Algarve, aos mais comuns grão-de-bico, ervilha e feijão, juntavam-se os chichorros (ao que apurei, um tipo de cogumelo) e, numa área muito diferente, pagava-se tributo pelos “pranchões da Flandres”.

Na mesma região, mas em Lagos, as taxas municipais incidiam sobre as drogas, os óleos e as tintas e tabacos, distinguindo o calçado fino, de mulher e de criança, do restante.

Ainda a Sul, em Vila Real de Santo António, dá-se destaque à aguardente de figo, que pagava 60 reis cada almude. Dez reis pagava igualmente cada garrafa de vinho tinto, licor ou genebra.

E, se falamos em particularidades regionais, é sempre de referir as ilhas, neste caso, a Horta, nos Açores, onde o município fazia incidir os seus impostos sobre o inhame cozido e os tremoços curtidos, mas também sobre os pêssegos, as ameixas, as laranjas a lima e o limão, entre outros frutos, assim mesmo explicados, ostentando todo o esplendor e abundância dos Açores.

 

À margem

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Como se percebe por esta minúscula amostra, os registos relacionados com os impostos são uma fonte de informação preciosa sobre as épocas, as pessoas e os lugares sobre os quais foram lançados. A Décima, o primeiro imposto verdadeiramente abrangente, criado em setembro de 1641 para financiar a manutenção de um exército que defendesse o País de forma permanente. Foi depois relançado em 1762, no âmbito da Guerra dos Sete Anos, durante a qual o nosso País foi invadido três vezes, por tropas francesas e espanholas.

Incidia sobre “prédios, ofícios e ordenados, capitais emprestados a juros e os lucros da indústria e do comércio”, recaindo sobre todas as pessoas com atividade profissional, incluindo artífices e jornaleiros.

Com a análise dos assentos, consegue-se ter uma boa imagem do comércio, dos edifícios existentes, das relações contratuais, outros negócios e atividades durante um longo período temporal, uma vez que este imposto foi o mais importante até à criação da contribuição predial, da contribuição industrial e da contribuição de juros, respetivamente, em 1852, 1860 e 1887.

Com essa documentação conhece-se igualmente um conjunto de profissões que, tal como muitos produtos antigos, são difíceis de entender e hoje já não existem, como bainheiro, boleeiro, busca caixas da alfândega, cerieiro ou mesmo almoxarife, precisamente aquele que era responsável pela cobrança dos impostos e rendas públicas. Isto apesar de frequentemente, a cobrança de impostos ser adjudicada a particulares, que não olhavam a meios para receber os montantes em causa, o que resultava na ira popular.

Mas isso são outras histórias…

 

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Nota 1: não se pretende aqui fazer uma lista exaustiva de produtos alvo de impostos em cada um dos municípios do País, mas sim destacar as especificidades regionais e as particularidades da época.

Nota 2: as imagens são meramente exemplificativas do ambiente de feiras e mercados.

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Fontes

Diário do Governo, 14.07.1871

https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolta_dos_inhames

Tribunal de contas

https://www.tcontas.pt/pt-pt/MenuSecundario/Noticias/Pages/n20220125-1.aspx

Imagens

Illustração Portugueza

16.11.1903, 30.11.1906, 21.12.1903, 18.01.1904, 26.01.1904, 04.06.1904, 27.06.1904.