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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Ninguém queria a Comporta…nem dada!

 

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Foram muitos e variados os esforços para vender, arrendar a preço de saldo ou, no mínimo, retirar algum rendimento daquela região inóspita, entre pântanos doentios e areias estéreis. Mas, nem oferecendo sementes e dinheiro ou isentando de impostos alguém tinha interesse no território que hoje conhecemos como Comporta. Uma rainha chegou mesmo a mudar-lhe o nome, na esperança de tornar aquela imensidão mais atrativa. Em vão.

 

A primeira tentativa de vender o Paul de Pera e Comporta, edifícios, arvores e terrenos adjacentes, terá sido em 1826. A enorme propriedade de 4,62 léguas quadradas sem préstimo havia passado para a Casa do Infantado com a extinção da Casa de Aveiro, em 1759. A colina a nascente do paul deveria ficar reservada para a construção de um aglomerado urbano a que se chamaria Vila Nova da Regente, em homenagem à jovem D. Maria II, que assumira o trono meses antes.

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Com o intuito de angariar habitantes, nomeadamente para o fomento da pesca, anunciava-se que estes não pagariam impostos. Quem se propusesse comprar a área, por outro lado, teria de manter a estrada até ao mar e tornar navegável a vala real, fazendo o prolongamento desta, de forma a escoar as terras e torná-las viáveis para a agricultura.

Aparentemente os resultados foram nulos. Quatro anos depois, já D. Miguel se havia assenhorado do trono, põem-se à praça os rendimentos do Almoxarifado do Paul de Pera e Comporta, o que se repetiu no mês seguinte, por não se ter logrado sucesso.

Regressa D. Maria II e com ela a intenção de vender.

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A necessidade urgente de obter dinheiro para as carências inadiáveis do Estado, aliás, obrigou a que se levassem a leilão todos os vastíssimos domínios da Casa do Infantado, a “joia da coroa”, composta pelas férteis lezírias do Tejo, mas também por outras sem interesse e de diminuto valor.

De entre estas, ressalta pela insignificância o Paul de Pera e Comporta: terras alagadiças e doentias nas margens do Sado e areais estéreis que se estendem até ao oceano. Não admira que, apesar das privações da governação, o processo tenha demorado tanto tempo.

Depois de discussões intermináveis sobre o modelo a adotar e o destino a dar ao dinheiro com o qual já se contava, decide-se vender por atacado os bens nacionais da Coroa, Infantado, Casa da Rainha e Patriarcal, fazendo-se, para isso, a sua avaliação.

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Como seria expectável, a Comporta apresenta o mais baixo valor: menos de 13 contos de réis - 12.279$200. Uma ninharia, comparando, por exemplo, com Samora e Belmonte, com avaliação de 240.959$600.

A transação global, com o custo base de dois mil contos de réis e a prometida isenção de impostos diretos e indiretos sobre as terras incultas, os utensílios, instrumentos e máquinas, consumar-se-ia em 1836, tendo-se apresentado apenas uma oferta, com origem em empresa criada para o efeito e com polémicas ligações ao próprio ministro.

Nos primeiros tempos, não parece que a aquisição tenha alterado o que quer que seja naquele território, para além da promoção da temida cultura do arroz, contrariando as disposições legais, que a chegaram a proibir, pela associação às febres, mas aproveitando o facto de ser a única que vingava naqueles inóspitos solos.

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Em 1857 publica-se o Relatório sobre o Reconhecimento feito ao Paul da Comporta “para o enseccar e cultivar” e onde se tecem considerações sobre a gestão desastrosa daquele território.

A Companhia das Lezírias do Tejo e Sado, de resto, concentrava atenções nos seus domínios mais vantajosos e dava mostras que não ter meios para lidar sozinha com as terras desta sua 5ª e última administração, anunciando o arrendamento das herdades, quintas e demais domínios do Paul de Pera e Comporta, bem como a estalagem e o apanho das bichas*, assim como se alienavam, nos anos seguintes, ações da própria companhia, procurando-se retirar rendimento também com a venda de murta, resina a extrair pelo comprador, madeira de pinho ali cortada e, já nas últimas décadas do século XIX, arroz e gado.

Os esforços para arrendar parcelas na Comporta ou a sua totalidade de forma estável e prolongada repetiram-se por vários anos. Em 1864 já se aceitava que o arrendamento fosse o mais conveniente aos interessados, “pelo tempo de três, seis ou mesmo nove anos”, o que se reiterou em 1869, várias vezes.

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Em finais de 1886, a administração garantia ter secado uma grande superfície de terrenos, tornando-os “muito saudáveis” e “de ótima qualidade” para receber “trigo, milho, legumes e horta”, com “excelente água de bebida e rega”, nos sítios denominados Lagoa Travessa (próximo de Carvalhal) e Pêgo do Inferno (hoje só Pego), junto ao mar.

Por aquela altura, a direção da Companhia prontificava-se a oferecer gratuitamente jeiras para os colonos que as pretendessem cultivar, podendo cada um tomar a superfície que lhe conviesse.

A ânsia de ver aquela área ocupada e a produzir era tanta que até se cediam pinheiros, caniço e junça para barracas, adiantando-se sementes e até dinheiro, arrendando-se “por módicos preços”, a superfície que desejassem para a cultura do arroz.

Novamente, os resultados não foram animadores.

Em 1904, finalmente, a lei passa a permitir a desamortização das terras e a sua transação em lotes. Em 1925 a Comporta é vendida à luso-britânica The Atlantic Company, que, nos 30 anos seguintes, começa a primeira grande transformação, intensifica a produção de arroz, constroi muitos edifícios, drenando terrenos para a agricultura e plantando pinheiros e outras espécies destinadas a melhorar os ares daquela que ainda era conhecida como a África metropolitana e continuaria, ainda por muito tempo, um lugar de difícil acesso e estadia, até ter chegado aquela célebre família que pôs a Comporta no mapa.

Quanto não valerão atualmente essas terras dadas ao desbarato e que, ainda assim, ninguém queria?

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À margem

Em 1839 era o próprio lugar de administrador do Paul da Comporta que se encontrava por ocupar, estando à disposição de quem apresentasse as melhores informações, devendo os candidatos ter alguns conhecimentos de contabilidade e sujeitar-se a um vencimento de 600$000 réis. Diga-se que, de uma forma geral, o administrador fixava residência em Setúbal e não nas terras que lhe cabia administrar, provavelmente pela falta de condições para tal.

Por esta altura, a Comporta era um pequeno lugarejo que tinha apenas estalagem, celeiro e ermida onde se dizia missa, para além de 60 pequenas casas, feitas a maior parte de colmo, num estilo próprio hoje imitado pelas barraquinhas de luxo que ali pululam.

Nem mesmo a missa era certa… Em 1843 pagava-se um ordenado anual de 100$900 réis ao capelão que se disponibilizasse a ocupar o lugar na Capela da Senhora da Saúde – evocação apropriada para uma zona insalubre - na Comporta, comprometendo-se a celebrar missa nos dias santificados. Esta lacuna na orientação espiritual dos poucos habitantes da zona volta a revelar-se cinco anos depois e ainda mais tarde, onde se especifica que a pessoa que se candidatar ao lugar deverá igualmente assumir as funções de professor de instrução primária, ter disponibilidade para viver no local e, preferencialmente, possuir conhecimentos de agricultura.

Sem dúvida requisitos difíceis de reunir num candidato só.

Mas, essa polivalência não era inédita. Cerca de duas décadas depois, o padre José António de Miranda assumia as funções de almoxarife do Paul de Pera e de Comporta, para além de negociar na cepa ali recolhida. Chegou mesmo a ser acusado de ter roubado 32 carradas deste produto.

Anos mais tarde, eram as vacas da Comporta que davam que falar. Aparentemente, foi ali desenvolvida uma raça específica, adaptada às difíceis condições do lugar e que prometia ter um futuro de sucesso.

 

Mas isso é outra história…

 

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*Presumo que alude à apanha da minhoca ou outro isco para a pesca.

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Fontes

Diário do Governo

18.06.1830, 27.07.1830,11.11.1835, 12.11.1830, 14.01.1836, 05.02.1836, 25.04.1836, 08.12.1837, 04.06.1839, 25.06.1839, 13.08.1839, 17.08.1840, 24.06.1842, 01.09.1843, 16.12.1843, 23.07.1847, 27.02.1851, 20. 04.1857, 28.03.1863, 30.03.1864, 27.07.1869, 12.08.1869, 14.11.1872, 02.08.1872, 12.02.1882, 13.08.1886, 19.10.1886, 07.01.1887, 01.06.1889, 19.07.1890, 09.01.1904.

Gazeta de Lisboa, nº152, 1826.

O Constituinte, 14.01.1888

 

 

Biblioteca Nacional

Esboço de uma carta reprezentando os terreno cultivados e incultos de Portugal para servir à melhor ... (bnportugal.gov.pt)

 

Arquivo Histórico Parlamentar, PT-AHP/CGE/CPET/S2/D103.

 

Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal

Miguel Metelo de Seixas, Herdade da Comporta - Memória Histórica, Comporta, The Atlantic Company Limited, 1999.

 

Imagens

A Terceira Dimensão: Praia da Comporta

 

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

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7 anos de blog. Obrigada!

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E vão sete! Sete anos à procura de histórias com sal, algum picante e, por vezes, outros temperos. Sete anos de crescimento em visualizações, comentários e subscrições. Sete anos de aprendizagem e partilha, de leitores amáveis e curiosos, desafiadores e interessados.

São sete anos de trabalho extremamente compensador do ponto de vista intelectual, mas até dispendioso em termos monetários, à custa sobretudo da aquisição de dezenas de livros e da digitalização de centenas de páginas de documentos em arquivos e bibliotecas. Dinheiro bem gasto!

Se achei que aqui chegaria? Apesar da minha teimosia habitual, penso que não, que, por esta altura, já teria deixado o blog de parte. Se, por outro, lá no fundo, esperava que, de alguma forma, alguns dos textos que escrevo tivessem maior impacto? Sim, talvez sim, porque, embora saiba que não produzo um conteúdo acessível a todos ou que suscite movimentos de massas, para mim, os temas são sempre interessantes.

Por isso, enquanto houver prazer em pesquisar e escrever – provavelmente as atividades duradouras mais estimulantes da minha vida, para além de educar e ver crescer os filhos – cá vou continuando, em busca de histórias fantásticas, mas verdadeiras; personagens dignas de filme, mas bem reais; curiosidades; indiscrições; bizarrias, ligações improváveis e abordagens próprias – boas ou más – mas, minhas, a pensar no que vos possa cativar.

O que peço é que continuem por aí e, já agora, se gostam, que partilhem mais, divulguem mais, comentem mais, perguntem ainda mais. Se não gostam, que digam porquê, para que eu perceba como posso melhorar.

Por muito que estudar e escrever sejam tarefas sobretudo solitárias, é bom saber que tenho companhia desse lado e conhecer a opinião de quem me acompanha, os de sempre, os de agora e os do futuro que, espero, seja longo.

Obrigada!

 

Duas mortes anunciadas e mal contadas

 

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Seria de esperar que se tivesse procurado apurar todos os pormenores passíveis de fazer julgar e condenar os responsáveis pela morte a tiro dos dois chefes de Estado, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. O regicídio de 1908 e o assassinato do presidente, dez anos depois, continuam envoltos em incertezas e equívocos. E não é só isso que une estes dois momentos trágicos.

“Um Costa matou o Rei, outro Costa o Presidente, ainda ficou outro Costa para dar cabo da gente”. O adágio que corria de boca em boca entre a arraia miúda, apesar da propalada sabedoria popular, espelha os múltiplos enganos que rodearam os assassinatos de D. Carlos e de Sidónio Pais. Dez anos separam as duas mortes, que têm mais em comum do que se poderia pensar.

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Para começar, a 1 de fevereiro de 1908 (na imagem) não foi da arma de Alfredo Costa que partiu o tiro fatal para D. Carlos, mas sim da sofisticada carabina empunhada por Manuel Buiça, o verdadeiro regicida. Duplo, aliás, porque também foi ele que eliminou o príncipe real, Luís Filipe.

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Depois, há sérias dúvidas que tenha sido José Júlio da Costa a assassinar Sidónio Pais, em 14 de dezembro de 1918 (na imagem).

Ambos não chegaram a ser julgados por estes crimes, o primeiro porque foi abatido no local e o segundo, porque foi dado como louco e esse diagnóstico questionável terá contribuído para que não se sentasse em tribunal, embora tenha permanecido preso.

Os eventuais conspiradores e mandantes, bem como outros atiradores presentes, não identificados, escaparam incólumes.

Seria de esperar que se quisesse apurar todos os pormenores sobre o homicídio destas duas personagens da nossa história recente, mas nem D. Carlos, nem Sidónio Pais, de início, foram autopsiados. No entanto, ambos foram criteriosamente embalsamados, como era costume na época quando estavam envolvidos mortos ilustres.

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Foi, aliás, este facto que permitiu, mais de um mês após a sua morte, dada a intervenção de um juiz curioso e intrigado, que fossem feitas perícias válidas ao corpo do presidente, às roupas (sendo que o casaco desapareceu) e a uma arma alegadamente apreendida ao assassino.

O relatório, com 124 fotografias, esquemas e desenhos, comprovou que, contrariamente ao que os jornais veicularam e constituiu a versão oficial, Sidónio Pais não foi baleado à queima-roupa – o que excluiria José Júlio da Costa, posicionado a curta distância – nem sofreu dois tiros, mas apenas um, frontal, que entrou pelo peito e saiu pela parede abdominal.

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Fez ricochete na coluna vertebral, tal como um dos dois projeteis que atingiram D. Carlos, pelas costas.

As duas mortes foram, assim, imediatas, caindo por terra a patriótica e mítica frase final de Sidónio Pais, afinal inventada pelo criativo jornalista Reinaldo Ferreira.

Em vida, o comportamento dos dois chefes de Estado não podia ser mais díspar – o monarca, liberal e pouco interventivo; o Presidente, governando com mão de ferro e pose de soberano, justificando o epitáfio de presidente-rei, cunhado por Fernando Pessoa.

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Mas, ambos tiveram papel principal no endurecimento da repressão aos seus opositores, no primeiro caso, através do executivo de João Franco, que governou em ditadura, beneficiando da rédea solta de D. Carlos.

Quanto a Sidónio Pais, embora tenha sido o único até então a ser eleito para o cargo por sufrágio universal entre os eleitores masculinos, alterou as regras, criando a autoritária Nova República.

Nos dois momentos decisivos, esta forma musculada de governo terá sido determinante para serem aniquilados por opositores à mesma. Quando sucumbiram, o rei tinha 45 anos e o presidente 46.

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Quanto ao terceiro Costa referido no adágio popular. Será aquele a quem chamavam o "mata-frades" e que foi por quatro vezes presidente do ministério (equivalente a Primeiro-Ministro).

Mas, novamente, a ladainha não acerta. O governo que chefiava foi dissolvido por Sidónio Pais e Afonso Costa não voltaria a assumir tão importantes funções.

 

À margem

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Em ambas as ocasiões de assassinato as motivações foram políticas e no seguimento de outras ações contestatárias frustradas, ocorridas dias antes. Eram mortes anunciadas.

A confusão que se gerou e a reação atabalhoada da polícia resultou em vítimas inocentes: um pobre empregado de ourivesaria, em 1908, mas nenhum dos atiradores conluiados com Buiça (na imagem) e Costa que se encontravam no percurso da carruagem real. É o príncipe Luís Filipe que mata Alfredo Costa, antes de também ser abatido.

Quatro pessoas foram sacrificadas entre as presentes na estação do Rossio, na fatídica noite de 1918, desconhecendo-se se algum deles seria cúmplice do principal suspeito e, igualmente, se foi mesmo José Júlio da Costa (na última imagem) a cometer o assassínio, até porque os testemunhos deste, inicialmente obtidos em interrogatórios com métodos questionáveis, variaram ao longo dos anos, não demonstrando consistência.

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O início de século XX em Portugal foi, aliás, época de uma violência hoje difícil de imaginar nas nossas ruas. Entre intentonas, revoltas, atentados, prisões e execuções, morreram centenas de pessoas.

Curiosamente, dois dos episódios mais sangrentos ocorreram em outubro, tal como a Implantação da República:

Na “leva da morte”, em 1918, morreram sete opositores de Sidónio Pais. Ironicamente, entre estes estava o republicano Visconde da Ribeira Brava, alegadamente envolvido no regicídio de 1908.

Na denominada “noite sangrenta”, em 1921, foram selvaticamente executados por elementos da marinha o Primeiro-Ministro, António Granjo, e mais dois históricos do republicanismo: Machado Santos e José Carlos da Maia, para além de Freitas da Silva, que tinha sido chefe de gabinete do ministro da Marinha demissionário. Nesse serão fatídico, no meio das movimentações dos revoltosos, foi solto José Júlio da Costa. O alegado homicida de Sidónio Pais só retornaria à prisão seis anos depois, dessa vez, até ao fim dos seus dias.

Mas isso são outras histórias…

………………….

Nota: sem que o esclarecimento sobre os seus assassinatos tenha sido beneficiado, ambos os chefes de Estado abatidos tiveram um papel fundamental na criação da rede pública de medicina legal: é no reinado do nosso penúltimo rei, D. Carlos, – em 1899 - que são criadas as três morgues com responsabilidade nas perícias médico-legais; foi no mandato do nosso quarto presidente, Sidónio Pais, que se fundou o Instituto de Medicina Legal.

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Fontes

Asdrubal António d’Aguiar, Exames Periciaes no Cadáver do Presidente da República Dr. Sidonio Paes, no vestuário e na Arma Aggressora, Separata dos Archivos do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, Série B, vol. V, Lisboa, Officinas Gráficas da Bibliotheca Nacional, 1921. Disponível no Centro de Documentação da Polícia Judiciária (cuja eficiência agradeço)

Francisco Moita Flores, Mataram o Sidónio, Alfragide, Leya SA, 2010.

José Barata, Uma nosografia de D. Carlos I no centenário do regicídio, Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, vol XV, nº21, abr/jun 2008. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.spmi.pt/revista/vol15/vol15_n2_2008_141_145.pdf

 

Manuela Marques, Sidónio Pais e o Instituto de medicina Legal, importância na Vida e na Morte, Lisboa, 2022.

Jorge de Almeida Fernandes, Sidónio Pais e os Sete Pilares do Futuro, Jornal Público, 09.09.2010. Disponível aqui: https://www.publico.pt/2010/09/09/jornal/sidonio-pais-e-os-sete-pilares--do-futuro-20160446

 

https://www.presidencia.pt/presidente-da-republica/a-presidencia/antigos-presidentes/sidonio-pais/

https://www.parlamento.pt/VisitaParlamento/Paginas/BiogAfonsoCosta.aspx

https://www.infopedia.pt/artigos/$joao-franco

https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Franco

https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/noite-sangrenta.aspx

 

 

Imagens

https://pt.wikipedia.org/wiki/Regic%C3%ADdio_de_1908

https://monarquiaportuguesa.blogs.sapo.pt/rei-d-carlos-i-de-portugal-152568

rtp

https://casarealportugal.org/casa-de-braganca/o-regicidio/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bu%C3%AD%C3%A7a#/media/Ficheiro:Manuel-reis-buica-vivo.jpg

Fundação Mário Soares, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/

https://www.museu.presidencia.pt/pt/conhecer/presidentes-da-republica-biografias/presidentes-da-i-republica/sidonio-pais/

JOSÉ JÚLIO DA COSTA - JORNAL DE GARVÃO Desvendar o Passado para Construir o Futuro

 

Crónica policial (6) - A vida escandalosa da marquesa e do seu toureiro

Lisboa, verão de 1884

 

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A história tinha tudo para suscitar curiosidade e escândalo: uma senhora da alta sociedade espanhola e o seu amante, picador de touros, estão de passagem por Lisboa neste início de verão e dão nas vistas pelas piores razões. O enredo rapidamente passa de romance a caso de polícia, com uma sucessão de episódios acompanhados avidamente pelos jornais e as conversas de rua.

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Tudo tinha começado três anos antes, numa feira de Sevilha, onde se conheceram. A marquesa vinha de mantilha preta adornada com uma rosa vermelha, contrastante com a alvura do seu rosto. Abelardo Blagerez montava a cavalo, mostrando-se elegante e altivo. 

Dolores tinha 35 anos e era viúva. O picador era casado, mas isso não impediu que, entre os dois, nascesse uma relação que teve como primeiro efeito fecharem-se à nobre senhora as portas dos salões, onde até então tinha sido admirada.

Como era comum na época quando uma mulher ousava desviar-se do caminho que lhe estava traçado à nascença, a família quis dá-la como louca e retirar-lhe a gestão dos seus bens. A filha, Carmen, foi posta num colégio, como proteção contra a lama que manchava já o bom nome dos seus antepassados.

Certo dia, o polémico casal resolve afastar-se de tudo aquilo e rumar a Portugal. À revelia da vontade familiar, trazem a menina, então com 14 anos.

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Primeiro instalam-se incógnitos em Vila Real de Santo António. Fazem-se passar por legítimos e ali permanecem por três meses. Partem então para Lisboa, alojam-se no Hotel Camões, na bem central rua da Bestesga (na imagem).

A harmonia, no entanto, há muito que parecia ter abandonado o insólito trio. A falta de dinheiro terá sido a primeira razão para as acesas discussões e cenas de violência, mas não faltaram outras, ainda mais graves.

Dizem os jornalistas e algumas testemunhas que, a dada altura, o toureiro terá resolvido trocar a mãe pela jovem filha e as investidas para tentar consumar a sua vontade originavam verdadeiras batalhas entre quatro paredes, com consequente gritaria ouvida por hóspedes e pessoal hoteleiro.

A ameaça com um punhal, parada pela intervenção de terceiros, acabaria por ser a gota de água que fez com que Abelardo fosse preso.

 

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Ouvido por um juiz do Tribunal da Boa Hora (na imagem), negou as suas más intenções para com a “enteada” e os gastos excessivos, admitiu alguma impetuosidade para com a amante, mas afirmou ter bastas vezes valido às duas.

Não obstante, recolheu ao Limoeiro (na última imagem).

Depois daqui é ainda mais difícil perceber quem diz verdade: às declarações iniciais, que falavam de medo do companheiro e receio pela virtude da filha, Dolores juntaria outras desmentindo as suas próprias palavras, alegando inocência do homem.

O pai do preso veio de Sevilha para tentar encontrar defesa para o filho. Os amantes trocavam cartas apaixonadas e até a “enteada”, por escrito, manifestou o seu enorme afeto e endereçou beijos ao “padrasto”, enquanto mãe lhe fazia entregar cabazes com delicadas iguarias da Patisserie Violette, dinheiro e charutos.

O caso suscitou tal agitação e curiosidade em Lisboa, que grupos de pessoas organizaram esperas à porta de lojas onde se dizia que estava a marquesa, e aglomeravam-se junto ao hotel, hesitando entre a indignação e a pena face à pressentida imoralidade da relação que unia trio e a situação em que se encontravam estas três personagens.

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As notícias atravessaram o oceano e tiveram eco nos jornais brasileiros, para além dos espanhóis, claro.

Passada a novidade, no entanto, não é fácil perceber o que aconteceu a Dolores Porcel Martinez, Carmen Villanueva Porcel e Abelardo Blagerez.

A última informação dava conta de este “ter tido despacho de pronúncia” e, portanto, o processo seguir para julgamento. Acresce que, em Espanha, estas mesmas três pessoas eram citadas por desobediência, procurando a justiça que as mesmas se apresentassem.

Nada voltamos a descobrir do amor atribulado de Dolores e Abelardo, mas sabemos que, passados 13 anos, Carmen casou e, provavelmente porque enviuvou cedo, como a mãe, voltou a casar dois anos depois, com o irmão do primeiro marido. Depois, é o silêncio.

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Já aqui antes falei de amores infelizes, como aquele que acabou em tragédia, em 1912, numa pacata vila alentejana.

Ou aquele que envolve outro estranho e trágico trio: Camilo Castelo Branco, José Augisto Pinto de Magalhães e Francisca Owen.

A vida triste e incompreendida de uma das filhas de Carlos Relvas, Maria Clementina, obrigada a casar com um homem que não amava.

E, ainda o caso da funesta poetisa Ritta Pereira de Mattos, que apareceu morta no quintal de um poderoso republicano, em 1883.

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Nota: curiosamente, embora tenham esmiuçado todos os pormenores deste enredo, os jornais portugueses mostraram um certo pudor de classe, omitindo o nome das senhoras (mencionavam apenas Marquesa de P.) - em contraste com o tratamento dado a outras mulheres de mais baixa condição social. 

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Fontes

Diário ilustrado

09.07.1884; 10.07.1884, 11.07.1884, 12.07.1884, 13.07.1884, 14.07.1884, 15.07.1884, 18.07.1884

 

A Illustração Portugueza

14.07.1884, 21.07.1884

 

O António Maria

10.07.1884, 17.07.1884

 

Gaceta de Madrid

12.08.1884

 

O Despertador

23.08.1884

 

Carmen Villanueva Porcel: genealogía por Eva GARCIA-JUNCO (evagarj1) - Geneanet

Lisboa de Antigamente: Rua da Betesga com a Rua Augusta: Hotel Camões

 

Imagens

Imagem principal: criada por inteligência artificial em canva.com

🏅 ▷ Feira de Abril em Sevilha: Por que não para mim?

 

Arquivo Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000306

Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000647

Eduardo Alexandre Cunha, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/002597